O Homem que Perdeu a Alma

Capítulo XVIII - Como nos velhos tempos.


Ponto de vista de Dean Winchester.

Existe algum tipo de sangue ruim entre Jesse e Sammy. E eu não consigo identificar de onde isso veio, para início de conversa.

A hostilidade entre os dois ontem à noite foi muito estranha..., mas isso nem foi o que ficou me perturbando durante a madrugada, não. Foi a frase “Ainda estou torcendo por você, amigo. Vai que ela cai na real”.

Isso acabou comigo. Porque, em que momento ele percebeu? Aliás, tem alguém na face da terra que não tenha percebido?

Sammy. Sammy é o único, e depois do que Jesse disse a ele... isso mudará em breve. Sammy é a pessoa mais inteligente que eu conheço (Não que eu vá admitir isso para ele um dia, ele já é convencido demais e é meu dever mantê-lo humilde) e ele já está conectando os pontos na sua cabeça, eu sei que sim. Sabe que há um monte de mentiras que estamos guardando dele.

Estou terminando de colocar algumas coisas no Impala, quando avisto Hazel parada no pórtico, o olhar pensativo e longínquo.

Está nervosa, sei que está. Aceno para ela, para que venha até onde estou. Precisamos conversar.

Ela vem vindo, as mãos nos bolsos do casaco, o rosto avermelhado graças aos ventos frios.

—Está tudo aí? As armas, as mochilas? – Ela questiona, apoiando a mão no capô da baby. Assinto, e suspiro profundamente.

—Laverne, preciso te dizer algumas coisas... – Começo, assumindo uma postura séria. O olhar dela se torna atento e preocupado. Pigarreio antes de prosseguir – Primeiro, quero que saiba que o seu irmão e o Sammy tiveram um desentendimento sério ontem à noite...

—Quão sério? – Ela pergunta, as sobrancelhas franzidas. Dou de ombros:

—Eu diria que sério o suficiente. Eu cheguei antes que a coisa se tornasse física, mas seria importante você conversar com o Jesse. Ele disse umas coisas muito provocativas ontem. Eu ouvi pouco da coisa toda, mas basicamente estava jogando na cara do Sammy sobre ele não ser bom o bastante para você... e depois me deu um tapinha no ombro, me dizendo que estava torcendo por mim e coisa do tipo... – O olhar dela vai enegrecendo conforme me escuta, como se estivesse pronta para ir gritar com o irmão – Ei, esquentadinha, não vai adiantar nada você chegar chutando tudo para o alto, ok?! Converse com ele de maneira calma, ou ele não vai te escutar.

—Eu não ia chegar chutando tudo para o alto! – A voz dela sai irritada, e um vinco se forma em sua testa enquanto suas narinas se tornam meio infladas, claramente estressada com a situação – Por que acha que ele disse esse tipo de coisa para o Sam, Dean?

—Honestamente? O Sammy foi meio babaca com ele no outro dia... talvez tenha tentado dar o troco, mas estamos com um problemão nas nossas mãos e os dois querendo se matar o tempo inteiro por bobagem é a última coisa de que precisamos, não acha?

Ela aquiesce.

—É, definitivamente não precisamos disso. Eu vou tentar descobrir o que aconteceu depois... e vou pedir para que não se repita. – Ela coça a nuca, aflita pela situação.

—E, a outra coisa que eu queria dizer é que, pretendo contar ao Sammy...em breve. Sobre meus sentimentos por você... – Enfio as mãos nos bolsos do jeans, e me encolho um pouco. Nunca me vi em uma situação como essa antes... é tortura. Parece castigo divino – E sobre ter te beijado, mesmo que não tenha sido nossa culpa. Ele merece saber.

Hazel absorve minhas palavras, suas pupilas contraídas pela claridade do dia.

—Ele não vai te odiar, Dean. Sabe disso, não sabe? – Ela me disfere um olhar compreensivo e acolhedor, como se soubesse que essa situação toda está me devorando por dentro.

—Talvez me odeie por um tempinho, e eu meio que mereço. Só espero que ele entenda que não foi intencional, só isso. E, hm, por falar nisso... sabe que ele não superou você, não sabe? – A encaro nos olhos, e ela cora violentamente ao ouvir o que acabo de dizer.

Suas bochechas sempre ficam vermelhas por ele. Sempre.

Nunca por mim. Como devia ser, afinal.

Caramba, o meu irmão tem muita sorte.

—Não consigo pensar nisso agora, Dean...eu e ele, é... – Ela suspira, quebrando sua frase no meio e olha para chão por um momento. Depois me encara com dor nos olhos, parecendo se dar conta de algo que a faz mudar o curso do que estava dizendo – Dean? Me desculpe. – Suas palavras vêm carregadas de pesar, e eu fico confuso.

—Te desculpar pelo quê, Laverne? - Questiono. Ela ergue as sobrancelhas, preocupada.

—Por estar quebrando o seu coração. – Absorvo suas palavras, pensativo. O tom dela é honesto, triste, culpado. Me contraio. Ser o alvo da sua preocupação faz eu me sentir...

Como se eu importasse. Hazel é esse tipo de pessoa, que faz as pessoas perceberem que elas importam.

Sorrio para ela.

—Achei que já tivéssemos esclarecido isso, não é? Gosto de ter meu coração quebrado por você. Isso me ajuda a não pensar nas outras coisas que doem aqui dentro...– Ela retribui o meu sorriso, mas o seu vem carregado de dor. Sei que ela se sente culpada por isso. Queria que ela soubesse que não tem culpa alguma, e que soubesse que tem sido a melhor amiga que eu poderia ter – Eu vou ficar bem, Laverne. E, além do mais, ninguém quer que vocês dois se acertem logo mais do que eu. Não percam tempo Hazel, ok? A vida já roubou muito tempo de vocês dois. Chega de sofrerem um pelo outro. Sofram pelo bando de gente que querem matar vocês dois, isso sim! – Ela ri, e eu também.

Enquanto o vento assopra seus cabelos, meio ao seu sorriso, vejo Sam nos observando de longe. Ele parece intrigado.

Sinto um arrepio na espinha, e engulo em seco, olhando para a direção oposta.

XXX

Ponto de vista de Sam Winchester.

Desço pelo pórtico pronto para cair na estrada, a cabeça girando graças a ontem à noite.

A primeira coisa que eu vejo é Hazel e Dean, rindo juntos, próximos um ao outro.

Respiro fundo.

Jesse desce logo ao meu lado, seu sobretudo preto pendurado em seu ombro, os cabelos pretos levemente compridos na frente dos olhos de ébano. Ele ergue o braço para acender um cigarro em sua boca e me encara, enquanto estou olhando para os dois ao longe.

Ele me disfere um sorriso sarcástico e segue em frente, indo em direção ao Impala. Cerro meu punho, mas engulo a minha raiva e a minha paranoia. A última coisa que vou deixar esse desgraçado fazer é ter esse gostinho de vitória. Não vai me jogar contra meu irmão, eu confio em Dean.

Eu confio em Dean.

Eu estive no inferno esse tempo todo, e Dean jamais faria qualquer coisa com Hazel, e vice e versa. Jesse é maluco.

Ando até eles, e nós quatro nos entreolhamos.

—A primeira parada é em Wichita. – Jesse começa a explicar, terminando seu cigarro e pisando na guimba, olhando para o horizonte, pensativo. Quantos cigarros esse cara fuma por dia? Parece a porra de uma chaminé — Calculo que chegaremos lá em cerca de sete horas, se não nevar.

Dean assente, e ajeita uma pistola no cós do jeans. Ele assume aquele olhar sério de quando uma caçada se inicia. Lá vem o general.

—Seguinte, para os novatos que nunca caçaram comigo na vida...- Ele se vira para Hazel e para Jesse, com seu tom autoritário – Eu sou o mais velho e o mais experiente. Eu digo corram, vocês correm. Eu digo atirem, vocês atiram. Entenderam?!

Hazel rola os olhos, mas assente. Jesse dá um sorriso de lado.

—Podemos cair na estrada logo? – Turner diz, buscando algo nos bolsos. Ele retira deles uma fita velha e desgastada – Eu tenho algumas músicas aqui que...

—Ah, regra número um! – Dean o interrompe imediatamente. Eu já dou um sorrisinho por saber o que vem a seguir – O motorista escolhe a música, a arma cala os protestos!

Hazel e Jesse se entreolham e dão risada, e eu acabo rindo também. Assim que me sento ao lado de Dean, no Impala, sinto uma sensação estranha que não havia sentido desde que voltei a vida.

Me sinto em casa.

Sorrio, olhando para Hazel pelo retrovisor. No minuto que seus olhos verde-floresta encaram os meus, sinto um arrepio por todo o meu corpo.

Dean coloca uma fita para tocar no minuto que dá a partida, e surpreendentemente é uma que eu gosto muito. Os acordes suaves de guitarra se iniciam junto a bateria crescente, então fecho os olhos por um momento e aprecio a letra.

All our times have come
Here but now they're gone

Seasons don't fear the reaper
Nor do the wind, the sun or the rain
And we can be like they are
Come on baby (don't fear the reaper)
Baby take my hand (don't fear the reaper)
We'll be able to fly (don't fear the reaper)
Baby I'm your man

Nunca pensei que fosse dizer isso, mas me sinto feliz por estar na estrada de novo.

XXX

Ponto de vista de Hazel Laverne.

—Então você já morou na maioria dos estados? – Os campos secos do Kansas se cobrem com os primeiros flocos de neve, e o vidro vai se embaçando aos poucos com o frio e a umidade. Jesse estava me contando sobre como viveu os últimos anos, como um nômade. Ele assente ao ouvir minha pergunta.

—Sim, e nunca fiquei mais de três meses no mesmo lugar. – Ele completa, apoiando a cabeça no banco – Mas nunca em Nova York, nem mesmo nos arredores.

—Por quê? Não gosta de cidade grande? – Sorrio ao erguer a sobrancelha, ciente de que a maioria das pessoas não aprecia Nova York como eu. Ele faz que não, com um olhar dolorido de repente, ao me encarar com seus olhos escuros.

—Não queria correr o risco de te...encontrar. Não queria ser egoísta e ir atrás de você, Lavie. – Suas palavras soam sinceras e doloridas. Meu coração se contrai um pouquinho – Eu não sabia que toda essa loucura iria acontecer, então...

—Fico feliz que tenha acontecido. – As palavras escapam da minha boca, pensativa sobre os últimos meses. Ele me olha surpreso, e eu me apresso a explicar – Perdi muita coisa durante tudo isso, é verdade. Mas honestamente? Ganhei várias coisas de volta...

Digo isso olhando discretamente para Sam, que me olha de volta pelo retrovisor. Sinto meu coração bater mais forte, então desvio os olhos.

Volto meu olhar para Jesse, que presta atenção em minhas palavras.

—E um irmão de brinde. Quer dizer... acho que até tive um pouco de lucro, não é? – Jesse sorri para mim, e assente.

—É, acho que se pode dizer que sim.

Jesse e eu nos entreolhamos por um momento. Sei que ainda preciso o conhecer a fundo, como ele me conhece. Mas também sei que sempre senti falta de alguém, como um irmão ou irmã. Uma sensação inexplicável que sempre me deixou intrigada, e que desde que Jesse apareceu em minha vida, se sentiu estranhamente... completa.

Jesse é a minha lacuna.

Estou grata de estar aqui, com ele, com Sam e Dean.

Realmente grata.

E o mundo está literalmente prestes a cair na minha cabeça, então, quer dizer...

Acho que o significado de tudo realmente sempre foi, e sempre será, as pessoas.

XXX

O motel de beira de estrada logo na entrada de Wichita é cafona como todos os outros, e o símbolo desse em especial é um urso pardo sorridente. O Kansas é tão bizarro as vezes.

Ao descer do carro e esticar as pernas, vamos rumo a recepção. A recepcionista é uma mulher atraente de uns trinta anos no máximo, a pele negra e os olhos castanhos claros. Ela sorri ao encarar Dean, que sorri da mesma maneira para ela.

—Boa noite, moça... – Ele usa uma voz aveludada para falar com ela. A atendente fica imediatamente sem jeito – Dois quartos com camas de solteiro, por gentileza.

—Claro...identidades, por favor? – Ela quase gagueja para falar com ele. Dean lhe entrega nossas identidades falsas, e ela faz o cadastro rapidamente, nos devolvendo os documentos. Ela se levanta com um sorriso no rosto, e aponta para a escada – Os quartos ficam lá em cima, mas, se precisarem de alguma coisa, qualquer coisa... – Ela usa um tom apelativo – É só ligarem para a recepção. Estarei aqui a noite toda. – Ela frisa, olhando para Dean.

—Muito obrigado. – Dean diz isso piscando para ela. A moça olha para baixo, tentando conter uma risadinha.

Subimos as escadas segurando as mochilas, e paramos no corredor com piso de carpete de madeira escura frente aos quartos de números 13 e 14.

—Partimos amanhã as seis em ponto, ok? – Dean usa um tom autoritário, olhando de Jesse para mim. Assinto, ansiosa por poder dormir, mas percebo que Sam me parece um pouco mal, está levemente pálido e o seu olhar está distante, como se estivesse doente.

—Sam, está...tudo bem? – Questiono. Dean olha para o irmão, e Sam parece levar um tempo para processar a minha pergunta. Ele ajeita a postura e pigarreia:

—Estou bem, só perdi o costume de ficar tantas horas na estrada... – Ele me disfere um sorriso fraco, e eu assinto, incerta. O olhar de Dean fica preocupado imediatamente, mas permanece em silêncio – Vou ficar bem depois de uma boa noite de sono.

Quero dizer a ele que não acredito nisso, que sei que tem algo a mais acontecendo..., mas fico em silêncio.

—Bom... então nos vemos amanhã. – A voz de Jesse é cansada ao dizer isso para os Winchesters. Ele usa a chave do hotel e entra no quarto de número 14. Olho mais uma vez para Sam, preocupada e aflita.

—Ei, fica tranquila. Eu só estou cansado, de verdade. – Ele reafirma, segurando a mochila em seus ombros largos, tentando soar convincente. Dean e eu nos entreolhamos preocupados, mas não dizemos nada.

—Tá bem... Me avise se precisar de alguma coisa, ok? – Digo isso segurando a maçaneta da porta branca e descascada, ainda preocupada com ele. Sam assente – Vejo vocês amanhã, então.

Os dois acenam com a cabeça, e eu entro no quarto de número 14, o coração aflito, mas com a certeza de que se algo estiver errado, ele estará em boas mãos.

E eu estarei no quarto ao lado, pronta para ajudá-lo.

XXX

—Você e eu precisamos conversar sobre uma coisa, Jess... – Minha voz é incerta, e já se passou algum tempo desde que tomei meu banho e vesti um pijama de moletom verde escuro e quentinho. O vento assopra as paredes do lado de fora com violência. Jesse, que está arrumando sua mochila, me olha por cima do ombro.

—Pode falar, Lavie. – Ele se senta na cama, junta as mãos cheias de anéis prateados em seu colo e fica me encarando.

—O que aconteceu entre você e Sam, ontem à noite? – Ele revira os olhos, e se apoia na parede atrás de si.

—Ele correu para te contar isso, é? – Ele questiona. Faço que não com a cabeça e cruzo os braços.

—O Dean. Ele que me procurou, disse que chegou lá no pórtico e vocês dois estavam quase partindo para uma briga. Queria ouvir de você o que aconteceu. – Tento usar um tom não acusatório, e sim compreensivo. Jesse suspira, pensativo por um momento, e coça a nuca antes de me responder.

—Antes mesmo de o conhecer, sempre soube que ele era encrenca, Lavie. Todo o histórico do cara... – Ele umedece os lábios antes de continuar, o olhar pensativo como se quisesse buscar dentro de si todos os argumentos que justifiquem suas ações – E, quando reencontrei você e fiquei sabendo de tudo o que estava havendo, fiquei preocupado. Porque eu vi nos seus olhos o quão frágil você fica quando se trata dele, Lavie. E eu o acho perigoso, não... não confio nele, entende? Não gosto da atitude que ele teve comigo desde o início..., e eu tenho noção de que nada disso é da minha conta. Sabe... sei que para você eu sou um estranho, ainda. E isso não é sua culpa, essa distância que você enxerga entre a gente. – Ele parece aflito ao falar isso, os olhos cheios d’água. Ele se levanta e vem para mais perto de mim. Suas sobrancelhas grossas estão erguidas e seu tom é ferido – Eu sou culpado por isso, desde o momento em que ainda criança, usei meus poderes em você, para te livrar de tudo... aquilo. – O modo que ele usa a palavra “aquilo” soa como um fantasma pendurado na frase, contendo segredos em cada letra. Isso faz a minha espinha gelar. Ele para de falar por um momento, e respira fundo com certa dificuldade. Jesse é uma pessoa muito contida, vê-lo em contato com suas emoções como está agora, me deixa preocupada – E faria de novo e de novo se necessário. Sei que quer suas lembranças de volta, e tem o direito de querer isso. E as terá, na hora certa. Mas entenda, Lavie, que para mim... você não é uma estranha. É minha irmã, e o meu dever é proteger você. Eu só quero o seu bem, e ontem, enquanto eu conversava com ele... tudo o que eu conseguia ver ao olhar para ele é o cara que te enfiou uma faca no estômago.

Sua última frase me atravessa como uma navalha.

—Não foi ele, Jesse. Você precisa entender isso! – Meu peito arde em aflição, e dou um passo para trás.

—Eu sei, racionalmente, eu sei... – Ele se apressa a dizer, com verdade transparecendo seu olhar escuro – Foi o Crowley. E o Sam é tão vítima nisso tudo quanto você, eu entendo tudo isso, Lavie. Mas no meu coração, é difícil separar os fatos. E tem mais... eu sonho para você uma vida plena e feliz, desde o dia que te vi indo embora de Los Angeles! – Uma lágrima despenca do seu olho esquerdo, e ele a limpa rapidamente – Quero que tenha uma família feliz, e tudo o mais que você puder sonhar! Mas não vai poder ter nenhuma dessas coisas com ele, Lavie...

Franzo o cenho para Jesse, sentindo um nó na garganta.

—Por que...não, Jesse? – Meu peito se comprime, com uma confusão genuína dentro de mim - O que faz você dizer isso? – O olho no fundo dos olhos, aflita. Ele retribui o olhar, e suspira fundo, passando a mão pelos cabelos pretos, tão parecidos com os de Harvey. Às vezes, por culpa da semelhança entre os dois, tenho dificuldade para encará-lo.

—Eu não queria ser a pessoa a te dizer isso, Lavie. Mas... você sabe, lá no fundo, ao que estou me referindo. Somos metade demônio, irmã. Você e eu. O que acha que acontece se você tiver um filho com ele, no futuro? Com um cara normal já seria algo... preocupante. Mas Sam Winchester não é um cara normal! Sangue de demônio corre nas veias dele também!

Absorvo suas palavras, com o rosto impassível. O vejo respirando fundo e procurando em meus olhos algum tipo de resposta, mas permaneço em silêncio.

—Eu não quero soar cruel ao dizer essas coisas, Lavie. – Seu olhar é o de súplica, e ele dá mais um passo à frente – Eu sei o quanto você já... perdeu. – As palavras dele saem quebradiças. Não tenho certeza ao que se refere, mas tenho a vaga impressão de que sabe mais sobre mim do que deixa transparecer - Mas você precisa saber do que abrirá mão, se ficar com ele. Se essa for sua escolha, você tem que entender. Nunca estarão seguros, Lavie.

—Eu nunca estive segura, Jess. – Digo isso tão baixo que sai como um sussurro. Tudo dói dentro do meu peito – Não faço ideia de quais foram os horrores que você apagou da minha cabeça... – Aponto para a minha têmpora, sem tirar os olhos dos dele – Mas novos horrores vieram depois, para preencher o espaço. Nosso pai foi o primeiro deles. Ele também achava que Sam era o problema. Não sei se de repente ele sabia sobre ele ter sangue de demônio e por isso surtou, você falando agora... isso me vem à mente. – Dou de ombros, começando a juntar os pontos do meu passado. É exaustivo, estar sempre juntando as peças do quebra-cabeça que me tornei – Talvez minha avó também soubesse, nunca vou descobrir a verdade toda. Mas todos vocês estão errados sobre ele. Eu o conheço de verdade... – Aponto para o meu próprio peito – E só eu sei como foi ele quem me salvou, anos atrás. Primeiro, da minha tentativa de suicídio...- Respiro fundo, me lembrando de como nos conhecemos após ele arriscar a própria vida no acidente de carro para salvar a minha – Depois, com todo o resto, que só eu e ele sabemos. Não me importa que ele tenha sangue de demônio. – Seguro o pingente que Sam me deu, anos atrás, entre os dedos – Não me importa que eu nem seja completamente humana. Nós nunca estaremos seguros, Jesse. Você odiar o Sam não vai mudar isso. Não sei o que vai acontecer entre Sam e eu... – Deixo minha voz morrer por um momento – Mas com todo o resto que está acontecendo, a última coisa de que eu preciso é Sam e você se odiando. A última coisa que eu preciso, é de mais conflito.

Jesse assimila as minhas palavras cautelosamente. Ele já não está mais chorando, mas seu olhar permanece emotivo. Ele assente, depois de um tempo.

—Você tem razão, Lavie. Eu...pisei na bola. – Ele respira fundo e esfrega o rosto – Prometo não me meter mais entre vocês. Mas ei, não posso garantir que eu e Sam iremos sair por aí de mãos dadas e cantando em direção ao arco-íris... – Ele usa um tom brincalhão, tentando amenizar toda a tensão entre nós – E o que posso garantir a você, é que irei tentar parar de provocá-lo. E que vou respeitar suas decisões... sejam elas más decisões ou não.

Ele me disfere um sorriso fraco, e eu dou um passo à frente.

—Obrigada, Jesse. Significa muito para mim... que você entenda. – Ele aquiesce, e eu sinto necessidade de dizer uma coisa – E, Jess? Sei que pensa que sou indiferente em relação a você, mas não é verdade. Eu sempre senti uma... ausência estranha na minha vida. Você pode ter apagado as minhas memórias, mas eu sempre senti a sua falta, mesmo sem ter consciência disso. E nas últimas semanas antes de nos encontrarmos, quando tive alguns sonhos com você... tive a certeza dessa ausência. E estou extremamente grata de ter você na minha vida, Jess. E quando toda essa loucura acabar, poderemos ser uma família de novo... se você quiser isso também. – Digo isso tudo com um aperto no peito.

Ser sozinha no mundo, sem família alguma, é algo muito solitário as vezes.

Não. Preciso arrumar essa frase. Isso sequer arranha a superfície de como realmente me sinto.

Ser sozinha no mundo é...

Vazio. Como um animal em extinção emitindo um sonar no oceano, que nunca será respondido. E esse sonar ecoa nas águas frias, fica preso no gelo, e então fica guardado como um segredo. Isso é o que eu sinto, todos os dias.

Com Jesse, posso recomeçar. Posso parar de me sentir assim, como se fosse a última de minha espécie.

Jesse sorri, e me puxa para um abraço. Achei que fosse me sentir estranha ao ter seus braços ao redor de mim, mas é o oposto disso. Apoio a cabeça no seu ombro e retribuo com sinceridade seu gesto de afeto fraternal, passando minhas mãos cobertas por luvas por suas costas. Fecho os olhos por um momento, brigando com o meu cérebro, querendo me lembrar dele a qualquer custo. Não consigo. Seja lá o que for que Jesse tenha utilizado para roubar a si mesmo das minhas memórias, foi forte. Respiro fundo, frustrada, e reabro os olhos. Nos soltamos depois de um tempo, e ele sorri para mim.

—É claro que vou querer ser sua família, Lavie. Eu já sou. – Ele aponta para o próprio peito – Sabe... assim que eu soube dos boatos, de que você corria perigo... eu te devolvi algumas das suas memórias, por meio desses sonhos que você disse que teve...

Franzo o cenho, confusa.

—Então... os sonhos que eu tive, foi você quem...? – Ele aquiesce.

—Fui eu sim. Eu não queria ser um completo estranho quando você me visse. – Ele diz, o olhar nostálgico – Queria que confiasse em mim, pelo menos um pouquinho. Sei o quão teimosa você pode ser... – Ele sorri, e eu retribuo seu sorriso - É o meu dever proteger você, Lavie. Você é a caçula...

—Você comentou isso uma vez. Sobre eu ter atitude de caçula, no ferro velho, quando discutimos. Achei que fosse modo de dizer. Como posso ser sua caçula se nascemos no mesmo dia? – Questiono, curiosa. Ele sorri.

—Ah, é. Esqueci de te explicar sobre isso. Bom, como White costumava dizer, eu represento o sol, e você, a lua. – Ele sussurra, o olhar longínquo como se ele estivesse se recordando de algo – Ele dizia isso, sempre. É que eu nasci de manhã e você, de noite. Eu, no nascer do sol e você, no nascer do luar. Sou mais velho por isso.

Assinto, pensativa. Há tanto sobre mim que eu não sei...

É angustiante.

—Somos praticamente gêmeos de mães diferentes... – Concluo, me sentando na cama – Isso é tão bizarro.

Ele ri.

—Somos muito parecidos, Lavie. Você e eu... – Jesse suspira, se sentando na própria cama – Quão mais me conhecer mais vai se dar conta disso. Exceto pelo gosto em homens, claro...

Ergo as sobrancelhas, surpresa com sua revelação, e vejo suas bochechas corarem.

—Hm... meio a toda a confusão eu não mencionei que era gay, né? – Ele coça a nuca, constrangido. Eu sorrio para ele.

—Não, não mencionou. Mas estou curiosa para saber qual é o seu gosto em homens, afinal! – Digo o provocando, curiosa. Ele sorri.

—Bom, eu escolheria o Dean, por exemplo. – Ele usa um tom de brincadeira e eu dou risada, e ele acaba rindo também – Gosto de cabelo curto, sacou?

—É, nosso gosto é definitivamente diferente. – O provoco, e ficamos rindo por um tempo. De repente, é como se realmente fôssemos apenas irmãos normais se divertindo e se provocando, como todos os outros. Como deveria ter sido desde o começo— Sabe, devíamos ter mais conversas normais, como essa.

Ele assente, colocando a mão na barriga após a risada, recuperando seu fôlego.

—É, eu concordo. Quando tudo isso acabar, teremos mais momentos assim. Tenho certeza disso. – Ele me olha sorridente, e eu assinto, com um aperto no peito.

O medo de não chegarmos vivos ao fim da linha me assola. Mas sacudo a cabeça, e deixo esse sentimento transpassar por meu corpo, não vou permitir que esse mau presságio estrague esse momento. Preciso sentir as coisas boas tão plenamente como sinto as más, ou terei perdido minha vida para o medo.

E a isso, eu me recuso.

XXX

Ouço o barulho da neve se chocando contra a janela, graças a ventania. Já é de madrugada e Jesse adormeceu faz muito tempo, e eu ainda não consegui pregar os meus olhos. Me revirei em minha cama durante a noite inteira, pensativa sobre o que ele disse.

Me pergunto se minha avó fez o que fez por acreditar que o meu filho seria algum tipo de aberração, ou se o meu pai fez o que fez porque achava que Sam era perigoso graças ao sangue dele. Tudo isso faz um nó na minha cabeça. Mas como eles saberiam disso, afinal?

Depois de tudo o que aconteceu, eu nem deveria estar me fazendo essa pergunta mais. Sou a última a saber de tudo, preciso aceitar isso. Vai ser mais fácil assim.

Nenhum deles tinha o direito de fazer essas escolhas por mim.

Apoio a mão na minha barriga, passando os dedos levemente sobre a minha pele, e fecho os olhos.

Me lembro da quantidade de sangue que saiu de mim naquela noite, do quanto gritei por ajuda... e da dor que eu sentia em meu ventre, lancinante. Me lembro do pavor, de não querer aquilo, de desejar poder segurar meu filho em meus braços, como tinha escolhido.

Eu estava grávida de dois meses, quando aconteceu. Nunca soube o que era. Menino ou menina...

Nunca o senti se mexer dentro de mim, também. Ele era apenas uma ideia, uma certeza.

E eu o perdi.

Reabro os olhos, e vou em direção ao banheiro. Decido lavar o meu rosto, para espantar qualquer choro que ameace me acometer.

Não consigo parar de pensar em Sam. E em como estou confusa.

Me encaro no espelho, me sentindo tonta. Por que é tão difícil contar tudo a ele? Talvez eu devesse organizar as coisas em ordem de prioridade. O que aconteceu primeiro? O que ele tem o direito de saber primeiro?

O aborto? Talvez eu precise partir daí.

Chacoalho a cabeça de um lado para o outro, em negativa. Não consigo, não ainda.

E se ele me odiar por isso?

Decido que vou dar uma volta, talvez comprar algo para beber. Na ponta dos pés, atravesso o quarto para não acordar Jesse, coloco uma roupa decente e abro a porta com cuidado.

XXX

Dou três tapinhas na máquina, irritada. Meu refrigerante está preso.

—Porcaria... – Resmungo, batendo nela uma quarta vez – Máquina idiota, me dá a droga do meu...

—Você sabe que máquinas não falam, não sabe? – Me sobressalto ao ouvir a voz de Sam do meu lado. Ele está parado, usando seu jeans e seu casaco, como se nem tivesse se deitado hoje. Franzo o cenho para ele.

—Você não dormiu nada? – Questiono. Ele dá de ombros.

—Parece que você também não, não é? – Ele dá um tapinha na máquina, e finalmente o refrigerante que estava preso cai. Ele se agacha e o pega para mim, me entregando a lata – Diet Mountain Dew ainda é seu refrigerante favorito?

—É sim. – Digo, constrangida por ter sido pega "brigando" com a máquina, como uma maluca – Obrigada, inclusive. – Ergo a lata no ar e sorrio. Ele acena com a cabeça e coloca as mãos nos bolsos.

—Sem problemas... – Ele respira fundo, e troca o peso de perna – Então... o que faz acordada a essa hora? – Ele me olha curioso. Me encolho um pouco pelo frio, e coloco uma mecha do meu cabelo para trás da orelha.

—Eu não consigo desligar a minha mente. – Respondo, abrindo a lata de refrigerante e tomando um gole generoso – E você?

Ele olha para baixo por um momento, como se ponderasse sua resposta.

—Quer a verdade ou a mentira? – Ele oferece a escolha, com o olhar pesaroso.

—A verdade, sempre. – Sequer titubeio. Ele assente, o olhar compenetrado no meu. Termino de tomar o refrigerante e jogo a latinha em um lixo próximo a nós, enquanto andamos pelo corredor.

—Não consigo parar de pensar em...você. – Um frio me percorre por completo, assim como um arrepio. Não estava esperando por isso — E em como estou preocupado com essa caçada. E...

A voz dele morre por um momento. Percebo que ainda está meio pálido, e que continua não me parecendo muito bem.

—E...? – Especulo. Ele suspira, o olhar envergonhado. Parece ter dificuldade de dizer o restante da frase. Respiro fundo, observando sua palidez, seu cansaço, sua tremedeira...e imediatamente me dou conta do motivo para ele estar assim. Como não percebi antes? Resolvo facilitar para ele, dizendo eu mesma o que ele tem medo de dizer em voz alta – Está com uma crise de abstinência, não é? – Uso um tom compreensivo, e o seu olhar parece transmitir o quão quebrado ele se sente nesse momento. O cenho franzido, os olhos culpados...

—Como sabia? – Ele questiona, a voz quebrando. Respiro fundo, e dou de ombros. Sam fica pensativo por um momento, parecendo querer conter algo dentro dele – Sua mãe, não é? – Ele especula. Faço que sim com a cabeça, tentando não pensar demais sobre ela.

—É. Ela... passou por maus bocados, no final de tudo. Mas sabe de uma coisa? De uma coisa que eu dizia a ela? – Pergunto a ele. Sam faz que não com a cabeça, envergonhado e entristecido – A solidão é a inimiga da sobriedade, Sam.

Ele cerra os olhos, ponderando sobre essa afirmação. Ficamos em silêncio por um breve momento, e ele absorve minhas palavras com cuidado.

—Acha que eu tenho jeito, El? – Ele passa a mão pelos cabelos castanhos, transtornado – Acha que eu posso conseguir, como ela conseguiu?

Sorrio de maneira fraca. Já vi o que o vício pode fazer com uma pessoa. Pode definhá-la brutalmente. Não sei se o vício em sangue de demônio se assemelha de alguma maneira ao vício em heroína, como era o caso dela. Mas caso seja... ele tem uma grande batalha pela frente.

—Tenho certeza que sim, Sam. Já venceu uma vez, não foi? – Ele faz que sim com a cabeça, levemente contrariado.

—Foi, mas eu estava trancado em um bunker e fui forçado a ficar sóbrio. Dessa vez é diferente... – Seu olhar fica pensativo, e o peso do mundo parece estar em seus ombros – Sou uma bomba relógio. – Ele constata – Sabe, desde que voltei... estou mais explosivo, reativo. Não me sinto no controle do meu próprio corpo.

—Isso deve ser horrível. – Constato, olhando-o preocupada – Mas sabe de uma coisa? Você não está sozinho, Sam.

—Isso é ainda pior, Hazel. – Ele diz, parando diante de mim, os olhos cheios de dor – Porque assim, os danos se estendem a todos com que me preocupo.

—Não pode pensar assim, Sam. Sabe, esse é o preço que pagamos por nos importar com as pessoas e permiti-las em nossas vidas... – Respiro fundo, pensando sobre como me sinto assim como ele nesse exato momento, uma bomba relógio – Podemos machucar as pessoas ou ser machucados por elas.

Ele absorve minhas palavras, atento a cada uma delas. Sam respira fundo, e se encosta na parede perto de uma escada de incêndio que parece levar a um terraço.

É aí que tenho uma ideia.

— Sei que está congelando lá fora, mas...quer ir tomar um ar? Aposto que eles têm um terraço... – Sugiro. Ele pondera a minha sugestão, o olhar interessado na minha proposta.

—Devíamos estar descansando para amanhã, seria meio irresponsável irmos... – Ele diz isso tentado com a minha ideia, olhando de rabo de olho para o corredor, como se fossemos dois adolescentes escapando pela janela um do outro a noite, como costumávamos fazer, anos atrás – Mas eu não consigo falar não para você.

—Não é como se eu fosse conseguir dormir. – Digo, dando de ombros e me encolhendo só de imaginar a lufada de ar frio que me espera lá fora – Não quero ficar sozinha, Sam. Lembra que eu disse que eu não consigo desligar a minha mente? – Questiono, e ele assente, o seu olhar curioso – Também estava pensando em você.

Seu olhar se acende, no mesmo momento em que escuta minha última frase. Ele sorri para mim.

—Está dizendo isso só para fazer eu me sentir melhor, não é? – Ele especula, meio incerto. Eu dou um passo à frente e o encaro bem no fundo dos olhos.

—Não é você que sempre sabe quando estou mentindo? – Ergo uma sobrancelha, com a intenção de provocá-lo. Chego mais perto dele, encarando a sua boca, o corpo inteiro ficando quente por essa proximidade. O que é que estou fazendo? Ele parece confuso e vulnerável com a minha provocação, com a nossa respiração mesclada, sequer se move – Então me diga, Sam... estou mentindo quando digo que não consigo dormir por estar pensando em você?

Me sinto no controle da situação por alguns segundos, mas isso passa rapidamente. A fragilidade deixa o olhar de Sam, e seus olhos se escurecem. Ele se inclina sobre mim e me empurra levemente para a parede, fazendo o meu coração disparar.

O-ou. Fui provocar e agora serei provocada.

Ele sorri de lado, passando a mão grande pelo meu rosto, e então pelo meu pescoço, me acariciando com a ponta dos dedos. Sua outra mão busca pela minha cintura, mas não por cima da blusa e sim por baixo dela. Arfo quando sinto sua mão quente contra a pele gélida da minha cintura. Fico completamente vulnerável, meu corpo inteiro perde o controle. Estou à mercê de suas decisões. Ele inclina a cabeça levemente para o lado, observando a minha reação ao seu toque. Ele acaricia a minha nuca com os dedos, de maneira firme e então a minha bochecha, suavemente. Estou entre seu corpo e a parede, e não gostaria de estar em nenhum outro lugar no mundo.

—Deixe-me avaliar. Diga novamente, El. – Ele usa um tom de demanda ao sussurrar, um tom ao qual eu sou impossibilitada de resistir.

Como nos velhos tempos.

—N-não consegui dormir porque estava pensando em você. – Gaguejo, sem tirar os olhos dos seus e completamente desconcertada com o seu corpo grande e forte pressionando o meu contra a parede, de maneira suave. Ele sorri vitorioso, suas covinhas aparentes enquanto passa o polegar nos meus lábios, lentamente.

Tortura.

Todo o meu corpo se contrai. Ou deus me odeia muito, ou ele me adora, por me colocar em uma situação de tentação como essas. O que aconteceu com todo o meu raciocínio de contar a ele todas as verdades primeiro? O que aconteceu com a razão?

Para o inferno com a razão, aparentemente.

—Boa garota. – Ele constata, aproximando a boca da minha orelha, sem aviso prévio, me deixando zonza – Está falando a verdade. E o seu corpo também está sendo bem sincero agora, não é? Eu posso sentir. – Arfo no minuto que escuto sua voz rouca no pé do meu ouvido, e me arrepio por completo.

—Não sei do que está falando. – Digo com dificuldade, minha boca secando pelo nervosismo. O sorriso lascivo dele cresce mais, e seu olhar se escurece.

—Sabe sim. Mas, não precisa se preocupar, El... – Ele segura o meu rosto delicadamente, e aproxima a boca da minha, o olhar oceânico nos meus lábios – Eu não vou beijar você tão cedo. – Esse sussurro parece uma sentença. Me contraio, quase protestando.

Respiro fundo, o rosto queimando, o olhando incrédula no minuto que ele me solta e dá um passo para trás, me olhando de cima a baixo. Cruzo os braços, desconcertada.

—Não? – Questiono, sentindo que todos os meus neurônios foram para o espaço. Ele sacode a cabeça lentamente em negativa, os olhos tempestuosos nos meus. Sinto todo o meu corpo pulsando.

—Não, não vou. Não enquanto eu não souber todas as coisas que estão sendo escondidas de mim... – Ele começa a dizer, também cruzando os braços. Queria conseguir prestar atenção, mas só consigo focar no fato do quão atraente ele é, alto e forte, e como em questão de segundos ele conseguiu fazer com que eu molhasse a calcinha, sem esforço algum. Que vergonha de mim mesma— E não enquanto você não parar de relutar.

—Relutar? – Questiono, ouvindo só a última parte. Ele aquiesce.

—Está relutante, confusa. Não tem certeza sobre o que fazer, quanto a mim. – Ele constata – E eu vou esperar, pacientemente, enquanto você se decide. Mas até lá... nada de beijo.

—Nada de beijo... – Repito, me lembrando de algo que me faz sorrir – Está repetindo história, Winchester? – O provoco com o olhar. Seu sorriso cresce e ele assente.

—Sabia que se lembraria disso. Não é a primeira vez que prometo não te beijar, El. E você sabe que eu cumpro minhas promessas. – Ele ergue as sobrancelhas, confiante.

Na primeira vez que dormimos juntos, ele prometeu que não me beijaria, naquela noite. E ele cumpriu essa promessa. Isso foi há anos e não consigo apagar essa lembrança nem da minha pele, nem da minha mente. Muito menos do meu maldito coração.

-Bom...como nos velhos tempos, então. – Constato – Parece uma escolha prudente.

—E é. – Ele constata, tirando o casaco de flanela marrom de si e o colocando no meu ombro. O cheiro cítrico e veraneio dele me cobre, junto com a temperatura quentinha do seu casaco – Vamos? – Ele acena com a cabeça em direção a escada.

—Vamos... – Assinto, completamente transtornada e desconcertada por ter sentido o seu corpo tão perto do meu. O cheiro do seu casaco me envolve, e eu percebo que ele ainda usa o mesmo perfume de antes.

Lime basil & mandarin, Jo Malone. Quão perturbada eu sou por me lembrar o nome da fragrância e da marca, depois de todos esses anos?

E quão triste é que eu deseje que ele se lembre do meu também?

XXX

O terraço não é muito grande, e a neve que caiu durante a noite já está quase derretendo. Não chegou a ser uma nevasca, foi apenas um pequeno vislumbre do inverno. O ambiente está escuro, iluminado apenas pela lua e pelas estrelas. O vento gélido faz meu corpo se arrepiar, mas o casaco dele me esquenta o suficiente para que eu fique confortável.

Sam está olhando para cima, para as estrelas.

—Você sempre adorou olhar o céu a noite. – Me aproximo dele ao dizer isso, me recordando de quando ele subia até a minha janela, e me levava para olhar as estrelas, no quintal de casa. Ele olha para mim e sorri.

—Então você se lembra dos nossos passeios noturnos... – Sua voz está levemente rouca.

—Eu me lembro de tudo, Sam. – Me encolho em seu casaco, desejando que o seu perfume fique em minha pele – E as vezes isso é a única coisa que me mantem sã. Me lembrar das coisas boas, meio a toda essa...confusão.

—Sei como se sente. – Seu olhar se torna triste – Uso minhas memórias como âncoras, também. Para não me perder no meio da loucura...

Aquiesço, me perdendo nos detalhes da sua íris.

—Por falar em loucura, fiquei sabendo da sua discussão com Jess, ontem. – Resolvo trazer esse assunto à tona. Ele fica surpreso, como se não esperasse que essa informação tivesse chegado até mim. Pigarreio – Falei com Jess, e ele não vai mais provocar você. Bom... ao menos ele vai tentar não provocar você. Já é um avanço, né?

Ele escuta o que digo, com o olhar compenetrado.

—Sabe... parando para pensar, fui eu quem comecei, sendo hostil com ele desde o início... – Ele coça a cabeça, meio sem jeito – Mas se ele vai facilitar as coisas, eu também irei. – Ele constata. Assinto, grata por ele ter dito isso. Foi mais fácil do que eu pensei que seria— E o motivo de eu ter quase me descontrolado ontem foi porque ele falou uns absurdos, sobre você e... Dean.

Ah, não.

Vamos para águas turbulentas agora. Fico o encarando, imóvel, tentando não demonstrar saber de alguma coisa.

—O Jesse gosta de falar absurdos mesmo... – Um nervosismo me acomete e minha voz sai trêmula sem querer. Vejo seu olhar analisando as minhas reações minuciosamente, seu cenho se franzindo agora. Tento disfarçar, mas sei que ele já percebeu que fiquei desconcertada com o assunto.

—Por que ficou nervosa de repente? – Ele questiona, confuso – Por eu ter mencionado o Dean?

Seu olhar é enegrecido e transtornado, mas sua voz é calma. Isso não é justo.

Não sou eu quem devia contar isso a ele.

Respiro fundo. Eu nem devia estar agindo assim, como se eu tivesse feito algo errado. Eu não fiz absolutamente nada.

—Porque ela não está te contando toda a verdade. Nenhum deles está. – Sam e eu nos sobressaltamos, nos virando para trás no momento em que escutamos uma voz desconhecida. Um homem alto com pele negra e cabelos compridos em dreadlocks se aproxima de nós dois, andando devagar com as mãos nos bolsos. Seus olhos são completamente brancos, sem íris, sem pupila. Apenas um vazio frio e assombroso. Demônios não tinham olhos negros? – Mas...vamos por partes, não é?

—Quem é você? – Sam diz isso com a voz grossa e o olhar afiado. Ele se coloca a minha frente, e sinto o meu coração disparar de medo. Estamos sozinhos aqui em cima. O homem sorri de lado, se aproximando um pouco mais de nós.

—Sou um dos muitos servos fiéis ao pai da garota que está diante de nós dois. – Ele aponta para mim, com sua voz grave e seu olhar branco em minha direção – E o pai dela está ficando cansado de brincar de esconde-esconde. Eu vim buscá-la, Hazel Laverne. E não pense que por ser filha de Astaroth não irei machucá-la se necessário.

—Se eu fosse você, daria meia volta. Não vai tocar nela. – Sam aumenta o tom ameaçador, retirando a faca de matar demônios do cós do jeans e a empunhando. Dou um suspiro de alívio, pelo menos um de nós dois não saiu do quarto despreparado. O demônio dá uma risada irônica, e bate palmas de maneira sarcástica.

—Bem que ouvi falar de você, Sam Winchester. E da sua insolência. O que houve com seus poderes psíquicos que te fazem tão temido por aí, hm? Uma faca é tudo o que tem contra mim? – O demônio se aproxima, e a porta do terraço atrás dele se abre, e mais um demônio surge dela. É uma mulher loira e alta, com o olhar mau encarado, trajando roupas claras e com os pés descalços. O-ou. Ele tem reforços— Serei eu a colocar um fim na sua vida patética, Winchester?

—Deixe-o em paz! – Me intrometo, não conseguindo esconder o desespero em minha voz e dando um passo para frente. Meu coração dispara ao ouvir o demônio ameaçar a vida de Sam— Sou eu quem vocês querem, não é?

Sam me censura com o olhar, e vejo que está tentando calcular uma estratégia para escaparmos daqui.

—Você é a estrela principal, verdade... – A mulher loira sibila com uma voz metálica – Mas o rapaz pode ser... útil.

Sam e eu nos entreolhamos. O que faremos agora?

Um pavor me acomete. E dentro de todo esse pânico, tento buscar os poderes que Jesse insiste que estão presos dentro de mim.

Preciso acessá-los, agora mais do que nunca.

Não é só a minha vida que está em jogo agora.