Keller morava na maior casa da cidade, era de uma arquitetura avançada para a época e tinha uma fachada desenhada para parecer um castelo. Ele nunca saia, exceto com sua carruagem para o banco ou para a câmara dos parlamentares, quando era requisitado. Não falava com ninguém e não recebia ninguém.

Mas com Thompson era diferente.

Ele chegou e foi logo liberado pelos guardas de Keller, que já o conheciam.

_ Se não tiver um bom chá nessa chaleira eu vou embora!

Keller o abraçou e o convidou para se sentar à mesa. A janta estava posta para dois, pois ele sabia que o amigo viria.

_ Então, Tom, como está mamãe?

_ Ela está bem, e mandou-lhe lembranças. Pede sempre sua presença lá.

_ Tenho estado ocupado com aquele maldito caso da construção de mais um hospital...

_ Hospital não é uma boa coisa?

_ Para ganhar dinheiro? Ou “angariar fundos” como eles colocam... Se não permito, dizem que estou impedindo os doentes de ter seu lugar de dignidade, e se permito será mais uma instituição que usa a ignorância da população para enriquecer. Ah, é uma situação difícil... – ele notou que o amigo parecia distraído. – Não está me ouvindo?

Mas Thompson se lembrava do que disse Novella sobre a doença de sua mãe.

_ Keller, aquela senhorita..., Novella...

_ Sabe que não podemos falar sobre isso, Tom! Por favor!

_ Não é sobre o caso. Ela me disse que queria que seu irmão fosse um médico...

_ Você disse isso, Tom. O que tem a ver com...

_ Ela queria que ele fizesse a diferença! Que ele fosse doutor de ricos ou pobres, de reis ou plebeus...

Keller se lembrou de seu pai quando lhe disse:

_ Não importa a quem está julgando, se rico ou pobre, se um juiz como você ou um criado. Perante Deus somos todos iguais. Todos têm direitos e deveres iguais.

O critério que ele usou por toda sua carreira como um homem da lei beneficiava a população, mas não surtia efeito entre eles mesmos. Mas uma mulher que nem era filha de Fraterna, tinha a mesma visão de seu pai.

_ Bem, ela sofreu com a morte de sua mãe. É natural que tenha esse desejo.

_ Disse que ela morreu de meningite. Não existe cura para essa doença?

_ A medicina é um campo que domino pouco, mas acho que sim.

_ Ela nem sabe o que é isso. Mas sabe do desprezo com que trataram sua mãe. Não foram justos com ela.

_ O que quer que eu faça? Não posso exigir que se cure todos os criados que adoecem...

_ Ora, Keller, você é o Juiz!

_ Sabe que há limites. Situações em que meu poder acaba. E você me conhece, sabe que eu faria justiça... Se pudesse...

_ Me desculpe, eu sei. Mas a situação daquela menina mexeu muito comigo...

_ Não é prudente que falemos dela, Tom.

_ Ok! – ele se levantou – Entendo que é um assunto para o tribunal. Mas não estou com o Meritíssimo Juiz Keller neste momento, e sim com meu amigo Keller. E eu preciso que saiba que ela é inocente!

_ Cale a boca, Tom! – disse quase implorando.

_ Saiba também que além desse caso de assassinato onde já sabemos quem é o culpado, há um caso moral, do qual uma jovem humilde pode sair ferida ainda mais do que já a feriram.

_ Thompson, sente-se, por favor! Veja o que está fazendo! Nunca trouxe seus casos para minha casa! O que há com você, pelo amor de Deus? – Thompson se calou e se conteve, tomando sua sopa.

Depois de alguns minutos em silêncio, Keller disse:

_ Entendo que às vezes carregar esse fardo é estressante, a gente parece que vai explodir... Já falamos sobre isso.

_ E combinamos de desabafar um com outro se necessário. - disse sem olhar para ele.

_ Esse caso é diferente! Você esta nele comigo. Prometemos não envolver nossa amizade em nenhum caso, Tom. Eu tenho que ser imparcial, e julgar sem nenhuma influência.

_ Conheço seus princípios. E você conhece os meus. Nunca precisei influenciar ninguém para ganhar um caso, e com o juiz desse caso não é diferente. Vou provar que ela é inocente, custe o que custar. - fez uma pausa – Só queria conversar com você, meu amigo. Desculpe-me! – disse com sinceridade.

Keller ficou chateado com sua própria atitude, e deixou que ele falasse, dando-lhe espaço.

_ E... O que tem nesse caso que para você parece mais importante que os outros?

_ Se trata de uma pessoa sem estrutura, sem amigos, sem testemunhas de sua integridade. E se alguém não olhar além do que ela aparenta ser, não vão ver o que vejo.

_ Seja o que for, sabes bem que é só você mesmo que vê, Tom.

_O problema é que toda a cidade já a sentenciou à morte. – encarou o amigo – Sei que é difícil para você, já que estão todos esperando que absolva uma Ernie.

_ Acha que foi ela, não é?

_ Já que perguntou... Você não?

_ Acho que ela vai ter que provar que não teve nada a ver com a morte daquela inocente criança.

_ E Novella?

_ Tanto quanto!

_ Claro! – levantou seu copo de vinho e sorriu – E ela vai.

Keller riu. Sabia que Thompson podia ver mais do que ele mostrava com as palavras.

Novella estava sentada em frente à lareira, sozinha e pensando. Mira chegou e parou sua cadeira de rodas ao lado da poltrona e lhe deu uma xícara de chá.

_ Para lhe dar um pouco de paz, ou deixa-la sonolenta, depende de como interpreta!

Novella finalmente riu. Mira era muito inteligente para uma simples criada. Ficou curiosa para conhecê-la.

_ Você é uma Ernie ou uma Cal?

_ Ernie. Mas não me importo muito com isso. Meu pai era tetraneto do grande Ernie. Mas você sabe, e todos sabem que essa tradição um dia vai acabar.

_ Tradição?

_ Sim. Essa historia de quem você é indicar a que parte você pertence na maldita sociedade. O Juiz Keller, que é um Ernie como eu, - sorriu com orgulho – disse que em breve criará uma lei que obrigará as pessoas a tirar os sobrenomes de seus bebês, e criar outros para batizá-los, para que a tradição seja esquecida e ficar apenas na história da humanidade como exemplo.

_ Você diz coisas bonitas, fala difícil! Nem parece que é criada.

_Obrigada! Na verdade eu não sou mais. Fui com muito orgulho. Mas acabou. – Novella olhou para a cadeira de rodas – Sim, foi por isso que parei. Daí então, comecei a estudar...

_ Mas mulheres não estudam!

_ Não lá fora, mas dentro de suas casas ninguém pode impedi-las, não é?

_ E o que houve com suas pernas?

_ Meningite. Fiquei curada, mas assim, sem os movimentos das pernas.

Novella ficou surpresa.

_ Meningite... tem cura?

_ Meu coração ainda bate! – disse sorrindo – Acho que isso prova que sim.

_ Minha mãe morreu de meningite.

_ Eu sei criança, e sinto muito. No caso de sua mãe pode ter sido uma descoberta tardia.

_ Ela estava sempre sendo levada ao médico, e eles não descobriam o que ela tinha. Diziam que os exames eram muito caros e que nada podia ser feito.

Seu semblante já estava afetado pelo calmante do chá, mas Mira podia ver em sua feição a tristeza ao falar de sua mãe. Pediu então que ela se deitasse para estar disposta no outro dia.

Já deitada na cama que Mira lhe preparou, Novella a observava, enquanto ela arrumava outra cama, ao lado. Mira notou seu olhar insistente.

_ O que há? Está confortável? Quer outro cobertor?

_ Não, estou bem aquecida, obrigada. É que eu estava tentando adivinhar sua idade.

Ela riu.

_ O que conseguiu?

_ Uns... 45 anos...

_ Quase! Tenho 52! – as duas riram, mas Novella logo parou. – Acha isso importante?

_ É que minha mãe tinha 45 quando morreu. Eles... Podiam tê-la curado também.

Novella começou a chorar e Mira se aproximou e afagou seus cabelos.

_ Não chores mais, criança. Vai ficar tudo bem.

Ela também não se conteve e chorou. Pensava na injustiça que a mãe de Novella e de tantas outras sofriam. Como ia dizer que só se salvou por que um juiz intercedeu por ela, ou teria tido o mesmo fim que sua mãe?

Novella dormiu e ela se deitou também. Conhecia seu problema e também a via além do que ela aparentava, como Thompson. Então se lembrou de quando a via no parque com seu irmãozinho Andy nas tardes de sol.

Era um lugar arborizado onde as babás levavam os bebes de seus senhores em seus carrinhos para passear, e para deixa-los soltos a brincar. Mira estava lá quando Novella salvou Andy de ser atacado por um cão raivoso que naquele dia apavorou a todos, chegando do nada e mordendo a quem via pela frente. Ela só pôde observar quando ele foi diretamente à direção de Andy, mas Novella percebeu e antes que ele se aproximasse do irmão ela jogou-se sobre o animal e ele sofreu uma fratura na pata traseira, sendo assim impedido de prosseguir.

Não foi o ato heroico de Novella que impressionou Mira, mas quando ela abraçou o bebê e disse eufórica:

_Ninguém vai te machucar! Eu juro!

Achou que ele fosse seu filho, pela forma com que ela o abraçava. Agora compreendia; Andy era tudo que ela tinha.

No dia seguinte, quando Thompson chegou para acompanhar Novella para o tribunal, Mira lhe contou o que havia presenciado no parque. E ele teve uma ideia.

_ Seja testemunha de defesa dela, Mira!

_ Mas, Tom, eu sou uma serviçal paralítica! Quem vai validar meu testemunho?

_ O Juiz! Esqueceu-se de quem é ele?

_ Só por que ele é meu irmão não significa que ele permitirá...

Novella apareceu de repente, e perguntou:

_ O... juiz é seu irmão?

Thompson procurou contornar a situação.

_ Sim, irmão de tradição! – sorriu sem graça – Ele é um Ernie como Mira. A propósito, ela vai testemunhar a seu favor.

_ Se a descendência vai contar... Ramona também é uma Ernie. Não preciso de mais um.

Ela entrou na carruagem e lá esperou que Thompson entrasse.

Ele estava preocupado. O segredo de que Mira e Keller eram irmãos nunca fora revelado, pois se tratava de um caso extraconjugal que o pai de Keller teve com a mãe de Mira quando ela era casada. Mira nasceu e cinco anos depois Keller nasceu também. E só souberam um do outro quando em seu leito de morte a mãe de Keller lhe contou, pois seu pai também já havia morrido e ela não queria que ele ficasse sozinho. Obviamente ele teve que guardar segredo, mas contou a seu amigo, e a própria Mira.

_ Acha que ela entendeu?

_ Não, Tom, ela só está preocupada com o resultado.

_ E então, vai testemunhar?

_ Não posso. Novella está certa, será uma desgraça para Keller que uma Ernie esteja a favor dela. E se ele validar meu testemunho ficará exposto.

_ Eu não disse que Keller está a favor dela, Mira!

_ Nem precisa. Se o conheço bem, e o conheço, ele sabe que ela é inocente.

Sem poder insistir, Thompson entrou na carruagem e ordenou a saída.

Enquanto iam, ele pediu:

_ Não conte a ninguém que esteve na casa de Mira, por favor.

_ Sim. Mas eu estou com medo. Vou ter que falar hoje e não sei o que dizer.

_ Diga apenas a verdade.

_ Ramona mentiu e todos acreditaram nela.

_ Não se preocupe, a mentira que ela contou não pode ser provada. No processo consta que ninguém viu alguém saindo de sua casa.

Ela achou que Thompson podia estar certo.

Mas no tribunal as coisas não saíram conforme ele pensava.