O Lado Cinzento

Os quatro mandamentos dos Slytherin


30. Os quatro mandamentos dos Slytherin

A vida de uma pessoa não é o que lhe acontece, mas aquilo que recorda e a maneira como o recorda.

Gabriel Márquez

A semana de exames em Hogwarts passou de forma estranhamente calma e rápida. Conheci vários alunos, com personalidades muito diferentes umas das outras. Uma das pessoas que mais me marcou foi a Cho Chang, uma jovem com descendência asiática que tinha um longo cabelo preto que parecia brilhar. Os olhos castanhos dela eram hipnotizantes, fazendo-me ficar facilmente perdido a observá-los durante longos segundos. Porém, acabava sempre por desviar o meu olhar para as pequenas sardas que tinha espalhadas pelo seu rosto quando notava que ela tinha reparado no meu estranho interesse nos olhos dela.

A beleza exótica da Chang cativava-me e apesar de ter falado maioritariamente com a Luna, quando almocei na mesa pertencente aos Ravenclaw, os meus olhos desviavam-se involuntariamente para a sua figura, corando sempre quando ela me oferecia um sorriso. Porém, as borboletas que sentia no estômago quando pensava nela duraram pouco tempo. No dia seguinte, quando me sentei na mesa dos Slytherin, ao lado da Natalie e do seu grande amigo Malfoy, ela teve todo o prazer em anunciar que a Chang era namorada do Cedric. A Natalie só teve como resposta o meu estreitar dos olhos enquanto assentia distraidamente para o que o Malfoy dizia, relativamente à grandeza da casa dos Slytherin.

Nos dias em que não tinha que comer em nenhum sítio pré-determinado, eu decidi não comer no Grande Salão e preferi comer nos aposentos que o Dumbledore dispensou para mim, tendo tido como companhia maioritariamente a Hermione e o seu grupo de amigos. Para ser o mais diplomático possível em relação à escolha da minha futura casa, convidei também o Cedric (que não trouxe felizmente a Chang) e a Luna. Pensei em estender o convite a mais alunos das outras casas, para fazer o que era mais sociavelmente aceite mas acabei por ignorar essa ideia, ao perceber que já era um grupo muito grande e ainda podiam existir problemas relativos à segurança. A Natalie também estava convidada e apesar de não estar presente em todos os almoços, jantava connosco todos os dias, afirmando que queria tomar aquela refeição com o pai. Porém, eu percebi que essa afirmação não era exatamente verdade e que ela estava a fazer um esforço para estar comigo, tendo passadas várias noites a estudar ao meu lado, depois de a Hermione sair, ficando inclusive a dormir num dos quartos vagos.

Culpei aquela mudança de comportamento dela, ao facto de eu estar a tentar mudar, como ela me pediu e também devido ao nosso acordo efetuado nas férias da páscoa. Ainda não eramos amigos, passando uma porção elevada do nosso tempo a discutir, mas não existia aquela relação a linear o ódio como antigamente. Agora, era só rivalidade.

De qualquer das formas aproveitei aquele período de tempo para reemergir a minha amizade com a Hermione. Apesar de ela estar mais adulta e mais séria, continuava igual nas caraterísticas que importavam e, por esse motivo, tratava-a com familiaridade. Como o Sirius foi testemunha da forma como eu interagia com ela, convidou-a a passar alguns dias de férias connosco e, felizmente, ela aceitou. O Neville, os Weasley e os restantes amigos da família também iriam passar lá alguns dias durante o verão. Contudo, isso só ocorreria depois de eles estarem algum tempo com as respetivas famílias.

As minhas aulas de oclumência com a Natalie começaram dois dias depois de termos voltado a casa. Por esse motivo, encontrava-me naquele instante, na minha sala, a observar a expressão séria dela, enquanto ela me apontava a varinha.

— O Professor Snape explicou-me o procedimento padrão das aulas que teve contigo. Por isso, presumo que estejas preparado. — Ela disse, observando-me cuidadosamente.

Eu dei de ombros, relaxado. O meu principal motivo para ter aceite aquela proposta foi para testar os meus escudos mentais e não por achar que a Natalie iria colocar um verdadeiro desafio, tendo a minha idade.

Ela estreitou os olhos, ao observar a minha atitude despreocupada.

— Acho que vais ter uma surpresa. — Murmurou, dando um sorriso frio. — Legilimens.

Eu parei de respirar por um segundo, ao sentir uma picada no meu peito, enquanto ela destruía a imagem mental da minha casa de sonho e se fixava no que eu tinha estado a pensar naquele instante, durante esse período de tempo.

Ela. Snape. Hogwarts. Hermione.

Ela fixou-se na imagem da minha amiga e quando finalmente me lembrei de reagir, ela já estava a observar uma memória.

Olhei distraidamente para o jogo de futebol que decorria à minha frente enquanto desfolhava a folha do livro. Tendo terminado a minha tarefa, estava para voltar a ler quando senti uma ligeira corrente de ar, causada por alguém se sentar ao meu lado.

Suspirei, imaginando que era algum dos órfãos a querer a minha proteção, agora que eu era considerado o salvador que conseguiu colocar o Richard e os seus amigos suspensos durante uma semana. Porém, surpreendi-me quando vi a Hermione, a agarrar também um livro, enquanto olhava excitadamente para mim.

— O que foi, Granger?

Ela juntou as sobrancelhas, numa expressão de confusão.

— Se esperas que adore o chão que pisas, só porque todos os outros os órfãos o estão a fazer, estás enganada. — Murmurei, voltando a olhar para o meu livro.

Ficamos em silêncio durante cerca de dois minutos até que eu não consegui controlar a minha curiosidade e voltei a olhar para o lado, observando que ela continuava no mesmo sítio, a examinar-me. Suspirei outra vez, fechando o livro, concluindo que não iria conseguir ignorá-la.

— Pronto, Granger. Eu agradeço em nome de todos os órfãos pela tua ajuda a lidar com o Richard. Foi necessária coragem, apesar de eu achar que irás sofrer por nos teres ajudado quando acabar a suspensão deles.

Eu fiz uma pausa para lhe dar hipótese de falar, para dizer alguma coisa. Porém, isso não ocorreu, o que me fez fechar os olhos, pensando no que ela poderia querer que dissesse mais.

— Se pretendes ignorar-nos e defender-te, dizendo que foi uma reação no momento, podes fazer isso. — Continuei a falar, abrindo os olhos e vendo-a a observar-me curiosamente. — Acho que isso pode fazer com que o Richard te ignore quando voltar. — Fiz outra pausa e quando ela não falou outra vez, murmurei irritado: — O que queres que eu diga mais? Obrigada, oh salvadora dos órfãos? Que te estou muito agradecido por me ajudares? Queres que eu te dê alguma coisa? O que é que queres?! — Resmunguei, irritado com o silêncio dela.

Ela engoliu em seco, parecendo pela primeira vez desde que a conheci apreensiva, desviando o olhar para o livro que tinha na mão.

— Eu só queria entregar-te este livro. — Murmurou, empurrando-o contra o meu peito.

Olhei para o livro que consistia num livro de contos, estando inclusive o conto que tínhamos lido no dia anterior, na sala.

— O que queres que faça com o livro? — Respondi, largando o livro que estava a ler e agarrando o novo com a minha mão direita.

A Hermione corou e mandou-me um dos seus sorrisos típicos.

— Desculpa, eu não me expliquei bem. — Ela fez uma pausa para olhar para um grupo constituído maioritariamente por outros órfãos ligeiramente mais velhos do que eu. — Eles ontem foram falar comigo, a agradecer por ter tentado ajudar os órfãos e falaram de ti. — Cerrei o maxilar, ao pensar no que eles poderiam ter dito que faria com que ela me entregasse aquele livro. — E eles comentaram que temos muito em comum, gostamos de ler e isso.

— Eles falaram de mim? — Perguntei, desconfiado.

Ela voltou a corar.

— Eu posso ter perguntado sobre ti.

— Porquê?

A Hermione mordeu o lábio inferior, fazendo-me pensar porque é que ela estava tão constrangida naquele instante quando não teve medo do Richard. Onde é que estava a sua determinação?

— Eu reparei que gostavas de ler e também estavas muito tempo sozinho.

— Tiveste pena de mim? — Perguntei, não conseguindo esconder o ódio que tinha por aquela ideia.

— Não! — Respondeu imediatamente, fazendo-me ver finalmente, aquela criança que me tinha defendido. — É claro que não! Eu só vi que nós os dois somos parecidos. Gostamos de ler. Gostamos de lutar pelas coisas que acreditamos. Não tem nada relacionado com pena! Eu… — Ela inspirou fundo, parecendo ganhar coragem. — Eu quero ser tua amiga!

A minha reação ao anúncio dela foi piscar os olhos.

Uma.

Duas.

Três vezes.

Até que finalmente reagi, gargalhando.

— Tu queres ser minha amiga? Granger, tu podes ter-me ajudado e ainda não teres visto as consequências disso mas tu não queres ser minha amiga. O Richard não te vai parar de chatear se fores minha amiga. Tu queres é distância de mim. Por isso, obrigado pela oferta, mas não. — Disse, entregando-lhe o livro.

Porém, a Hermione Granger que eu tinha visto dias antes estava ali outra vez e, por esse motivo, a minha única resposta foi o cruzar dos braços dela.

— Não! Eu não vou parar de ser tua amiga por causa dele.

— Se nós nunca começamos como é que não vais parar de ser?

Ela mordeu o lábio até que o resto de indecisão dela desapareceu, dando-me um sorriso brilhante, enquanto se levantava e voltava a ignorar o meu braço estendido com o livro dela.

— Nós somos amigos. Eu vou-te emprestar esse livro que eu sei que querias ler e depois de leres vamos falar sobre o que achamos dele e conhecer-nos melhor. Se o Richard aparecer, depois lidamos com ele. Mas não vou desistir desta amizade por causa de uma ameaça como essa. Não vale a pena.

Eu abanei a cabeça, negando, não me acreditando no que ouvia.

— Tu, por acaso, estás a impor-te como minha amiga, Granger?

Ela voltou a sorrir para mim, num dos sorrisos mais genuínos que eu já vi.

— Podes achar isso. — Respondeu, dando de ombros. — Mas a minha opinião não vai mudar. E é Hermione. — Eu abri a boca para lhe responder mas ela foi mais rápida que eu. — E antes que me respondas, lembra-te que eu não quero saber. — Disse, dando-me mais um sorriso enquanto saia a correr, não esperando pela minha resposta.

Quando a vi desaparecer para dentro da sala de aula, desviei o olhar para o livro que ela me tinha posto nas mãos. Eu queria mesmo ler aquele livro e foi essa a justificação que eu dei a mim próprio para ter começado a ler logo, ignorando o livro que tinha estado a ler. E foi por gostar tanto do que lia que não consegui evitar o sorriso que nasceu na minha cara. Claro que não tinha sido devido à atitude da Hermione…

Quando eu voltei a sentir a esperança causada por aquela lembrança, de ter finalmente alguém a lutar comigo, voltei a ter perceção do que estava a ocorrer, tentando concentrar-me em expulsar a Natalie da minha mente.

Fui bem-sucedido em fazê-la parar de ver aquela lembrança, mas ao suspirar de alívio, por ter feito isso, voltei a descuidar-me e mais uma vez fiquei perdido em lembranças.

— Green, Green. — Chamou o Richard, com malícia, indo ao meu encontro, quando viu que eu já estava fora da escola, pronto para ir para o orfanato.

— O que estão a fazer aqui? Foram suspensos! — Murmurei, sem conseguir esconder a minha surpresa por o ver com os outros dois amigos dele. — Só voltam para a escola para a semana.

O George aproximou-se de mim, tentando ser intimidador devido ao porte físico superior.

— Mas ninguém nos impede de vir aqui depois das aulas. Dizer olá aos nossos amigos.

Ele mandou-me um sorriso ameaçador e eu mordi a bochecha, tentando chegar a uma conclusão no que poderia fazer para sair dali ileso.

Era o final do dia, a professora já tinha saído e eu previsivelmente foi o último a sair. Eu fazia sempre isso, tentando ficar o máximo de tempo possível sem estar no orfanato. Como o orfanato se encontrava perto da escola, ficou decidido que os alunos mais velhos levavam os mais novos para lá, no final das aulas. Porém, o que acontecia, era que eles faziam o que queriam e os mais novos iam para o orfanato sozinhos, o que me permitia ficar na escola, a ler, até o último funcionário sair e fechar os portões.

Olhei em volta à procura de uma rota de fuga, mas eles os três, o Richard, o George e o seu irmão, estavam a rodear-me, proibindo-me de fugir.

— Acho que nós merecemos uma grande recompensa pelo que nos fizeste passar, pequeno órfão. — Sibilou o Richard, aproximando-se, perdendo os seus olhos no livro que a Hermione me tinha dado naquele dia para ler. — Podes começar por esse livro. — Disse, estendendo a mão.

Inconscientemente, agarrei mais o livro contra o meu peito. Primeiro, não era meu. Segundo, a Hermione tinha confiado que eu não iria destruir o livro. Ela tinha sido a primeira pessoa que tinha confiado um objeto em mim e eu não podia trair essa confiança.

— O que estás à espera? — Perguntou o George, ficando à minha frente, estalando os dedos.

Eu expirei, decidindo finalmente o que fazer.

— O livro não é para vocês! — Olhei diretamente nos olhos do George, o chefe, mostrando que não tinha medo, enquanto dizia aquelas palavras. Eu não iria trair a confiança de uma pessoa assim. Eu não era como os adultos que me tinham abandonado!

O George estreitou os olhos e tentou agarrar-me, no entanto, eu desviei-me, pisando com força o seu pé esquerdo, enquanto tentava passar pelo seu irmão, o mais fraco dos três, para fugir. Porém, o Richard devia de esperar isso porque num movimento fluido, ficou ao meu lado e agarrou na minha camisola, mandando-me contra o George que por sua vez me mandou contra a parede do muro que rodeava a escola.

— Já devias ter aprendido a tua lição, Green. — Murmurou o George, dando-me um murro que me fez escorregar pela parede.

Tinha a intenção de mal batesse contra o chão, tapar o livro com a minha mala para não o estragar de nenhuma forma, mas antes de conseguir fazer isso ouvi outra vez uma voz fina.

— Mãe, são eles os rapazes que te falei!

Pisquei os olhos, pensando se não estava a alucinar com a Hermione. Contudo, o George desapareceu rapidamente da minha frente e eu vi a figura da Hermione aparecer e ajoelhar-se, para ver se eu estava bem. Pelo canto do olho, vi uma senhora loira a gritar com eles os três, a dizer em como ia falar com os pais deles.

Consegui perceber facilmente que ela era a mãe da Hermione, pelo cabelo igual, encaracolado, apesar de mais curto, estando até ao queixo, e a feição da face. No entanto, a minha atenção foi outra vez reclamada pela filha dela.

— Harry, estás bem?

Voltei a piscar os olhos, tentando recuperar do murro, do resto de adrenalina que ainda tinha no meu sistema e de tentar perceber o que estava a acontecer.

— Ajudaste-me… outra vez. Porquê?

A Hermione estreitou os olhos castanhos claros dela, parecendo ficar ofendida com aquela pergunta.

— Porque estavas a sofrer devido às ações daqueles imbecis. — Dei um ronco, achando demasiado engraçado ela usar aquela palavra, tendo aquela idade. — Estás bem? — Voltou a perguntar, mexendo suavemente no meu cabelo.

Eu assenti, lembrando-me do livro dela que estava nas minhas mãos.

— Toma. Não é segura eu tê-lo. Eles queriam-no. — Murmurei, empurrando o livro contra ela.

A Hermione enrugou a testa, parecendo inicialmente confusa e depois furiosa.

— Isto tudo aconteceu por causa desse livro? — Içou, completamente irritada.

Voltei a assentir.

— Tentei protegê-lo e acho que não se danificou — murmurei, observando o livro — mas é melhor ficares com ele. Obrigado e desculpa.

Senti uma mão segurar o meu queixo para me forçar a olhar para os olhos claros da dona dela.

— És idiota? Devias ter dado o livro se isso iria fazer com que não te magoasses.

— Mas o livro é teu…

A Hermione abanou a cabeça, parecendo exasperada.

— Tu não percebes? Eu não quero saber do livro se isso fizesse com que não te magoasses. — Murmurou, mexendo distraidamente na minha bochecha que devia de ter começado a inchar pela dor que sentia. — Anda! — Exclamou, sem aviso, levantando-se e estendendo a mão para mim. — A minha mãe sabe como te aliviar a dor. É uma médica. — Disse dando-me mais um sorriso brilhante típico dela.

Olhei para a mãe dela e vi que ela estava ainda a discutir com os outros três que só assentiam constrangidos até que o Richard murmurou alguma coisa que a fez estreitar os olhos mas concordar com a cabeça, vendo-os, de seguida, sair de perto dela. Quando o olhar da Sra. Granger se fixou em mim, com preocupação, lembrei-me da Hermione, que ainda tinha o braço estendido, num gesto não-verbal de ajuda. Pensei em recusar e ir sozinho para o orfanato mas depois lembrei-me de todo o esforço que ela teve em me ajudar.

Aquilo podia ser um erro mas pela primeira vez em muito tempo, eu sentia esperança e, por esse motivo, dei-lhe um ligeiro sorriso, aceitando a mão estendida.

— Obrigado…. Hermione. — Murmurei e senti que fiz a escolha correta quando vi o sorriso dela alargar-se ao ver que a tinha tratado pelo primeiro nome.

Mordi a língua, para sair daquela memória que consistia na primeira vez que tinha visto a Sra. Granger. Ela tinha-me curado e tratou-me com tanta simpatia que a partir daquele dia, eu admirava-a completamente. Senti uma estranha vontade de gargalhar ao lembrar-me que a Hermione só me ajudou naquele dia por uma estranha coincidência. A mãe dela teve uma complicação na clinica que trabalhava e atrasou-se fazendo com que a Hermione tivesse ficado na rua, à frente da escola, à espera da mãe. Quando viu os outros três atacarem-me, ela não conseguiu resistir e foi-me ajudar. Pelo menos a partir daquele dia, o George e o seu gangue nunca mais me atacaram quando estava na presença da Hermione, que era quase sempre, apesar de isso não ter parado os insultos verbais tanto para mim como para ela.

Senti a Natalie fixar-se noutra memória, mas desta vez eu não a iria deixar ver mais nada. Para tal, mordi outra vez a língua e a dor fez-me concentrar em levantar os meus escudos mentais e vi com prazer, aparecer a imagem da Natalie à minha frente, conforme voltava a ganhar consciência. Não evitei sorrir quando ouvi uma exclamação de dor e senti-a sair completamente da minha mente.

— Não precisavas de magoar a minha língua. — Reclamou, irritada, pondo uma mão na bochecha.

Corei, inconscientemente, ao concluir que aquela dor deve ter sido causada pela minha magia ao tentar defender-me, fazendo-lhe o mesmo que eu fiz a mim próprio.

— Desculpa, foi involuntário.

Ela piscou os olhos, parecendo surpreendida com o meu pedido de desculpas.

— É natural. Foi a tua forma inconsciente de te defenderes. Eu é que devia de estar preparada. — A Natalie observou-me, silenciosamente, durante alguns segundos, parecendo estar a processar o que tinha visto enquanto observava a minha figura com os seus olhos cinzentos, sem emoções. — Queres continuar ou preferes parar?

Devido àquelas memórias eu queria fazer duas coisas antes de ter outra sessão com a Natalie. A primeira era ir até ao meu quarto e ver a caixa que a Serena me trouxe com coisas minhas, da época em que vivi com os Smith. Estava tão irritado quando ela me deu isso, na época do Natal, quando ela e a Rose foram viver para a casa dos meus pais, que eu a escondi num armário sem a abrir, querendo enterrar o meu passado com essa atitude. No entanto, agora estava curioso se o livro que a Hermione me deu, aquele livro da lembrança, também lá estava.

A segunda coisa era falar com a Lily, para ela me ajudar a formar uma maneira mágica de atacar a mente de outra pessoa, quando ela tentava ver a minha. Porém, isso poderia esperar.

— Preferia que parássemos por hoje.

A Natalie assentiu distraidamente.

— Muito bem. Acredito que da próxima vez já não me vais menosprezar como aconteceu agora.

As minhas bochechas ficaram mais quentes, por saber que as palavras dela eram verdades.

— Nunca imaginei que fosses… — parei, não sabendo bem como continuar. Estava para dizer boa, mas não a queria elogiar. — tão eficiente em oclumência.

Ela deu uma gargalha, deixando-me completamente espantado, enquanto via a aparência fria dela desaparecer para uma Natalie adolescente e divertida.

— Eu já sou experiente em oclumência à algum tempo. — Ela murmurou, dando-me um ligeiro sorriso. — Mas acho que foi uma boa experiencia para ti. Nunca desprezes o teu inimigo. — Disse e apesar do sorriso ter desaparecido, os seus olhos continuaram a brilhar, ganhando tons de azul. Aquela atitude mais descontraída dela, tão rara nela, tornava-a mais humana e fez-me sentir uma sensação estranha no estômago enquanto a observava. — Bem, como não pretendes continuar eu vou ter com o Charles. Até logo.

Vi-a sair dizendo-lhe um “até logo” e só quando ela fechou a porta é que eu reparei num facto que nunca me devia ter passado despercebido. Ela não comentou nada sobre aquelas memórias. Nenhum comentário irónico, simpático, aborrecido.

Nada.

De qualquer das formas, decidi que também iria ignorar o comportamento anormal dela. Tinha as minhas duas missões para cumprir e, por esse motivo, também sai daquela sala em direção ao meu quarto, onde sorri, ao abrir a caixa e ver o meu livro. Fiquei espantado por não estar ali mais nenhum objeto para além das prendas que a Rose me tinha oferecido ao longo dos anos. A Serena tinha sabido bem escolher o que colocar naquela caixa para eu não ter más lembranças.

—--OLC---

Ainda demorei dois dias até conseguir encontrar a Lily sozinha para lhe pedir ajuda em me defender de ataques mentais, atacando eu próprio a pessoa. Quando lhe fiz essa questão, ela surpreendeu-me pela simpatia que teve, querendo ensinar-me logo. Mostrou-me como se fazia através de pequenas instruções enquanto eu meditava. Não era difícil e, por esse motivo, senti-me confiante que conseguiria fazer isso na próxima aula com a Natalie que só ocorreu no dia seguinte.

Dei um sorriso irónico quando a vi entrar na minha sala, com a delicadeza e elegância que eram inerentes a ela. Os seus olhos ficaram sem a expressão distraída que tinham quando pararam na minha figura, ficando com a sua habitual expressão estoica.

— Potter, preparado? — Perguntou, enquanto se colocava no centro da minha sala, à minha frente.

Assenti, pensando em todos os passos que teria que utilizar para que ela não visse uma única memória minha, porém estava tão imerso nos meus pensamentos que reparei demasiado tardiamente que ela já tinha a varinha tirada e tinha lançado o feitiço.

— Ele é esquisito.

Cerrei o maxilar para não responder ao comentário causado por algum dos meus colegas na escola enquanto andava pelo corredor em direção ao ginásio. Enquanto a maioria dos alunos que ainda se encontravam pela escola, depois do final das aulas, estavam a preparar-se para ir para casa, eu estava a ir para o ginásio para uma aula de boxe.

Repreendi-me mentalmente por aquele comentário ainda fazer efeito em mim quando eu já devia de estar habituado. Aquela escola era igual à minha anterior, cheia de alunos que desprezavam os órfãos e se nós demonstrássemos algum tipo de fraqueza, então eles iriam explorá-la, sem remorsos. Como tal, puxei mais os ombros para trás e endireitei-me, tentando ser o mais ameaçador possível dadas as condições.

— Não digam isso! — Ouvi uma voz feminina defender-me. — Vocês nem o conhecem!

Eu ignorei aquela voz, obrigando-me a desprezar qualquer tipo de comentário relativo a mim, inclusive os positivos.

Eu tinha que ser superior.

Eu tinha que me saber defender.

Ninguém se poderia aproximar de mim para não descobrir sobre o Louis.

Quando finalmente cheguei ao ginásio, a minha postura relaxou, ao ver que já lá estava o meu professor a falar com outro aluno.

Senti um arrepio quando observei a figura mais musculada do outro aluno.

Mordi outra vez o lábio para me concentrar e sair daquela memória, eu não queria que ela conhecesse também essa parte da minha vida. Para me defender tentei fazer o que a Lily me ensinou e concentrei-me fortemente na sensação de medo e de raiva que tinha da lembrança e projetei-a para a Natalie. Sentia-a recuar da minha mente, ao perceber que estava a ser atacada e tentou erguer uma defesa mental, porém eu já tinha entrado na mente dela.

— Black! — Murmurou uma voz com nojo. — O que estás a fazer na casa dos Slytherin? Ninguém te disse que essa parte da tua árvore genealógica já não tem nenhuma ligação com a nobre casa do Salazar Slytherin.

Eu cerrei os meus olhos, observando com desprezo o aluno mais velho que estava a dirigir a sua palavra para mim. Ele podia ter mais de um metro e setenta, ser musculado, estar naquele instante a olhar com desprezo para mim, com os seus olhos negros e parecer que tinha na sua linhagem um troll mas eu não o iria deixar desprezar-me. O meu pai tinha-me ensinado o suficiente para saber que aquela não era uma forma elegível de se tratar um ser humano.

— Desculpa?

A espécie de troll que estava a falar para mim deu um passo em frente, tentando ser ameaçador, porém eu não me deixei intimidar, erguendo ainda mais o queixo e olhando diretamente para os olhos negros dele.

— Black, eu vou ser extremamente sincero. Tu não és bem-vinda aqui.

Mordi a língua devido à brutalidade das palavras dele e fiquei sem reação. Eu podia não deixar que ninguém me desprezasse, mas também não sabia reagir perante tal frontalidade.

— Flint. — Ouvi uma voz autoritária dizer. Espantei-me ao ver que a voz pertencia a um aluno que também devia de ter onze anos e tinha acabado de entrar em Hogwarts. — Os Black são uma das famílias muito nobres e eu acredito que desprezar dessa forma o membro herdeiro dessa família não seja a atitude mais sensata. Devias de ter cuidado com as tuas palavras.

Não queria ser salva por ninguém e muito menos por uma pessoa que nem conhecia e que não era mais velha do que eu. Se ele me conseguia defender, eu também deveria de ter essa capacidade.

— Malfoy. — Proferiu aquele jovem/Troll que parecia não saber como agir dados os novos desenvolvimentos. — Fico feliz em dizer que não é uma surpresa por teres sido sorteado nesta nobre casa.

O rapaz loiro e com uma atitude aristocrata, olhou diretamente nos olhos do outro, enquanto dava um passo em frente e colocava uma mão no meu ombro.

— Obrigado. — Murmurou e apesar da palavra ser humilde, utilizou uma arrogância tal, que demonstrou que continuava infeliz com o outro jovem. — E também espero que não seja uma surpresa a minha prima ter sido selecionada para esta casa. Afinal, todos da minha família estão destinados a grandes coisas. — O Malfoy fez uma pausa, onde observou o outro rapaz com os seus olhos frios a demonstrarem puro desprezo. — Espero que concordes comigo.

O Flint assentiu, num gesto rápido, dando-me a certeza que ele temia o mais novo.

— Ainda bem. — Eu não consegui conter a minha admiração pela forma como ele conseguiu manipular aquela situação e, por esse motivo, virei-me para ele, quando vi o Flint sair dali, rapidamente.

— Natalie Black, — o outro rapaz começou, formalmente — eu chamo-me Draco Malfoy. — Ele observou-me mais uma vez. — Estamos relacionados por sangue. O teu pai é primo da minha mãe. Espero que durante estes anos possamos honrar esse laço de sangue e forjar uma aliança benéfica entre nós. — Murmurou, estendendo o seu braço.

Olhei para a mão branca como a neve, pensando nas palavras dele. Ele queria forjar uma aliança? Apenas por causa do laço de sangue? Relembrei-me das palavras do meu pai, quando ele divagava sobre a loucura dos Black e em como todos os outros membros da família eram bruxos das trevas.

Eu não queria uma aliança para Hogwarts, queria uma amizade como a que o meu pai tinha com os meus tios. Por esse motivo, recusei apertar-lhe a mão, olhando-o diretamente nos olhos.

— Eu agradeço teres-me apoiado Malfoy — disse, tentando endireitar-me para ser a mais intimidadora que conseguisse — mas temo que tenho que recusar essa proposta. — Fiz uma pausa, pensando se deveria de acrescentar mais alguma coisa, ao ver a expressão chocada do outro rapaz. Porém, não me lembrava de nada. Eu não podia justificar com a frase “eu quero amigos não alianças”. Isso era ser criança. — Desejo-te um resto de boa noite. — Murmurei, finalmente lembrando-me de algo para dizer e sai dali, não observando os olhos dele estreitarem-se com raiva incontida.

Fui expulso da memória com agressividade e fiquei outra vez na minha sala a olhar para a Natalie que estava tão furiosa que nem me deixou explicar, acertando-me outra vez com o feitiço.

— De que é que tens medo, Grande D. Eu sou só um pequeno órfão. Oh! — Disse, parando de falar dramaticamente ao ver que o outro rapaz que estava à minha frente continuava sem reagir, apenas cerrando os punhos. — Já sei qual é o problema. Tens medo! — Exclamei, tapando a minha boca com as minhas duas mãos, numa expressão de falsa surpresa.

Como esperava, o Dudley, um rapaz que apesar de ter a minha idade era muito mais forte, tanto de músculos como de gordura, estreitou os olhos e bateu com um punho na mão, tentando ser ameaçador. Eu só destapei a boca e ri-me, manipulando-o para o deixar completamente furioso, ao ver que estava a ser ridicularizado à frente dos seus outros dois amigos.

Como esperado, ele mexeu a cabeça ligeiramente para a esquerda, o primeiro sinal que estava a ficar irritado, fazendo com que o seu cabelo curto, se mexesse ligeiramente para esse lado, também. De seguida, abriu e fechou uma mão gorda, tentando acalmar-se, porém, os incentivos dos seus outros dois colegas fizeram com que o Dudley não conseguisse ficar calmo, decidindo finalmente lutar comigo.

— Smith! — Rugiu, tentando assustar-me. — Tu é que pediste por isto.

Deu um passo em frente e eu relaxei os ombros, sorrindo. Foi preciso eu provocá-lo, fora da escola, quando estava com os seus dois amigos para finalmente conseguir lutar com ele. Ele fazia bullying, desprezava os mais novos e teve a infelicidade de eu o ter ouvido a chamar-me de pequeno órfão no dia anterior, quando estava a justificar aos seus amigos o porquê de eu não participar em torneios quando ia a todos os treinos. A resposta dele foi “é um pequeno órfão que não tem talento”.

A verdade era que eu não queria participar em torneios para não alarmar o Louis por muito que o professor insistisse, por dizer que tinha potencial. Tinha lutado apenas uma vez com o Dudley e tinha ganho facilmente, o que fez com que eu fosse evitado por ele como se tivesse uma doença contagiosa. Provavelmente, também era esse o motivo para ele estar a fugir daquela luta, quando ele era uma pessoa que lutava com os outros alunos pelo mínimo desrespeito, para mostrar o seu poder. Mas para azar dele, eu queria lutar e não uma luta como a de boxe. Uma luta onde pudesse usar os meus punhos nus, onde pudesse sentir algo a partir-se. Uma luta onde pudesse fazer o que o Louis me fazia quase diariamente e ele iria ser a minha presa.

— Não tenho medo, Dudinha. — Murmurei, usando o nome que tinha ouvido a mãe dele dizer, num dos torneios em que fui observar. Esta foi a isca perfeita porque num segundo, o pouco autocontrole que ele ainda tinha desapareceu e o Dudley aproximou-se de mim, finalmente com a intensão de lutar.

Sorri, sentindo a adrenalina e entreguei-me aquela luta completamente, parando de ver o outro rapaz de 13 anos. e passando a ver um homem muito mais velho, com olhos castanhos diabólicos. Aquela era a minha vingança!

Ofeguei, conseguindo sair daquela lembrança, provavelmente devido à Natalie ter perdido o interesse ao ver que era uma luta séria e sangrenta, no qual, o Dudley tinha saído com dois olhos negros e um braço bastante magoado. Cerrei os dentes, ao senti-la a andar na minha mente, parecendo querer escolher a próxima lembrança e eu aproveitei-me dessa desconcentração da parte dela para contra-atacar, usando o meu sentimento de raiva e isolamento para tal.

Não era justo!

Ergui a cabeça, tentado esconder aquele pensamento que nas últimas semanas não saia da minha cabeça, seguindo os outros Slytherin para a sala comum. Ninguém me dirigia a palavra depois de ter recusado a proposta do Malfoy. Só a Tracey, uma colega também do primeiro ano, é que falou comigo no primeiro dia devido a ter sido desprezada pelos restantes alunos por não ser sangue-puro. Porém, no dia seguinte, vi outra aluna falar com ela, a Greengrass, e ficaram rapidamente amigas, ignorando-me em conjunto.

Por várias vezes pensei em dirigir a palavra ao Malfoy, principalmente na aula de voo, no qual ele foi extremamente rude para o Neville e começou a troçar dele. Mas, em vez de repreender o outro aluno Slytherin, fiquei paralisada, a observar os alunos da minha casa rirem-se do meu amigo, enquanto a única pessoa o ajudou foi uma Gryffindor do primeiro ano, chamada Hermione Granger. Não consegui evitar sentir ciúmes ao vê-la protegê-lo, sem restrições, enquanto eu não conseguia agir. A sua eloquência era tão elevada que os restantes alunos da casa dela, rapidamente vocalizaram o seu apoio ao Neville e o Malfoy teve que se retrair e ficar no meio dos Slytherin, fazendo comentários depreciativos ridículos, principalmente, na direção do Weasley, mas muito mais contido e entregando a contragosto o lembrador à Granger.

Desde esse dia, que o pouco apoio que tive fora dos Slytherin desapareceu, vendo o Ron Weasley a tratar-me como uma traidora e o Neville a evitar-me. Pelo menos os gémeos e o Cedric falavam comigo ocasionalmente quando me viam nos corredores.

Cerrei o maxilar quando cheguei à minha sala e fui impedida de continuar pelo Flint que sorriu e mais uma vez, fez com que ficasse com a dúvida se ele não estava relacionado na sua árvore genológica com um troll.

— Black. Preciso de ter uma conversa contigo. — Murmurou, com os seus olhos a brilharam maliciosamente.

Não era justo!

A minha única reação foi tentar esconder as minhas emoções e pensamentos da minha expressão e a olhar ameaçadoramente para ele. Não achei que tivesse resultado, mas se fosse cair pelo menos ia ter classe! Eu não ia deixar aquele idiota pensar que me assustava por muito que efetivamente fosse isso que acontecesse.

— Em que te posso ajudar, Flint? — Apesar do conteúdo ser amigável, usei a minha voz mais fria.

O estúpido, ignóbil, idiota apenas se riu, ou melhor, gargalhou, deixando cair a sua cabeça para trás, tal era a sua diversão.

— Em que me podes ajudar? Ainda perguntas em que me podes ajudar? — Ele riu-se mais um pouco, até que finalmente parou, retirando a varinha do seu bolso, brincando com ela, enquanto falava comigo. — Black, a tua presença aqui, na nobre casa de Salazar Slytherin, é uma ajuda suficiente. Eu sempre odiei o teu pai — o Flint estava a falar mal do meu pai? — e agora vou conseguir finalmente me vingar… na sua querida e amada filha.

Ele deu-me um sorriso gigante, mostrando os dentes da frente, que eram demasiado grandes para a sua face, e eu cerrei o maxilar, não conseguindo esconder a minha raiva por aquele ser.

— O meu pai é o chefe de a Mui Antiga e Nobre Casa dos Black! Por isso, tem em consideração a forma como falas dele. — Murmurei, estreitando os olhos e andando ameaçadoramente na direção dele, esquecendo-me que era eu que estava em desvantagem ali. — Ou melhor, dada a tua posição na sociedade o melhor é, inclusive, nem sequer o mencionares porque não te consegues igualar nem ao chão que ele pisa!

O idiota ficou a olhar para mim, parecendo não acreditar no que estava a observar. Eu cerrei os dentes e retirei também a minha varinha. Eu sabia fazer magia e havia de me conseguir defender daquele pateta que provavelmente nem sabia escrever.

— Isso é engraçado. — Disse, passados uns segundos, nos quais ficou, provavelmente, a pensar em como deveria agir. — A Natalie Black, filha do traidor, diz-me que eu não posso falar sobre ele?

Ele olhou em volta, querendo ganhar apoio da audiência que consistia em pessoas do ano dele e dos primeiranistas. O seu olhar perdeu-se no Malfoy que observava estoicamente a situação que se desenrolava. Ao ver que eu também o estava a encarar, deu-me um sorriso frio, acenou para o Flint e saiu dali, indo na direção do seu quarto. O Flint pareceu ler aquela reação como apoio porque olhou para dois colegas dele e chamou-os com um gesto. Eu tentei chamar a atenção dos outros primeiranistas, a ver se algum me defendia como a Hermione Granger fez em relação ao Neville, mas a Parkinson observava-me intensamente, parecendo apoiar o Flint, a Tracey desviou o olhar e os restantes, apenas observavam.

— Como teu sénior, — começou o Flint, dando um passo na minha direção, com os seus dois colegas de cada lado — vou-te ensinar a primeira regra dos Slytherin. O poder é tudo e tu aqui não és nada!

Não tive tempo de reagir antes de um dos colegas dele me retirar a varinha com um feitiço não-verbal. Olhei diretamente para esse rapaz, observando o seu cabeço arrumado perfeitamente na sua cabeça e a forma como os seus olhos me faziam lembrar a cor da madeira envelhecida pela idade. O meu olhar deve ter sido tão intenso que ele desviou o seu para o Flint, entregando-lhe a varinha.

— A segunda coisa, — continuou agarrando a minha varinha — é que nós só ajudamos alguém quando somos beneficiados e tu não tens nada a oferecer.

O Flint deu mais um passo em frente, ficando a pouco centímetros de mim e obrigando-me a olhar para cima, para o conseguir olhar.

— A terceira coisa — murmurou, e inclinou-se para ficar a olhar-me diretamente nos olhos — é que nós não perdoamos.

Ele afastou-se de mim, dando um passo para trás, enquanto fazia um gesto com a varinha e a minha capa caiu, a minha gravata verde e o símbolo dos Slytherin desapareceram, aparecendo do meu lado esquerdo superior, no casaco, a palavra “Traidora”.

O meu coração bateu fortemente, ao sentir aquilo acontecer rapidamente e ao ouvir o riso dos outros três Slytherins mais velhos. Eu era uma Black!

Eu não podia ser envergonhada!

— Tsc, tsc, — ouvi uma voz mais jovem dizer, passando por nós, sem me dispensar mais do que um olhar arrogante — devias ter sabido escolher os teus amigos melhores, Black.

Olhei com nojo e irritação para o Malfoy que apenas saiu da sala comum para o corredor, sem me mandar um segundo olhar.

— Por último, Black, — Flint continuou, fazendo-me lembrar que a verdadeira ameaça era ele — um verdadeiro Slytherin usa todos os recursos disponíveis para ter o maior aproveitamento. Como tal, — murmurou, dando-me um sorriso predador — tens que compreender porque é que te vou usar para atingir o teu pai.

Senti a minha cor desaparecer.

Não!

Aquilo não poderia estar a acontecer!

Por que é que eu quis ir para os Slytherin? Devido ao meu sonho estúpido de infância? Se tivesse escolhido os Gryffindor, neste momento, estava a brincar com os Weasley e a ser protegida pela Granger.

Não era justo!

— John, — chamou, olhando para o outro rapaz que ainda não tinha agido — faz o combinado.

Aquilo tinha sido combinado. Os Slytherin realmente eram maldosos. Não havia esperança para eles e eu, idiota, pensei o contrário! Eu nunca mais ia agir antes de pensar e seguir sonhos utópicos. Se algo bom não existia na sociedade, não era devido à falta de vontade das pessoas, era por ser impossível!

O John, o jovem que devia de fazer parte da equipa de Troll’s/humanos, da qual o Flint também pertencia, apontou a varinha para mim e deu-me um sorriso frio.

— Infelizmente, para ti, Black, —murmurou o jovem com voz rouca — eu estou a aprender a fazer ataques mentais e tu vais ser a minha cobaia! Legilimens…

Fechei os olhos, senti um pensamento “a tua pior memória…tristeza…vergonha” e, passado um instante, não estava na sala dos Slytherin, mas em casa.

Já chega!

Assustei-me quando ouvi a Lily gritar e fui até às escadas, olhando para baixo, onde estava o meu pai e o meu tio, cambaleantes e vermelhos, na sala, a olharem para a Lily, que estava enraivecida.

— Já estou farta deste comportamento de crianças! Pode só ter passado um ano, mas se a forma de vocês respeitarem o Harry é beberem até não se lembrarem como se chamam, então eu vou desisto!

Os outros dois homens agarraram-se ao sofá, para conseguirem ficar em pé e olharam para a única mulher presente.

— Lily….

— Chega, Sirius! Tu tens uma filha! Tu tens que ser o exemplo! Imagina que ela acorda e vê-vos assim? É assim que querem criar uma criança? A estarem sempre ausentes de casa e quando aparecem estão neste estado? — Perguntou, com nojo evidente na sua voz.

— Li-ly…

— E tu, James! Eu não me casei com um homem que mal sabe pronunciar o meu nome. Eu também tenho saudades do Harry. Eu também choro pela sua morte. Eu também daria a minha vida pela dele num instante, como sabes que eu estava disposta. Mas não me vês a beber ou a sair de casa sem justificação, pois não? Se não fosse eu, a Natalie não tinha tido ninguém hoje em casa. É assim que querem criar uma criança que brevemente nem sabe o que é alegria?

Os outros dois homens pararam, estupefactos, sem conseguir falar.

— Se vocês vão continuar assim, eu não vos quero ver mais na minha vida. — As suas palavras duras e o tom venenoso que a usual doce tia Lily tinha deu-lhe vontade de chorar, mas controlou-se porque sentia que eles não podiam saber da sua presença. — E vou pensar seriamente em limitar o vosso contato com a Natalie. Devia de ser a Marlene aqui, Sirius, eu sei, mas, por Merlim, ela é a tua filha e ela precisa de ti. Se não consegues fazer isso então o melhor é estares menos com ela. Ela não precisa de um pai que não sabe sorrir, só sabe dar respostas monossilábicas e não faz nada com ela!

— Mas Lily nós queremos o Harry… — Murmurou o James, começando a chorar.

Olhei espantada, não conseguindo compreender qual era o motivo para o meu pai e o meu tio terem começado a chorar. Até a minha tia pareceu suavizar, dando um passo na direção deles, até que o James se dobrou e vomitou para a frente dela. A sua expressão mudou automaticamente, ficando enraivecida.

— Rua! — Gritou. — Vão dormir num hotel, na rua, com a primeira mulher que virem. Eu não quero saber. Só quero que desapareçam daqui. — Quando a única resposta foi eles olharem para ela, a minha tia endireitou-se. — Vocês ouviram-me —murmurou retirando a varinha — desapareçam! — Rugiu, assustando-os.

Eles saíram dali para a rua, cambaleantes e a porta fechou com um estrondo. A Lily viu aquilo sem reagir, apenas descendo o olhar para o vomitado à sua frente e limpou-o, com um gesto fluido da sua varinha. Por um instante, achei que aquilo era o fim e decidi gatinhar até ao meu quarto e fingir que estava a dormir, caso ela fosse confirmar, porém, quando estava mesmo para me virar, a Lily soluçou e caiu para o chão, sem força, chorando fortemente.

— Porquê? Porquê? — Gritou. — Deveria ter sido eu, Harry e Marlene.

Sai daquela memória da minha infância, sentido toda a tristeza dela e raiva pela situação em que estava, ao ver o sorriso vitorioso do John.

— A família perfeita afinal não é assim tão perfeita. — Murmurou, olhando para o Flint que assentiu e olhou para trás, onde os primeiranistas estavam sentados.

— Os Slytherin são como uma grande família. Alguém magoa um de nós e todos o protegemos, inclusive dos professores. Senão é considerado um traidor como aqui a Black. O mesmo acontece quando temos uma ovelha negra na família que precisa de aprender uma lição. Nós ensinamos-lhe, da maneira difícil e é bom que ninguém interfira com os nossos planos. Nós acabamos de ver a pior memória dela e não temos nenhum problema em a usar se ela disser alguma palavra ao seu pai ou algum professor sobre nós. O que deve de manter o silêncio dela. — Ele olhou para trás, para mim, que ainda não tinha energia para responder demasiado consumida nas minhas emoções. Pareceu gostar de ver que ainda estava em estado de choque porque olhou outra vez para os outros alunos. — Por isso, espero não ter que ensinar a mais ninguém, o que ser um Slytherin implica.

O Flint voltou a olhar para mim, sentido prazer ao observar que eu mal tinha energia para me manter em pé, estando as minhas pernas a tremer.

— Sendo que agora todos perceberam o que está a acontecer, John, o que achas de retirar algumas memórias vergonhosas do pai dela, que possamos usar no futuro? — Perguntou, olhado cúmplice para o outro que assentiu, também sorrindo.

O John voltou a levantar a varinha, mas não mandou o feitiço porque uma voz autoritária fez-se presente.

— Mas o que é que está a acontecer aqui? — Perguntou o professor Snape, conforme entrava ao ver o outro aluno mais velho apontar-me a varinha. O seu olhar fixou-se nele, até ele baixar a varinha, onde passou para mim, analisando a minha roupa, mais especificamente, o sítio onde tinha escrito “Traidora”.

Ele parou ao meu lado e o seu olhar frio fixou-se no Flint.

— Espero que haja uma justificação sobre o motivo pelo qual tenho uma aluna da minha casa com roupa imprópria para andar em Hogwarts.

O Flint deu de ombros, parecendo inocente.

— Era mesmo isso que queríamos perceber. Acho que foi alguém das outras casas por ela ter vindo para os Slytherin quando o seu pai é um defensor do Dumbledore.

O Snape estreitou os olhos, fixando os seus olhos inexpressivos em mim.

— É verdade o que o Flint acabou de dizer?

Olhei para o Flint, que continuou com a sua expressão mais inocente a olhar para o Professor Snape. Os meus olhos percorreram rapidamente os outros alunos que ou desviaram o olhar ou também tinham expressões de inocência e preocupação com o meu bem-estar.

Eram todos hipócritas!

— Sim, Professor. — Murmurei. — Eu não consegui ver quem foram os culpados e o Flint apenas demonstrou preocupação com o meu estado. Ele estava, inclusive, atualmente a dizer-me que os Slytherin eram como uma família.

O Flint não conseguiu esconder a sua surpresa, ao ouvir as minhas palavras, mas eu não senti prazer por o surpreender. Estava demasiado presa nos meus sentimentos de revolta para lhe dar atenção.

— Muito bem. — Murmurou o Snape, desviando o olhar para o Flint. — Eu preciso de falar contigo sobre a equipa de Quiddish.

Quando os vi a sair da sala comum, finalmente senti prazer ao chegar a uma conclusão. Eu era uma verdadeira Slytherin, afinal, poderia só conseguir vingar-me aos cinquenta anos de idade mas eu nunca o iria perdoar.

Quando sai daquela memória, deparei-me com uma Natalie enraivecida, vermelha, a apertar tanto a sua varinha que ela lançava faíscas. Demorei uns segundos a reagir, estando a tentar perceber o que tinha acabado de observar e nesses segundos, ela apenas estreitou os olhos e deu um passo na minha direção.

— Feliz, Potter? — Sibilou, parecendo tanto a menina da lembrança, devido ao tom frio que usou, que não consegui evitar engolir em seco. — Era isso que querias ver? Era? — Deu mais um passo na minha direção e os seus olhos que brilhavam irados ficaram cada vez mais perto dos meus. — Uma memória vergonhosa, na qual eu também sofria? — Murmurou e a única coisa que eu senti antes de ficar preso na minha memória foi a varinha dela contra o meu peito e as suas últimas palavras. — Agora é a minha vez de ver o que eu quero!

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.