O Homem que Perdeu a Alma

Capítulo XXX - Uma ode à estrada até aqui.


Ponto de vista de Hazel Laverne

Assim que ultrapassamos a placa grande e irregular onde há os dizeres “Bem-vindos a Lawrence” sinto um arrepio me percorrendo. Não sei quais são os planos de Jesse para engatilhar o meu controle com relação aos meus poderes da mente, e não sei o que as lembranças que esse lugar carrega irão fazer comigo.

É aqui que tudo começou de verdade. Sam e eu.

Será que é aqui que tudo irá recomeçar de novo? Ou... acabar de vez?

Ponto e vírgula, é tudo o que temos. Tenho que me lembrar disso, antes de qualquer coisa. Observo o símbolo feito por ele em meu pulso, mais fraco agora graças a tinta preta que vai se desfazendo. Mas o seu significado está intrínseco em minha pele.

Em mim.

Olho para o retrovisor, e meu olhar cruza com o dele. Talvez esteja pensando o mesmo que eu. Desvio o olhar assim que Jesse se sobressalta ao meu lado, hiperventilando.

Fico o encarando discretamente enquanto ele parece se recompor do que parece ter sido um pesadelo, e vejo meu irmão passando a mão pelo peito, perto da gola da camisa, como se houvesse algo ali que o acalmasse. Semicerro os olhos, mas decido deixar para lá.

—Chegamos? – A voz rouca dele se faz presente após um pigarro, e ele me encara em busca de uma resposta. Aquiesço.

—Você tem algum lugar em mente para ficarmos, Jess? – Quem questiona isso é Dean, que parece compenetrado na rodovia principal que nos conduz cada vez mais para dentro da cidade, para o coração de Lawrence – Nossas antigas residências não são uma opção, acredito eu, não é? Papai deixou a hipoteca de lado, abandonou a casa para o município fazer o que bem entendesse. Quanto a casa da Laverne, bom... o que houve com a propriedade, Hazel?

Todos me encaram, e eu solto um longo suspiro.

—Continua sendo propriedade da família. Está no nome da minha avó. Eu... eu nunca mais visitei, então não faço ideia do estado em que se encontra. Se houve alguma reforma ou não... podemos tentar arrombar, se vocês quiserem. Eu infelizmente não tenho a chave, como vocês podem imaginar. – Respiro fundo, incerta sobre como me sinto sobre isso.

Voltar a estaca zero é assustador.

—Se importa se fizermos isso? – Jesse me olha com cautela, sua mão gelada e comprida apoiada em meu ombro. Faço que não, tentando parecer firme.

—Não, não me importo. Podemos ir para lá agora, verificar se está em um estado decente para a gente se hospedar. – Reclino minhas costas no banco, e olho para frente, meu olhar cruzando com o de Dean dessa vez – Se lembra do caminho, certo?

Ele solta uma risadinha irônica.

—Como se fosse possível me esquecer do endereço onde tudo começou... – Ele sussurra.

O ar fica gelado de repente. Não posso me esquecer que, para os Winchester, voltar para a casa deles significa voltar ao local onde Mary Winchester foi assassinada, e Sam, amaldiçoado.

Ninguém diz mais nada a caminho de lá, e a moto de Jo Harvelle nos segue pelas ruelas da cidade.

XXX

Sou a primeira a sair do carro. A grama está rala, a neve está derretendo ao ponto de quase sumir. Estamos no início de fevereiro, então logo o inverno irá embora.

Fico parada na calçada, olhando para a casa como se ela fosse uma criatura viva pronta para me engolir. O pórtico de madeira escura está intacto, e as paredes de alvenaria branca continuam bem cuidadas. Houve reformas, com certeza. Me lembro de ver fotos do incêndio, boa parte do telhado inclinado havia cedido e o andar de cima também.

Está nova em folha. Antonella se certificou disso.

Perto da caixa de correios com o meu sobrenome gravado em branco, há uma árvore nova. É um cedro, bonito e imponente, porém não completamente desenvolvido. E ao pé do seu tronco, há alguns buquês de flores secos, com plásticos rasgados corroídos pelo tempo, e fotos dos meus pais. Sinto um aperto no peito.

Faz quatro meses desde outubro do ano passado, que é quando os fãs costumam prestar essas homenagens, então essas flores e essas fotos estão aí desde então.

Fico contemplando a propriedade por um tempo, até que vejo que Jesse está de pé ao meu lado.

—Parece... muito bem cuidada. – Ele observa, as mãos dentro do sobretudo preto. Assinto.

—Minha avó tem negócios no país inteiro, então talvez use essa casa quando vem para Lawrence, checar algumas de suas distribuidoras... – Pigarreio, trêmula. Quase posso sentir o cheiro de carne queimada se eu fechar os olhos.

Passo a mão pelo meu braço, por cima do tecido da roupa e engulo seco.

Jo Harvelle vem em direção a nós, o capacete ao lado do corpo, os cabelos loiros bagunçados pelo vento.

—Devíamos tentar arrombar pela porta dos fundos, para não chamar atenção. Se sua avó frequenta esse lugar, talvez os vizinhos não estranhem a movimentação... – Jo me encara com seus olhos castanhos, e eu concordo com a cabeça.

—Por mim tudo bem. – Dou de ombros, e me viro para trás, para onde o Impala está estacionado.

Sam e Dean estão do lado oposto da rua. Ambos parados frente a casa deles.

Jesse, Jo e eu nos entreolhamos. Silenciosamente, decidimos dar espaço a eles.

Vamos achar um meio de entrar na casa, e esperaremos até que eles voltem.

XXX

Ponto de vista de Sam Winchester.

Não esperava ir para casa um dia, não depois de tudo.

Não acho que as pessoas tenham esse momento em suas vidas, em que se perderam profundamente de quem eram ou de quem gostariam de se tornar e, no processo, sejam forçadas a encarar o que costumavam chamar de lar.

Sei que Jesse pensou nesse caso estrategicamente, porque estamos correndo contra o tempo e o poder que ele irá desenvolver com a Hazel requer algo mais intimista, por se tratar das visões dela. Como ele havia dito, “poderes da mente”. Mas não é apenas ela que está afetada por esse passeio ao passado.

De soslaio, durante toda a viagem para cá, vi Dean tamborilar seus dedos no volante, coisa que ele faz quando está nervoso. Dean tem muito mais memórias naquela casa do que eu, afinal...

Ele conheceu a família Winchester antes de sua ruína. Eu e ele temos vazios diferentes. Quando eu cheguei...tudo eram cinzas.

Ele viu a fogueira antes disso.

Dou um longo suspiro, pensando se não seria bom aproveitar para me acertar com ele, agora que estamos diante da nossa antiga casa. Olho para trás e vejo Hazel, Jesse e Jo indo rumo aos fundos da casa dela, provavelmente encontrando um meio de entrar.

Suspiro. Olhar para a casa dela dói quase tanto quanto olhar para minha. Sinto as lembranças comichando a minha mente, prontas para me machucar.

As chamas. Harvey Talbot possuído com seus olhos negros, assassinando Amélie. Hazel desacordada, seu braço em carne viva. Azazel sorrindo para mim, da janela.

—Quer tentar entrar? – A voz do meu irmão me desperta do meu transe, e paro de olhar para a casa dela, encarando o rosto de Dean. Fico hesitante por um momento. Seria prudente fazer isso? E se tiver alguém morando lá dentro? — Sei que não está falando comigo e que prefere a companhia de uma barata do que a minha, mas é a porra da nossa casa. – Seu olhar e sua voz estão feridos ao dizer isso, e eu enfio as mãos nos bolsos, nervoso – E então, o que me diz?

—Acho que não custa tentar. – Respondo, dando de ombros, de maneira fria.

XXX

A porta cedeu com rapidez, depois que espiamos todas as janelas possíveis. Não há ninguém morando aqui. O gramado irregular demonstra isso muito bem.

Está abandonada.

Quando entramos, cubro o nariz com o braço ao sentir a poeira do ambiente invadindo as minhas narinas. Dean tosse um pouco, e encosta a porta, que agora está levemente entortada pelo seu chute, atrás dele. Ficamos ambos parados, lado a lado, incertos sobre onde ir primeiro.

O chão de madeira está corroído e cheio de pó. A escada está igual, exceto que o corrimão parece ter quebrado em alguns pontos. Ando em direção ao corredor que leva para a sala, e vou passando a ponta dos dedos nas paredes verde-escuro, pelas marcas escuras e quadradas, onde retratos costumavam estar. As rachaduras estão por toda a parte.

A sala e a cozinha estão intactas, com os móveis que foram abandonados. Caramba, ninguém nunca morou aqui depois de nós?

Talvez essa casa seja mal-assombrada. Sorrio de maneira irônica com esse pensamento. Faria sentido, não faria?

—Está igualzinho a antes... – Comento, despretensiosamente, olhando tudo ao meu redor minuciosamente.

Dean assente, ainda calado. Me viro em sua direção, meu olhar percorrendo seu rosto. Está se esforçando para não chorar.

Voltar aqui é pior para ele do que é para mim, constato.

—Precisamos conversar. – Umedeço os lábios ao dizer isso, o coração acelerado com a expectativa de como essa conversa vai correr. Dean e eu somos péssimos em nos reconciliar, mestres em fingir que nada aconteceu.

E esse sempre foi o nosso maior problema.

—Precisamos, é? – Ele rebate, passando a mão pelo cabelo loiro escuro, levemente mais comprido do que o normal – Não precisa fazer isso, Sammy.

—Preciso, sim. – Respiro fundo, me encostando na parede, sem desviar dos seus olhos que me encaram, um vinco em sua testa. Está na defensiva. E eu também. Como isso pode funcionar?

Eu não tenho ideia.

—Ok, talvez precise. Mas decididamente não quer, não é? – Ele especula, dando um passo a frente, ajeitando a jaqueta jeans que o cobre – Ela convenceu você, foi isso?

Assinto.

—Ela... tentou me fazer ver as coisas de outro ângulo. E não, eu não queria. Mas...- Coço a nuca, nervosamente – Agora eu quero.

Dean assente, as sobrancelhas erguidas, o olhar analítico.

—Tudo bem, então. – É tudo o que ele consegue dizer. Droga.

Se eu não começar essa conversa, ele é que não irá.

Ficamos em um silêncio constrangedor enquanto nos encaramos por um tempo. Sinto minhas mãos formigarem e suarem, mas finalmente tomo coragem.

—Eu preciso tentar entender...como foi que você deixou isso acontecer? Essa é a maior questão para mim... – Dou um passo a frente, me desencostando da parede – Eu acho que é isso o que me perturba mais do que tudo. Sabendo de tudo o que aconteceu entre Hazel e eu, como foi que você permitiu esse sentimento aflorar em você, Dean?

Meu irmão mais velho dá um longo suspiro, inclinado entre a raiva e a culpa.

—Eu não sei, Sammy. E entendo a sua raiva, sua indignação. Porra, é tão simples, olhando de fora, não é? A ex-namorada do seu irmão não é alguém por quem você abaixa a guarda. É tão óbvio que chega a ser ridículo... – Ele começa a elaborar, mudando o peso de perna, inquieto – Mas aconteceu, Sammy. Eu não tenho desculpas para além do fato de que estava de coração quebrado por tudo o que tinha acontecido nos últimos meses. Porra, abandonei Lisa e Ben... - Ele passa a mão pelo rosto, aparentemente cansado de si mesmo – E tinha o meu desespero em ter perdido você daquele jeito, em Detroit. – Dean dá de ombros, e eu cruzo os braços, atento a cada palavra sua – E depois, bum! Você estava de volta, mas não era você. Sua alma estava presa naquela porcaria de jaula, e depois que a Meg contatou Castiel, Bobby e eu, sobre isso e sobre Hazel... tudo passou a ser sobre trazer você de volta e descobrir se Hazel tinha ou não envolvimento ou culpa com tudo isso. Bom, como você já sabe, não tinha. Ela estava tão fodida quanto você, e precisava de ajuda e proteção. E ela virou a pessoa mais próxima de mim... e sentia falta de você, tanto quanto eu. Acho que me conectei com ela como não tinha me conectado com nenhuma outra garota por isso, nem mesmo com Lisa....

A voz dele morre por um momento, e eu me contraio. Sinto raiva e dor. Ouvir ele falando assim dela, me faz querer morrer. E quebrar a cara dele, mas eu já fiz isso, e não melhorou nada.

—E eu confundi as coisas, ok? Estava vulnerável e perturbado da cabeça. Nada disso é desculpa, Sammy. É errado ter me apaixonado por ela assim, eu sei disso. Eu sei disso desde o começo! Mas eu não tinha mais nada, nada! – O peito dele sobe e desce, nervosamente – Estava vazio por dentro, obcecado em resgatar a sua alma e proteger a garota. Ela preencheu essa porra desse vazio, e eu abaixei a minha guarda. E eu vou me arrepender disso para sempre, Sammy. – Seus olhos se enchem de água, mas ele não deixa as lágrimas caírem. Minhas narinas inflam ouvindo tudo isso, e eu sinto sentimentos conflitantes demais dentro de mim, mas permaneço em silêncio – Eu quebrei a sua confiança, eu sei disso.

—Sim, você quebrou a porra da minha confiança. – Sibilo, entredentes, querendo muito chutar alguma coisa. Mas não faço nada disso. Me mantenho parado, tentando aparentar uma calma solene que simplesmente não existe – Mas não adianta tentar ficar batendo nessa tecla. Eu também já quebrei a sua confiança no passado, mais de uma vez. Não será a primeira nem a última vez que você vai fazer merda comigo ou, eu com você. Então, eu estou tentando, Dean. Eu realmente estou tentando te perdoar e te entender. E eu quase chego perto disso, mas aí eu me lembro do resto...

—Do beijo? – Dean questiona, cauteloso. Cerro o punho, e trinco o maxilar.

—Se está se referindo ao que Ruby os forçou a fazer, naquela tortura... não. – Balanço a cabeça em negativa, e busco sabedoria dentro de mim – Estou me referindo a você ter tentado beijá-la, bem antes disso.

Ele assente, e olha para baixo por alguns instantes, as mãos dentro dos bolsos.

—Eu precisava saber, Sammy. Eu precisava de um “não” para seguir em frente. – Ele consegue dizer. Isso faz o meu corpo ferver.

—E se ela tivesse te dito sim, ein Dean?! – Minha voz se altera um pouco, mas tento me conter, dando um passo para trás – Você ia ficar com ela e fazer deus-sabe-lá-o-que com ela enquanto eu apodrecia naquela jaula?!

Dean faz que não com a cabeça.

—Não, Sammy. Você precisa entender, eu sabia que ela não me beijaria. Eu sabia que ela não iria corresponder aos meus sentimentos, mas isso não era o bastante para me livrar da dor de sentir tudo aquilo. Atração, culpa... solidão. Eu precisava da porra do não dela para concretizar o que eu já sabia. E, respondendo a sua pergunta, se ela tivesse me beijado, se ela tivesse dito “sim” para isso... então eu recuaria imediatamente. – Após suas palavras, nos encaramos em silencio por um tempo.

—Depois de tudo isso, quer sinceramente que eu acredite nisso? – Sinto meu peito se comprimir – Quer que eu acredite que recuaria? - Dean assente.

—Preciso que acredite, porque é a verdade. Sammy, eu fui um idiota, eu ferrei com tudo, eu sei disso..., mas eu nunca iria além disso. Não com ela, não sabendo o que ela representa para você. E não que isso alivie as coisas, mas... desde que a resgatei e cuidei dela durante todos esses meses em que nos aproximamos, sempre tentei colocar ela no seu caminho novamente. Sempre insisti para ela que te desse uma segunda chance, especialmente depois que eu soube da grav...

Ele não termina nem a palavra nem a frase, mas eu sei ao que ele se refere. Minha garganta se fecha, e eu faço uma força gigantesca para não chorar. Eu não me permiti chorar sobre esse assunto porque tentei ser forte para ela, mas não significa que isso não me afete todos os dias, desde que eu soube.

—Desculpa, eu não quis te... deixar mal. – Ele se apressa a dizer. Droga. Ele notou que eu fiquei abalado.

—Está tudo bem. Foi muito pior para ela, eu nem tenho o direito de ficar mal com isso. – Dou de ombros, fingindo que estou firme. Mas a minha voz me trai, e minhas palavras saem levemente embargadas. Dean tenta se aproximar de mim, e eu dou um passo para trás, recuando. Não quero me abrir sobre isso – Ela perdeu o bebê, sozinha e sem a ajuda de ninguém, essa dor é dela e eu não vou transformar isso em algo sobre mim.

—É nobre da sua parte, Sammy... – O cenho dele está franzido em preocupação, a íris esmeralda me fitando – Mas não é assim que funciona. Não pode esperar que o peso dessa... atrocidade que Antonella fez com ela, não te afete também. Ele era seu também, Sammy. Você também o... perdeu.

Ele era meu também. Essa frase me corta por dentro, e eu me viro de costas, desviando o olhar dele. Apoio a mão em frente aos meus lábios e fecho os olhos.

Ele era meu também. Eu também o perdi.

—Não quero falar sobre isso. – As palavras saem com muito esforço, minha garganta queimando com um choro que eu prendo dentro de mim a sete chaves. Não vou desmoronar sobre isso, nem sobre todo o resto. Ela precisa de mim, precisa de mim firme. E eu não tenho sido firme para ela, tenho sido instável e problemático graças aos muros que caíram na minha mente. Graças a Lúcifer— Mas, voltando ao assunto, ela me disse isso que você falou. De você sempre ter... a encorajado, sobre eu e ela. – Torno a olhá-lo, mais calmo dessa vez. Engoli minha dor, engoli o meu choro. Não vou pensar sobre isso agora – Foi algo que ela frisou na nossa última conversa, quando insistiu que eu conversasse com você. E por esse motivo... – Respiro fundo, o ar denso por tudo o que estamos sentindo – Aqui estamos.

Dean assente, seu olhar ainda preocupado sobre o outro assunto pairando sobre mim.

—Eu sempre tive dois maiores medos, Sammy. – A voz de Dean soa vulnerável, e eu escuto com atenção – Um deles era perder você. Bom, eu perdi. De mais de uma forma. O outro era que o meu irmãozinho me odiasse para sempre por algum motivo. Isso me assombrava de noite, desde que me tornei responsável por você... – Seus olhos vacilam e uma lágrima despenca do seu olho, enquanto ele aponta para mim com o indicador – Eu pensava... “E seu eu errar com ele?!” – Dean respira fundo, o rosto transtornado tomado pelo choro e a mão tremendo – “E se eu fizer merda?!” desde os quatro anos de idade, o medo de falhar com você me consumiu. E eu fiz isso! – Ele abre os braços no ar, com raiva de si mesmo, o peito subindo e descendo – Eu falhei com você quando você se jogou naquela maldita jaula.... – Ele conta com os dedos, sinalizando “um” – E falhei novamente quando me apaixonei por ela! – Ele faz agora o sinal de “dois” com o indicador e o dedo do meio - Mas eu não consigo viver com o seu ódio, Sammy. Eu simplesmente não consigo!

—Eu não odeio você! – As palavras saem meio desesperadas da minha garganta. Nos primeiros dias desde que soube disso tudo, fiquei cego pela raiva, pelo peso dos sentimentos. Pensei que nunca poderia o perdoar. Mas agora eu vejo que posso perdoá-lo.

Dean sempre fez de tudo por mim. Ele cuidou de mim, foi como um pai e foi como uma mãe, e foi meu melhor amigo quando eu não tinha ninguém. Ele me alimentou, ele me livrou de milhares de coisas que eu sequer consigo contar nos dedos. E sei que ele faria isso tudo de novo, e de novo, e de novo...

Ele fez merda, sim. Dessa vez. Mas isso não anula todas as outras coisas que ele fez por mim. Principalmente o fato de ter cuidado tão bem dela, enquanto eu estava morto.

O simples fato de ver o que o meu ódio faria com Dean, corta o meu coração.

—Não odeia?! – Sua voz sai incrédula, seus olhos cheios de dor. Faço que não com a cabeça.

—Não, seu idiota! – Exclamo, o choro me vencendo como venceu a ele. Merda. Eu não pretendia ficar emotivo. Quando imaginei essa nossa conversa, pensei em algo racional e direto. Não pensei em nada do que está acontecendo agora – Eu não te odeio, Dean.

Meu irmão mais velho absorve as minhas palavras, como se elas tivessem poderes curativos. Quase consigo ver o peso enorme saindo dos seus ombros, pairando no ar, se dissipando para longe.

—E pode me perdoar? Acha que consegue, Sammy? – Ele me encara em expectativa, os olhos ainda cobertos de angústia.

Respiro fundo, e analiso tudo.

Vai demorar para essa ferida se fechar. Mas eu preciso me esforçar.

Ao menos algo eu preciso conseguir curar em mim.

—Posso, Dean. Consigo. – As palavras saem com dificuldade, mas saem – Eu só... preciso de um tempo para absorver tudo isso, ok? – Acrescento, sentindo um aperto no peito – Quero que as coisas voltem a ser como antes, quero confiar em você. Mas, essas coisas....

Minha voz morre, e Dean completa a frase.

—Levam tempo. Eu sei. – Ele constata, aquiescendo. Assinto, feliz por ele entender isso.

As minhas lágrimas secam, e as dele também. Olho ao nosso redor, para a sala, para as paredes, para o teto... isso tudo nos deixou a flor da pele.

—Você ainda...? – Especulo, depois de um tempo quietos. Ele me olha atentamente, esperando que eu continue minha pergunta, mas não consigo. É difícil formular o que eu quero saber. O peso das palavras é demais. Ele analisa o meu rosto, e fica pensativo.

—Se eu ainda... gosto dela? – Ele especula com o olhar, erguendo uma sobrancelha. Faço que sim com a cabeça, temendo que a resposta seja sim. Dean respira fundo, e contrai o maxilar levemente, tenso – Está passando, Sammy. O sentimento está indo embora. A cada dia que passa, a vejo como alguém da família, vejo que... nunca fez sentido.

Indo, passando... ou seja., ainda há algo dentro dele que arde por ela. Contraio o punho e tento lidar com isso de maneira madura e empática. Respiro fundo e aquiesço.

—Bom... água debaixo da ponte, ok? – Passo a mão pelo meu cabelo, encostando na parede perto da janela que dá para a rua – Vamos deixar isso tudo no passado.

Dean aquiesce, meio sem jeito.

XXX

—Não quer ver o restante da casa? – Dean me questiona, enquanto inspecionamos a cozinha. Faço que não com a cabeça.

—Desde que os meus muros...caíram, eu estou meio... desorientado. Desiquilibrado, até... – Completo, pigarreando e enfiando as mãos nos bolsos – Talvez antes de irmos embora de Lawrence, depois de resolvermos o caso e de ajudarmos Hazel com os poderes dela, possamos voltar aqui para ver se encontramos algum objeto de valor emocional ou coisa assim, o que acha?

Dean assente, pensativo.

—É, pode ser. Não vai faltar oportunidade, afinal... ficaremos em Lawrence por alguns dias. E então... vamos? Aposto que estão dando por nossa falta. – Ele me dá um tapinha no ombro, e eu faço que sim com a cabeça. Caminhamos até a porta da frente, mas Dean me impede de abrir a porta – Só... antes de irmos, eu queria saber. Queria perguntar umas coisas.

Fito seu olhar curioso e preocupado, e fico na defensiva. Não faço mais do que apenas assentir, receoso do que ele irá perguntar.

Dean percebe que não estou tão receptivo e parece escolher as palavras com cautela.

—Suas memórias do inferno voltaram? – É sua primeira pergunta. Dean cerra os olhos para mim, quando faço que não.

—Nada. Ainda. – Acrescento. Ele assente.

—Certo. – Ele pigarreia, antes de prosseguir – Naquela noite em que suas memórias... bom, as memórias do seu corpo...voltaram, eu imagino que tenha visto coisas que são difíceis de lidar, não é?

Olho para o chão. Sinto minhas mãos tremerem.

Todos os caçadores que essas minhas mãos mataram, a crucificação macabra do ritual que transformou meu corpo em um servo fiel e ligado a Crowley, a tortura que meus braços inferiram em Hazel...

As mãos que teriam a matado de verdade, se ela não fosse metade demônio.

—Aham. – É o que me limito a dizer, pigarreando e voltando o meu olhar para o seu, firme – Mas não quero...

—Falar sobre isso, sim, eu sei. – Ele me interrompe, respirando fundo – Só quero que saiba que pode falar...quando e se quiser. Eu vou estar aqui. Ela vai estar aqui. – Dean cerra os olhos, a mão apoiada no meu ombro. Assinto, e ele umedece os lábios antes de prosseguir – E por último...Sammy, caso esteja se sentindo ameaçado por alguma coisa, por favor, no minuto em que se sentir pronto... não hesite em procurar por nossa ajuda. Não deixe que isso, seja lá o que for... – Ele pausa por um minuto, tirando a mão de mim e colocando a mão na maçaneta – Não deixe que isso atrapalhe o que você tem com ela. Você nunca vai ser feliz sem ela, Sammy. Nunca.

Fico o encarando em silêncio por alguns instantes. Gostaria que fosse fácil assim.

Que fosse algo que eu pudesse apenas desabafar.

Não é. Eu estou começando a perder a noção do que é real, e do que é.... minha cabeça me pregando peças.

—Eu vou ficar bem. – Digo isso com um sorriso fraco no rosto. Dean me analisa com o olhar, tentando decidir se insiste nisso ou não. Ele gira a maçaneta, e saímos pela porta da frente.

XXX

Ponto de vista de Hazel Laverne.

Não foi preciso arrombar pelos fundos. Assim que nos deparamos com a parte do quintal da casa, me lembrei onde minha mãe costumava esconder as chaves, logo debaixo da almofada de uma espreguiçadeira de estampa psicodélica que fica perto da porta e das flores. A princípio, pareceu impossível que a chave ainda estivesse lá, depois de todos esses anos e das reformas. Mas algo me deu a sensação de que a chave continuava lá.

E realmente, continuava. Acho que Antonella que manteve assim, dessa forma. Talvez o esconderijo de chave fosse algo que as Laverne compartilhavam, afinal. Eu nunca ia saber.

Peguei a chave e a apertei em minha mão, e ao entrar no corredor e dar de cara com a cozinha e com a escada, sinto uma ânsia no estômago ao ver um vaso de plantas com orquídeas brancas parado ao lado do piano. São as favoritas dela.

Odeio orquídeas. Odeio.

—Está tão limpo e organizado... – Jo Harvelle comenta, passando a ponta dos dedos pela estante da televisão, que fica logo acima da lareira de pedras cinzas – Se sua avó esteve por aqui, não foi a muito tempo.

Assinto, olhando tudo ao redor e me sentindo cada vez menor.

É como se a casa me oprimisse.

—Foi durante um ano, que morou aqui? – Olho para Jesse, que está com o olhar curioso virado para mim. Dou um suspiro curto.

—Um ano e alguns meses, acho. Mas foi a primeira casa de verdade que eu tive, então... pareceu bem mais do que isso, se eu parar para pensar. – Constato, os coturnos marrons batendo no assoalho de madeira e ressoando pelo ambiente.

Subimos pelas escadas, onde há três quartos e um banheiro. Olho com o canto dos olhos o meu antigo quarto, e decido não entrar ali.

Foi onde minha mãe morreu. Não importa a limpeza e a mudança, nada pode mudar o significado daquele ambiente. O quarto do meio era de hóspedes, e ao abrir a porta, vejo que há bastante espaço, como antes, com duas camas cobertas por lençóis de linho. A janela grande ilumina o ambiente, e há uma televisão em um canto com uma cômoda.

—Jesse e Dean podem dormir aqui. – Jo se apressa a dizer, se encostando no batente da porta. Assinto, e vamos ao próximo quarto, que é o dos meus pais.

A cama de casal é nova, muito maior do que a antiga era. E bem mais moderna também.

Há um guarda-roupas, um banheiro, alguns tapetes e... orquídeas por onde quer que eu olhe.

Dois vasos enormes com dois tipos diferentes. Me sinto enjoada.

—É aqui que ela fica quando vem para cá, tenho certeza. – Afirmo.

—Tem aquele outro quarto... – Jesse sugere, vendo que pareço perturbada por estar aqui. Sacudo a cabeça em negativa e os olho de maneira sombria.

—Não... vocês podem entrar lá e até escolher dormirem lá, mas eu não...vou entrar lá. Nunca mais. – Não elaboro os motivos, mas tenho certeza de que ambos já entenderam, pois trocam um olhar de constatação.

Um pequeno silêncio acontece, até que ouvimos batidas na porta.

—Bom, o Ernie e o Bert chegaram. – Rolo os olhos e dou uma risadinha quando Jesse faz uma referência a “Vila Sésamo”, e em seguida descemos pela escada.

XXX

—Hm... qual é o plano? – Dean se encosta na bancada que fica ao lado da geladeira, que embora limpa, está vazia. Precisaremos fazer compras. Jo está encostada na parede, perto do relógio, e Jesse está sentado no lado oposto da mesa, onde eu também me encontro, com Sam ao meu lado. Sam está muito silencioso desde que entrou na cozinha. Me pergunto se está se lembrando do nosso primeiro beijo, que aconteceu bem aqui, ou... de quando meu pai quase o matou, bem no chão atrás de nós. É tudo tão agridoce — Os poderes dela primeiro ou...o caso?

—Hm, dessa vez os gatilhos vão ser diferentes... – Jesse começa a elaborar, se inclinando levemente para frente, entrelaçando uma mão na outra em cima da mesa – Para despertar a telecinese dela, foi preciso engatilhar o medo e raiva. Já a mente... foi o medo que a bloqueou tanto, então não vejo benefício algum nessa emoção específica para isso que estamos tentando trazer de volta. Em suma...tenho a teoria de que entrar em contato com o passado de maneira...segura, possa fazer ela se sentir no controle. E isso pode ser uma virada de chave, portanto, os poderes vão vir primeiro dessa vez. Tendo dito isso, vocês dois... – Jesse aponta de Sam para mim, os olhos de ébano recaindo sobre nós – Tem a missão de fazer um tour pela cidade, por lugares que foram marcantes para os dois. Afinal, não é segredo para ninguém que vocês foram a parte boa da vida um do outro, certo? – Ele ergue a sobrancelha, com um olhar pensativo – Depois disso, quero que ajude ela a confrontar a parte onde tudo deu errado, Sam.

Sam se ajeita na cadeira, e semicerra os olhos.

—Basicamente, reviver as lembranças boas e depois as... ruins, é isso? – Ele questiona, se certificando de que entendeu direito. Jesse assente.

—Exatamente isso. Ao final disso tudo, de todas as emoções e encerramentos de assuntos do passado, vou fazer um teste. – Meu irmão olha para cada um de nós de maneira especulativa, quase posso ver as engrenagens do seu cérebro trabalhando para fazer tudo isso funcionar – Bom, nós vamos. – Ele gira o dedo no ar, apontando para cada um.

—Que tipo de teste? – Jo especula, se desencostando da parede e cruzando os braços.

—Hazel vai entrar em nossas mentes... por vontade própria. – Imediatamente, com o canto dos olhos, percebo todos ficarem desconfortáveis com essa ideia, embora tentem disfarçar. Me encolho, me sentindo ligeiramente culpada. Invadir a mente das pessoas é uma violação— Mas pela primeira vez, ela vai tentar controlar a invasão. – Jesse se vira para mim, os cabelos pretos ondulados na frente dos olhos enquanto me fita – Normalmente, você é sugada para dentro das piores lembranças das pessoas, sem controle algum. Você vai aprender a mudar isso. Vai ler apenas o que quiser. Se conseguirmos isso, irei treiná-la para que só ative o seu toque quando desejar. – Ele ergue a mão direita ligeiramente no ar, me mostrando a sua palma com o olhar obstinado – Se for capaz de aprender isso, e sei que é, nunca mais vai precisar usar luvas ou ter medo de tocar nas pessoas. Se aprender isso... estará livre. – Ele sorri de lado, e eu sorrio de volta para ele.

—E quanto ao caso? – Questiono, tentando entender como iremos equilibrar essas duas tarefas principais.

—No fim de semana, vai haver uma festa na casa de uma família da alta sociedade, os Petterson, cujo tema é um baile a fantasia. E adivinha só? – Os olhos de Jesse se semicerram de maneira marota, e ele umedece os lábios antes de continuar – Eles eram extremamente próximos da família Harrison. Frequentavam os mesmos ambientes, como clubes, bares e restaurantes. Tenho certeza de que poderemos descobrir alguns segredos sujos por lá. Tanto sobre David quanto sobre o filho dele, Charlie. Se as mortes estiverem correlacionadas e se tratar de algo sobrenatural, nós descobriremos.

—E planeja entrar como nessa festa? Essa gente é rica, tem segurança por todo lado... – Dean contesta o plano de Jesse, se sentando na mesa junto a nós – Por que não fazemos as coisas do bom e velho jeito? Sammy e eu damos uma de investigadores, você e a Laverne podem usar os poderes de vocês e Jo pode queimar os ossos desses pobres coitados se for o caso...

—Primeiro, me ultraja que alguém saidinho como você, Dean Winchester, não saiba como entrar de penetra em uma festa. Especialmente uma festa a fantasia! – Jesse usa um tom debochado, e Dean fecha a cara por ter sido interrompido – E segundo, porque o seu bom e velho jeito é cafona e entediante e o meu é eficaz e divertido. – Jesse ergue os ombros e sorri de maneira provocadora, e um vinco se forma na testa de Dean.

Saidinho?! – Sua voz é ofendida, e uma risadinha escapa da boca de todo mundo, sem querer. Eu até tento pigarrear para disfarçar.

—Viu só? Todo mundo concorda. – Jesse responde a isso dando de ombros, seu sorriso sarcástico crescendo mais. Dean nos olha com um olhar de julgamento e cruza os braços, ficando emburrado.

—Saidinho...- Ele resmunga, olhando para a janela, trincando o maxilar – Cafona e entediante...

—E quanto a teoria dos alfas? – Sam pigarreia, interrompendo a descontração e trazendo um ar sério para a conversa. Todos nos entreolhamos, e um pequeno silêncio se estende no ar, como um véu. Ele suspira, o olhar levemente cansado, e se inclina para frente apoiando os cotovelos na mesa, seu olhar verde e obstinado – Eu andei lendo sobre isso nos livros de ocultismo que ainda tenho comigo, mas é tudo muito vago. Eu perdi muito tempo traduzindo tudo do latim, e a única coisa de que tenho certeza é o quão difíceis eles são de se encontrar e... ainda mais difíceis de se capturar. Mas...

—Mas não seria tão difícil para Crowley, não é? – O interrompo, complementando o raciocínio dele. Sam me olha preocupado e aquiesce.

—Sim. Precisamente, e o silêncio da parte de Crowley é preocupante. Quer dizer...e se ele já tiver encontrado o purgatório? – Sam respira fundo ao questionar isso. Dean sacode a cabeça, em negativa, os olhos verde esmeralda reluzindo com a luz do pôr do sol que entra pela janela da cozinha.

—Nós saberíamos se ele tivesse encontrado o purgatório. Tudo teria virado... um caos. Esse silêncio da parte dele é estratégico. Sabe o que eu acho, de verdade? – Dean ergue as sobrancelhas, especulando a todos nós. Ele umedece os lábios antes de continuar – Acho que o filho da puta está esperando a gente encontrar a porra da entrada para o purgatório, ou talvez Astaroth. Se tem uma coisa que eu sei sobre Crowley, é que o maldito puxa os pauzinhos na hora certa, então... nem adianta gastar nossas energias com isso.

—Eu concordo. – A voz de Joanna sai rouca, como se ela não tivesse dormido bem na noite passada. Seu olhar cor de carvalho está tenso, e os cabelos loiros estão presos em um rabo de cavalo – Crowley, Astaroth... tudo isso está fora do nosso alcance por enquanto. Devemos nos ocupar com uma coisa de cada vez.

Sam assente, com o olhar pensativo. Eu deposito as mãos no meu colo, batendo nervosamente a perna. Não consigo não pensar sobre tudo isso. Não importa todo o progresso que façamos, nunca parece o suficiente.

—Se ao menos aquele amigo anjo de vocês desse sinal de vida... – Jesse se levanta, esticando as costas – Isso seria útil.

—Nós iremos nos virar. – A voz de Dean sai um pouco ressentida, e vejo ele se tensionando – Eu só... eu só espero que Cass esteja bem.

Um vinco se forma em minha testa. O desaparecimento do anjo está afetando Dean mais do que aos outros. Ele parece inquieto ao falar o nome do amigo, e parece se incomodar com o fato de que todos estamos o encarando sem dizer nada.

—Que foi? Olha, chega de falar sobre coisas que não podemos controlar por hoje, ok? – Ele ergue as sobrancelhas, incomodado – Eu não sei vocês, mas eu preciso de um descanso!

Quanto a isso, ninguém protesta. Basta olhar de relance para cada um de nós para ver que estamos no nosso limite.

XXX

—Pepperoni ou nada feito! – Estou com os braços cruzados, encarando Dean, que está discando o número da pizzaria mais próxima em seu celular.

—Pare de dar chilique, é metade pepperoni e metade abacaxi com queijo! – Ele responde com as sobrancelhas erguidas. Meu rosto esquenta.

—Isso é uma ofensa a minha cultura! – Começo a gesticular com a mão – Abacaxi na pizza é uma atrocidade! Está ouvindo isso? É o som dos meus antepassados rolando no túmulo!

Sam está dando risada, encostado na parede a alguns metros de nós, observando a situação como se fosse um programa de TV. Jesse está deitado no sofá com as pernas para cima, enquanto Jo atiça o fogo da lareira. Dean rola os olhos para mim.

—Ofende metade da sua cultura! – Dean cutuca o meu ombro e dá uma risadinha – Aceite seu lado americano, Laverne! Aceite o seu lado “abacaxi na pizza”!

Ma che cazzo! – Resmungo, o rosto vermelho e ainda gesticulando no ar, expressando minha indignação.

—Ela está fazendo aquelas coxinhas no ar com as mãos de novo, Sammy! – Dean aponta para mim e se vira para o irmão, com o olhar divertido – E está resmungando em latim!

Arregalo os olhos e abro a boca para ofendê-lo, mas Sam intervém, segurando a vontade de rir:

—Ok, ok, chega de provocar ela, Dean... – Sam pigarreia, segurando um riso e vem para perto de nós dois, direcionando seu rosto a mim – Approfitta del fatto che non conosce la differenza tra una lingua e l’altra, offendilo quanto vuoi, bella.

Aproveite o fato de que ele não sabe diferenciar uma língua da outra e o ofenda quando quiser, linda*

Dou um sorrisinho e sinto o meu corpo se arrepiar.

—Você ainda se lembra de como falar italiano? – Questiono, o resto do mundo desaparecendo por um momento. Faz anos que eu ensinei a ele.

—E acha que eu esqueceria? – Ele diz isso sorrindo de lado, sua covinha aparente – Tive uma ótima professora.

—Vocês dois... – A voz de Dean interrompe Sam e eu, que ficamos nos entreolhando de maneira nostálgica por um momento, e aponta do irmão para mim – São nojentos, sabia?

—Dá náusea! – Jo complementa, se sentando em uma das poltronas.

—E causa diabetes nas pessoas, todo esse açúcar! – Jesse complementa, se sentando direito no sofá e rindo – E olha que vocês são “O Sr. e a Sra não estamos em um relacionamento”! ...imaginem o inferno que vai ser quando vocês tomarem vergonha na cara e se assumirem, ein? - Rolo os olhos e sinto minhas bochechas queimarem.

XXX

—Vocês se entenderam? – Questiono a Sam, enquanto estou encostada no pórtico do quintal, encolhida em um dos casacos que ele me deu, bebericando uma diet mountain dew. O inverno está se despedindo aos poucos, a neve já escassa, mas ainda está frio demais. Ele está apoiado em uma das vigas de madeira do pórtico, enquanto Dean e Jo tentam fazer uma fogueira, para observarmos a estrela e tentarmos relaxar um pouco. A princípio, Sam protestou contra essa ideia, por saber que eu tenho questões com o fogo, mas eu intervi e disse que queria tentar enfrentar esse medo, afinal... não posso temer o fogo para sempre.

Lá nas montanhas de Salina eu precisei lidar com o fogo, e me saí muito bem, na realidade. E, além do mais, se eu permitir que esse medo tome conta, será só mais uma fraqueza para os meus inimigos explorarem, então melhor que eu cuide disso o quanto antes, e que maneira melhor de fazer isso senão com as pessoas que mais confio no mundo? Tento não ficar tensa ao pensar nisso tudo, e respiro fundo. Tudo o que tenho feito ultimamente é enfrentar meus piores medos. E isso é extremamente exaustivo.

Mas vou continuar fazendo isso, vou enfrentar tudo até que seja o suficiente para estar no controle.

Jesse está nos arredores da vizinhança, invocando as sombras para nos garantir segurança contra demônios.

Já disse a ele que não precisa fazer isso, que podemos nos proteger de outras formas. Não quero que ele se leve ao limite por nós, mas ele se recusa. Jesse Turner é mais teimoso do que eu as vezes.

—Sim, nós conversamos na nossa...casa. – A palavra sai com dificuldade dos lábios de Sam, que me encara com seu olhar tempestuoso e aflito. Ele ergue o braço e passa a mão pelos cabelos castanhos levemente compridos, e suspira fundo – Estamos bem. Bom, pelo ao menos, vamos tentar ficar...

Sorrio para ele, feliz por saber disso. Já estava na hora.

Um pequeno silêncio se estende entre nós, e o cheiro do fogo se faz presente. Vejo Dean arrastando alguns troncos que estavam perto de algumas árvores mais afastadas do quintal, e presumo que serão nossos assentos. Me estremeço ao olhar para as chamas, brilhantes e laranjas contrastando com o azul escuro do céu de Lawrence.

O olhar de Sam me percorre por completo.

—Você não precisa fazer isso, sabia? – A voz dele sai baixa, o olhar tenso em minha direção, apontando de mim para as chamas – Lá nas montanhas...foi diferente. Era sobrevivência... - Sorrio para ele e assinto, suspirando e enfiando uma das minhas mãos dentro do bolso do casaco, para disfarçar a tremedeira.

—Eu sei. Mas eu quero. – Tento manter a voz firme, fingindo não sentir a pele do meu braço esquerdo comichar só de estar a alguns metros das chamas.

Sam absorve as minhas palavras com uma certa tensão, o olhar preocupado.

—Eu... tenho dificuldade em aceitar isso. Sabe, sempre me senti irritado com Dean por sempre estar tentando me proteger...eu me senti frágil, ao olhar dele, durante tudo... sabe? – O olhar de Sam divaga até o irmão, que está longe o suficiente para não ouvir nossa conversa. Ouço com atenção, enquanto ele muda o peso de perna e parece perdido em lembranças – O que quero dizer é que tenho dificuldade em lidar com o fato de que você é o tipo de pessoa que se joga de cabeça em tudo o que você teme. É uma coragem que chega a ser... imprudente, as vezes. E todas as vezes que faz isso, como agora... – Ele coça a nuca, respirando fundo – Eu sinto a vontade de impedir você, de proteger você. E então eu entro em conflito, porque me lembro de como me sinto quando Dean faz isso comigo. E aí eu entro em um paradoxo...

Sorrio diante do seu olhar transtornado.

—Sou um paradoxo para você? – O tom da minha voz sai especulativo, e ele sorri de lado.

—É sim. – Sua voz sai rouca por um momento, e ele resolve se sentar na escada de três degraus do pórtico. Ando pelo assoalho de madeira e me sento ao seu lado, observando as primeiras estrelas que se estendem pelo céu. Ficamos em silêncio, lado a lado, enquanto observamos Dean e Jo se ajeitando ao redor da fogueira, a atrocidade que Dean chama de pizza nos esperando em uma mesinha improvisada.

— Olhem só o que eu encontrei! - Jesse sai pela porta, com um violão em mãos.

Olho para trás, feliz por ver que Jesse finalmente chegou. Sam se afasta um pouco de mim, criando um espaço entre nós para deixar Jesse passar e descer pelos degraus.

—Onde...arrumou isso? – Me levanto, as sobrancelhas erguidas emoldurando o meu olhar. Quando olho direito para o violão azul escuro com peixinhos dourados pintados ao redor das cordas de aço, estremeço e dou um passo para trás.

O sorriso do meu irmão desaparece, e ele até empalidece um pouco.

—Eu... achei no quarto de hóspedes, no armário. – Ele se explica, e eu tento respirar fundo – Eu... fiz algo errado?

Preciso me acostumar. Lembranças são a nossa missão, certo? Preciso enfrentar isso.

—Não, tá tudo bem. – Me apresso a dizer, me recompondo e tentando lidar com isso de maneira positiva – Era da minha mãe. Fico feliz que tenha o encontrado.

Dou um sorriso fraco, mas sincero. Jesse se retrai com culpa, então dou um passo à frente e apoio a mão no ombro dele, por cima da sua jaqueta de couro. Uma rajada de vento frio corta as nossas peles, fazendo a minha visão se embaçar.

—Sério, Jess. Tá tudo bem. – O asseguro, ajeitando uma mecha do seu cabelo que havia saído do lugar pelo vento, com ternura – Você sabe tocar?

Turner dá uma risadinha, aliviado pela minha reação. Ele veste a alça do violão, o posicionando.

—Você vai descobrir. – Sua voz sai confiante, e ele me disfere uma piscadela.

XXX

—Eu desafio você a cantar! – Jesse propõe a Dean Winchester, que está com a boca cheia de pizza. A vizinhança está silenciosa, e os grilos cantam sem parar. O cheiro da noite é úmido e denso, anunciando uma possível chuva para o próximo amanhecer.

—Como é que é?! – Ele ergue as sobrancelhas, a sua voz saindo abafada por estar mastigando – Nem pensar! – Sam dá risada dos modos do irmão, de um jeito adorável. A dinâmica dos dois está, aos poucos, voltando ao normal. Sorrio por constatar isso.

—Bom, vocês são os filhos de um astro do rock, acho justo que vocês cantem para a gente! – Jo toma um gole de uma cerveja, e nos olha com um olhar desafiador e um sorriso de lado no rosto.

—É, a loirinha tem razão! – Dean se apressa a dizer, esquentando as mãos na fogueira, observando Joanna de soslaio, tentando decifrar se a provocou por chamá-la pelo apelido que deu a ela. Jo rola os olhos para ele, fazendo-o sorrir.

—O que acha, Lavie? – Jesse me fita, cauteloso, uma de suas sobrancelhas erguidas. Todos me encaram, em expectativa. Eu me retraio um pouco, o rosto corado pelo calor do fogo e pela vergonha.

—Hm, eu não canto há... muito tempo. – Engulo em seco, nervosa por estar nessa situação. Eu sempre reprimi meu lado musical, por causa dos meus pais. Mas a verdade é que sempre tive talento para isso.

—Não sabia que você cantava... – Sam me fita, o olhar curioso e os cabelos castanhos recaindo levemente na frente dos olhos.

—Ela canta, e muito! – Jesse se apressa a dizer, enquanto afina as cordas de aço do violão com as mãos habilidosas – Costumávamos cantar o tempo inteiro quando erámos pequenos.

Meu irmão diz isso de maneira corriqueira, tentando não colocar peso nas palavras. Estamos todos tentando ter uma noite normal. Precisamos nos recarregar.

—Sério? – Sam pergunta, sorrindo muito enquanto me percorre com os olhos – Eu adoraria ver isso.

—É, eu também! – Dean se inclina para frente, os olhos verde esmeralda ansiosos, as chamas do fogo reluzindo nos seus cabelos loiro-escuros, levemente bagunçados – Eu realmente preciso de música para relaxar um pouquinho.

—Tá, tudo bem. – Me dou por vencida, pigarreando para limpar a garganta – Mas... faz muito tempo mesmo. Então, se eu for um desastre, sejam falsos e aplaudam mesmo assim, ok? – Tento parecer descontraída ao dizer isso, mas a verdade é que sempre fico nervosa ao cantar com pessoas ao meu redor.

—Não, nada disso! Se for um desastre, vamos jogar tomates em você! – Dean me provoca, rindo, um olhar divertido em seu rosto.

—Não temos tomates, Dean! – Jo ergue as sobrancelhas, com a voz brincalhona.

—Eu sei, serão tomates metafóricos! Você não tem imaginação não?! – Dean rebate ao comentário dela, e todos caímos na risada.

—Ok...o que quer cantar? – Disfiro um olhar especulativo em Jesse. Ele sorri de lado, com um ar misterioso.

—Uma música dele, o maior compositor de todos os tempos, o rei absoluto da música, o inigualável ícone.... – Jesse começa a fazer suspense com a sua descrição, usando uma voz divertida – O bardo atormentado... – Ele continua, me especulando com o olhar.

—James Hetfield? – Dean tenta adivinhar. Jesse rola os olhos e faz uma careta de desprezo.

—Não, credo! Eu disse “rei absoluto da música” e não “rei absoluto do barulho”! – Meu irmão provoca Dean, que coloca a mão no peito fingindo estar ofendido, e eu vejo Sam concordando discretamente com a cabeça ao ouvir o comentário de Jesse, e sinto vontade de rir. Pobre Sam, ouvindo Dean gritar as músicas do Metallica durante todos esses anos em seus ouvidos. Acho que ele se sentiu representado – Lavie vai saber responder, porque embora ela não se lembre, costumávamos ouvir esse cara o tempo inteiro, quando erámos menores. E, tenho certeza de que ela mantém sua opinião musical, então...de quem estou falando, Lavie? – Jesse ergue sua sobrancelha em expectativa, curioso para saber se eu sei a quem ele se refere.

É estranho e misterioso, como a memória funciona. Eu não me lembro, mas eu sei a resposta. Como isso é possível? Acho que nunca vou entender.

—Bob Dylan. – Respondo, com um sorriso no rosto.

—Bingo! – Jesse bate palmas, sorridente – Eu sabia que você ia adivinhar. Bom, pode ser?

—Manda ver. – Respondo, apontando para o violão – Começa e eu sigo, ok?

Jesse assente, e então dedilha os primeiros acordes. O cheiro do fogo sobe no ambiente, e eu finjo não estar nervosa pelos três pares de olhos nos encarando com expectativa agora. Olho para o céu escuro, para as estrelas tão altas que estão costuradas no horizonte, e deixo a música entrar em minhas veias.

Sorrio assim que reconheço a música escolhida por ele.

I’ve seen love go by my door, It’s never been so close before...- Jesse começa a cantar, sua voz levemente anasalada, tão bonita e cheia de presença. Tão parecida com a voz do nosso pai.

Never been so easy, or so slow...- Me junto a ele, timidamente. Começo a sorrir meio a música, porque Jesse me deixa a vontade e tira o meu nervosismo, fazendo algumas caretas enquanto canta.

Por um momento, o tempo ao nosso redor para. Não existe nenhum mal lá fora.

Os rostos iluminados pelas chamas de Sam, Dean, Jo e Jesse são tudo o que existe em minha vida agora. Seus sorrisos, a música que parece agradá-los, as risadas que eu e Jesse damos ao errar alguma parte da letra graças a uma de suas gracinhas ao fazer caretas...por um momento, estou plenamente feliz.

E não gostaria de estar em nenhum outro lugar do mundo.

Absorvo cada segundo com tanta voracidade, guardando esse momento em minha memória como uma joia preciosa em um baú.

Quando terminamos, todo mundo bate palmas e sorriem, pedindo mais músicas.

Ficamos por muito tempo em volta da fogueira.

O tempo voa junto as labaredas da fogueira, se perdendo meio as cinzas que sobem no ar lentamente, como dançarinas. Cantamos várias canções folks, embalando a noite desse grupo de desajustados que a essa altura, se transformaram em uma família.

—Antes de encerrarmos...- Respiro fundo, bebendo um gole de uma cerveja que Sam estava bebendo – Gostaria de cantar mais uma música.

Me abano, pois estou um pouco suada.

—Você é quem manda. Qual vai ser? – Jesse passa a mão cheia de anéis nos cabelos pretos ondulados, me olhando com um brilho no olhar que não havia visto nele até então.

Jesse está feliz.

E isso enche o meu coração, fazendo o vazio dentro de mim diminuir.

—Hey hey, my my... – Me aposso do violão, posicionando-o em meu colo – Versão “Out of the blue”, ok? – Acrescento, o olhar obstinado no rosto – E quem toca agora, sou eu! – Dou uma piscadela para Turner.

—Então, senhoras e senhores...- Jesse posiciona os cotovelos em seus joelhos, sorrindo – É com Neil Young que encerramos nossa noite!

Dedilho a canção de olhos fechados, memorizando o cheiro dessa noite.

Cada palavra e acorde dessa canção são como um mapa da minha alma.

A primeira vez que ouvi essa música, eu não tinha mais do que quinze anos, e a ouvi nos bastidores de um festival. Nunca mais esqueci a sensação que ela me trouxe.

A gaita, entoando os versos mais reais que já tinha escutado na vida, naquela voz tão suave e tão honesta.

Uma canção sobre a queda. Sobre o fim de algo, a decadência e o esquecimento. Porém, mesmo que se trate de um réquiem, graças a sua atmosfera de rebeldia implícita, se torna uma ode.

Uma ode à tudo o que você já tenha vivido na vida. Uma ode à quem você é.

Uma ode à estrada até aqui.

As vozes melancólicas de Jesse e eu ecoam de maneira suave, porém marcando o ambiente com um ar fantasmagórico que só canções como essa podem proporcionar.

Quando reabro os olhos ao fim da canção, percebo que toquei a todos de uma maneira diferente. Dean tem um olhar nostálgico, Jo, um de entendimento. Jesse tem um brilho de orgulho em sua íris de ébano.

E Sam...

Seu oceano particular, verde e cinzento, carrega em suas ondas um sentimento nítido de admiração. Seu sorriso emoldura seu rosto, me fazendo sorrir também.

Dou um longo suspiro, repousando o violão ao lado do meu corpo, encarando as chamas mais uma vez, agora, com uma certeza em meu peito.

É melhor queimar por inteiro do que se apagar aos poucos.

E, por sorte, sei que estou com as pessoas certas para manter minha chama acesa, não importa o que aconteça."

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.