Capítulo XVI - Quase.

Ponto de vista de Hazel Laverne.

A noite se estende junto a minha agonia crescente, enquanto fico andando de um lado para o outro no quarto.

Mudo uma poltrona de lugar duas vezes, e reorganizo todas as poucas roupas que tenho umas três vezes. Roí as unhas até o limite, e sinto a incerteza me assombrando como um fantasma. Não sei como agir agora que ele voltou verdadeiramente.

Foram cinco anos acreditando no pior, cinco anos remendando o meu coração.

Decido me proibir de ir falar com ele, pelo ao menos por hoje. Empurro a estante de madeira branca para a frente da porta, só para me impedir de sair, e então me deito.

Me forço a fechar os olhos, mesmo que esteja completamente inquieta.

XXX

Ponto de vista de Sam Winchester.

É uma das noites mais confusas de toda a minha vida, disso eu tenho certeza.

Ela não veio me ver, não quis falar comigo. Tenho tanto para dizer a ela, tanto.

Talvez ela apenas não queira ouvir.

Respiro fundo e tento reavaliar tudo na minha cabeça, como se organizasse meus pensamentos em arquivos no fundo do meu lóbulo frontal, como se essa parte do meu cérebro se tratasse de uma maldita gaveta. Talvez ela não queira me ouvir assim como não quis nem me ver pela última vez em Lawrence, anos atrás. As palavras da avó dela ainda estão frescas na minha mente, como o cheiro de tinta em uma casa fechada. Sufocante.

Fico remoendo essas palavras desde ontem...

“Ela quer ser deixada em paz, Winchester. Quer viver uma vida normal, e ela entendeu agora... que não pode ter isso, não com você. E acha que as coisas vão ser mais fáceis dessa forma, sem dizer adeus”

E ela tinha razão. Nada prospera perto de mim, nada bom permanece... bom. Eu destruo tudo o que eu toco.

Ficar pensando nisso é como roer um osso até o limite. E rapidamente, a noite passa sem que eu sequer pregue os olhos.

Com a manhã rastejando pelo céu, decido vestir uma camiseta preta, com uma camisa de flanela marrom por cima para me abrigar do frio, e desço as escadas em direção a cozinha. É tão estranho estar... vivo de novo.

Dou de cara com Dean, que está bebendo uma dose de vodca. Franzo o cenho para ele e aponto para o copo em sua mão:

—São seis horas da manhã, Dean. – Ele me disfere um sorrisinho ao beber o resto do líquido transparente em seu copo de shot. Tudo ao meu redor ainda parece confuso, voltar a normalidade depois de estar morto é quase cômico. Pequenos gestos de normalidade como encontrar meu irmão na cozinha do Bobby parecem irreais. Vou demorar para me acostumar.

—Tenho certeza de que é meia noite em algum lugar do mundo. – Ele deposita o copo na mesa e cruza os braços, me encarando como se eu fosse uma miragem ou algo do tipo. Bobby e ele têm me olhado assim desde que voltei. Acho que não sou o único com dificuldade para processar tudo isso – Eu fiz café, está em cima da pia.

Ele aponta o indicador para uma caneca azul acima da pia, e eu me sirvo de um copo.

—Fez café para quem, se está bebendo vodca? – Pergunto. Ele dá de ombros e passa a mão pelos cabelos loiro-escuros. Examino o rosto do meu irmão discretamente, como se suas feições pudessem me revelar tudo o que aconteceu desde que estive...no inferno.

As olheiras profundas e o cabelo sem muito corte me dizem exatamente o que eu preciso saber sobre ele. Está exausto.

—Porque agora vou tomar um café russo! – Ele se levanta e vem ao meu lado, e despeja o líquido preto em uma dose de vodca nada moderada. Faço uma careta de nojo quando ele dá o primeiro gole, e torna a se sentar na mesa – Não pareça tão surpreso, Sammy. Meus hábitos nunca foram bons.

—Eu sei, mas parecem ter piorado. – Digo isso com cautela, me sentando de frente para ele. Disfiro a Dean um olhar preocupado – Como você... por onde você andou enquanto eu estive...- Pigarreio, tentando achar um jeito delicado de me referir ao inferno – Enquanto eu estive...fora?

Ele respira fundo e bebe mais um gole.

—Fiquei com Lisa e Ben por um tempo, e então... – Seu olhar se torna confuso por um tempo, tenso. Ele hesita por um momento, e então pigarreia – Depois voltei para a estrada. E aí descobri o que estava rolando com a Laverne, e fui investigá-la, achando que ela sabia de tudo desde o começo. Foi quando Cas e eu descobrimos que ela era inocente... e todo o resto. E então estivemos por aí, ela e...eu.

Assinto, pensativo. É difícil de imaginá-la vivendo por aí, de cidade em cidade, sendo treinada por Dean e passando por todos os tipos de perigos imagináveis, descobrindo cada vez mais esqueletos em seu armário.

—Você a protegeu, certo? Desde que soube que era inocente? – Meu coração se aperta, pensando na ironia do destino. Achei que minha ausência pudesse mantê-la longe dessa vida, protegê-la. Mas nem isso foi suficiente.

Dean me olha de maneira profunda e firme. Ele aquiesce com a cabeça.

—A protegi com todas as minhas forças, mas falhei em alguns momentos, Sammy. Me perdoe por isso. – Dean me disfere um olhar a que sou familiar. Ele nunca dá o valor devido aos seus atos, sempre se sentindo insuficiente. Ele suspira profundamente antes de continuar – Mas ela segurou as pontas. Ela é durona.

Sorrio, me lembrando de como foi ela que me tirou do estado de choque, no vale das sombras, tomando a iniciativa de segurar a minha mão para corrermos daquele lugar. Se existe uma pessoa forte nesse mundo, esse alguém é Hazel.

Fico em silêncio por um tempo, e vejo o olhar verde e preocupado do meu irmão recaindo sobre mim. Já tenho o pressentimento de qual é o assunto que ele quer tocar.

—Sammy...do que se lembra? – Sua voz é rouca, e cautelosa. Dou de ombros após um longo suspiro.

—Nada. Absolutamente nada, Dean. E sei como isso soa, sei mesmo! – Me apresso a dizer, antes que ele me acuse de estar mentindo, como ele mentiu para mim quando voltou do inferno, anos atrás – Há um borrão preto entre o dia em Detroit, e o vale das sombras. Me sinto... estranho. Bloqueado, entende? – Ele presta atenção em cada uma das minhas palavras – Como se eu não tivesse acesso a algumas partes da minha própria mente. É... desconfortável.

—O cavaleiro da morte disse que tinha... construído uns muros, aí na sua mente... – Ele aponta para a minha cabeça com o indicador com receio, como se eu fosse uma bomba relógio – Mas disse que não ia durar para sempre, Sammy. Preciso que me diga quando isso acontecer... – Ele me olha no fundo dos olhos, expressando compaixão – Preciso saber quando esses seus muros caírem. Eu já estive lá, Sammy. Acredite em mim quando eu digo que quando as lembranças voltarem, você vai precisar de ajuda.

Assinto, incomodado com tudo isso. Sei que devia estar grato por não me lembrar do inferno, mas não consigo. Estou aflito.

E o motivo é mais lógico do que possa parecer. Meu medo é fundado por saber que, no momento que esses muros ruírem, e eles irão ruir, vou ficar danificado além de qualquer tentativa de reparo.

Vou me fragmentar. Engulo em seco e tomo um gole de café.

—Não se preocupe, Dean. Temos coisas piores para nos preocuparmos... – Me inclino para a frente, apoiando meus braços sobre a mesa enquanto o encaro com seriedade – Eu falo sério quando digo que vou matar Crowley pelo que ele fez com a Hazel, Dean. Eu só preciso descobrir como.

O olhar do meu irmão é tão sério quanto o meu quando ele umedece os lábios antes de dizer:

—Nós vamos matá-lo, no momento certo. Precisamos treinar os... poderes de x-men da Hazel, e Jesse vai nos ajudar com isso. – Ergo as sobrancelhas, levemente surpreso. Então o nome do sujeito é esse — Depois, a gente pensa em um plano.

—Que plano? – Ergo os olhos para a porta da cozinha ao ouvir essa pergunta, onde o tal Jesse acaba de entrar, indo de encontro a um copo de café que ele mesmo se serve. Ele se encosta no balcão e nos encara, interessado.

—O plano de desenvolver os poderes da Hazel. – Dean se apressa a responder, rápido demais. Eu ia dizer a ele que não era da conta dele, mas não deu tempo.

—Deixem isso comigo, se preocupem com o... restante. – Ele diz isso me olhando de soslaio, bebericando um pouco do café fumegante. Restante? Ele diz isso como se eu fosse a porra de um problema a ser resolvido. Me levanto e cruzo os braços, encarando Jesse com um tom ameaçador, enquanto o sangue pulsa quente em minhas veias.

—Não, isso não vai rolar. – Digo da maneira mais ríspida que consigo, sentindo o meu maxilar se tensionar – Nós vamos ajudá-la durante todo o processo. – Meus olhos o percorrem por completo, com um olhar de julgamento – Não confio em você, então tire essa ideia da sua cabeça.

Toda essa história de poderes ainda está nebulosa na minha mente. E se tem uma pessoa nesse mundo que entende desse tipo de coisa, esse alguém sou eu. E sei que ele provavelmente quer ajudá-la, quer protegê-la, e que devo parecer um maluco agindo como se eu tivesse algum tipo de direito de opinar nessa situação toda. Como se a minha opinião valesse mais do que a dele, que é quem está com ela agora. Mas não consigo evitar.

Ela precisa da minha ajuda, e eu não vou virar as minhas costas para ela. Quer esse Jesse goste disso ou não.

Jesse dá uma risadinha debochada, e bebe um pouco mais de café.

Quero quebrar esse seu sorrisinho na base da porrada, mas me contenho. Ele irrita cada fibra de mim.

—Sabe, Sam... eu tenho a leve impressão de que você tem algum tipo de problema comigo. – Ele diz isso dando um passo à frente, me encarando nos olhos. Rio de maneira irônica, meu punho se fechando com força.

—Uau, você tem uma percepção afiada! – O veneno da ironia pinga por minhas palavras, manchando o ambiente com um clima hostil - Qual o seu nome mesmo?!– Pergunto com desdém, deixando claro que ele é o forasteiro aqui.

—Jesse Turner. – Ele me responde com as sobrancelhas erguidas, tentando parecer desinteressado – E eu gostaria que você cortasse essa sua atitude para cima de mim, Winchester.

Rolo os olhos para ele, e trombo nele para sair dali certo de que se eu permanecer no mesmo espaço por muito tempo as coisas não acabarão bem.

—Cara, eu juro... – A voz dele sai irritada. Paro e me viro para ele novamente. Vejo que finalmente o irritei— Se fizer essa porcaria de ficar trombando em mim todas as vezes que sai de um ambiente, você vai ter problemas.

Sorrio desafiador para ele, e caminho lentamente até ficar a centímetros dele, encarando os seus olhos com fúria.

—É?! Que tipo de problemas, Turner? – Sinto minhas unhas se cravarem em minha palma quando cerro os punhos. Jesse abre a boca para me responder, mas é interrompido.

—O que está acontecendo?! – Ambos olhamos ao mesmo tempo para a porta ao ouvirmos a voz cadenciada de Hazel. Dou um passo para trás, e engulo em seco.

Todo o meu interior parece formigar enquanto meus olhos a percorrem. Seus cabelos castanhos estão presos em um rabo de cavalo, com algumas mechas soltas de maneira propositalmente bagunçada. Sei disso porque a conheço a tempo demais. As maçãs do rosto proeminentes, os olhos inconfundíveis que me lembram uma floresta do colorado que visitei quando era pequeno. Ela tem as mãos dentro dos bolsos de um casaco marrom, e sinto o seu rosto se enrubescendo quando nosso olhar se cruza.

Está tão linda.

Ficamos em silêncio por tempo demais, seus olhos parecem incapazes de desviar dos meus, e meio ao meu coração pulsando em meus ossos com o frenesi por vê-la novamente, espero do fundo da alma que isso irrite o namorado idiota dela. Sei que isso é imaturo, e honestamente não me importo nenhum pouco. Não importa o que ele faça, ele nunca vai ser o primeiro.

Eu fui o primeiro.

O ar parece paralisado, e luto contra a vontade de abraçá-la. Isso seria demais. Ela nem quis falar comigo ontem... por que me abraçaria de volta hoje, especialmente na frente do namorado? Não... não vou me atrever a isso. Meio ao silêncio que se estende, Dean pigarreia.

—Eu vou dar uma voltinha. – A voz do meu irmão sai desconfortável, ao se levantar da mesa e passar por Hazel, indo para a sala de estar.

—Eu estarei lá fora se precisar de mim, Lavie. – Jesse Turner usa uma voz terna ao se posicionar ao lado de Hazel, enquanto abre um maço de Marlboros e dele tira um cigarro e o coloca entre os lábios, sem acendê-lo. Ela olha para ele e sorri ao assentir, e ele sai finalmente de perto dela, desaparecendo pela porta.

Isso faz todo o meu corpo se contorcer por dentro. Não acredito que ela está com esse cara. Ele é um completo idiota, e para completar, um idiota que fuma.

Quando ficamos finalmente sozinhos, não sei o que dizer. Coloco as mãos nos bolsos do jeans, e de repente quase esqueço como falar meu próprio idioma.

Faz tanto tempo. Tudo mudou.

Tudo.

—Você disse que se pulássemos no trem e fôssemos para fora daquele lugar, íamos conversar. – Minhas palavras saem trêmulas, enquanto vou chegando perto o suficiente dela para sentir o seu perfume de flor de alecrim. Eu me lembro desse cheiro muito bem - Por favor, me diga que agora podemos fazer isso...

Não queria que tivesse saído como uma súplica, mas saiu.

Ela ergue o olhar para mim, e assente devagar. Parece confusa, transtornada.

—Vamos lá para cima? – Ela sugere. Aquiesço e subo as escadas com ela, em silêncio e com o coração disparado.

Espero por essa oportunidade há anos. E não posso acreditar que finalmente está acontecendo.

XXX

Ponto de vista de Hazel Laverne.

Ele fica encostado na parede, as mãos nos bolsos do jeans, me olhando intensamente, e não consigo decifrá-lo. Está tenso? Está com medo? Respiro fundo, não sendo apta a decifrar nem mesmo a mim mesma. Fecho a porta atrás de nós, as mãos suando frio.

Um silêncio constrangedor se solidifica no ambiente, e sinto o meu rosto ardendo enquanto o meu coração colapsa. Fico incerta sobre quais perguntas fazer primeiro, tendo em vista tudo o que passamos.

Mas então, as palavras saem da minha boca, livres e certeiras:

—O que foi que minha avó disse a você, Sam? Em outubro de 2000? – Essa me parece a pergunta mais importante de todas. O olho com certa dor, e percebo que não será uma conversa fácil. Tudo em mim dói. Pelos seus olhos tempestuosos, desconfio que sinta o mesmo. Ele respira profundamente.

—Ela me deu o seu recado, El. Que não queria mais me ver e que queria viver em paz, uma vida normal. – Sinto um calafrio ao ouvi-lo dizer o apelido que ele me deu, anos atrás. Vai ser difícil me acostumar com isso. Ele faz uma cara de conformado, como se sentisse a dor, mas a compreendesse. E seus olhos são tão ressentidos nesse momento, apesar da sua compreensão, que quase sinto minha pele queimar sob seu olhar – Fiquei com raiva por muito tempo, por você não ter querido nem mesmo dizer adeus. Mas...eu acho que você estava certa, de verdade...

Sacudo a cabeça de um lado para o outro, com lágrimas brotando em meus olhos. Ele para de falar, e franze o cenho, completamente confuso. Ele não sabe de nada.

Nem imagina a verdade.

—Que filha da puta...- Exclamo em um sussurro, limpando as lágrimas dos olhos e respirando fundo, tentando permanecer firme. Odeio isso em mim, queria gritar. Queria passar horas gritando por tudo o que aconteceu, mas não consigo. É como não ter voz alguma – Não é verdade, Sam. O que a minha avó disse a você. Não é verdade...

—Como assim?! – Ele se desencosta da parede e vem para mais perto de mim. Sam fica pálido imediatamente, e seus olhos encontram os meus com confusão.

—Ela fez uma bagunça gigantesca! Antonella mentiu para você, Sam. E mentiu para mim também... – Minhas lágrimas saem com raiva, imaginando como alguém pode ter tido a coragem que ela teve de ceifar a oportunidade de duas pessoas resolverem os próprios caminhos de maneira tão cruel. Eu nunca vou perdoá-la por isso, nem por todo o resto – Sei que deve estar confuso agora, mas eu vou tentar esclarecer tudo, da melhor maneira que eu conseguir. Ela inventou isso que ela te disse, Sam. Eu nunca, jamais, disse nada disso... E para mim, ela disse que você nunca foi sequer me ver, Sam.

Seus olhos mudam drasticamente. Vejo uma tempestade se formando em seu oceano, conforme a realização do que realmente aconteceu lhe acomete. A raiva o consome, seus punhos se fecham e eu posso ver a dificuldade que ele tem de se manter calmo.

—Mas eu fui, por dias e dias! – Ele soa indignado e ferido enquanto passa a mão nos cabelos compridos e suspira, nervoso. Suas mãos tremem, e ele parece a beira de um colapso nervoso – Ela não me deixava entrar, Hazel! Mas eu ia, todos os dias, na esperança de poder te ver... – A voz dele se quebra, e meu peito se contorce, imaginando-o no hall do hospital, agoniado por não poder entrar – Eu não ia desistir, mas quando ela disse isso que te falei agora, eu...eu tive que respeitar a sua vontade. Eu não podia te desrespeitar, passar por cima do que você havia decidido, entende? O que você queria era mais importante para mim do que qualquer coisa do mundo, então eu... eu fui. Fiz o que acreditava ser a sua vontade, El.

Seus olhos são feridos, e sinto a minha garganta queimar.

—Não foi a minha vontade, acredite em mim! Para mim, você havia me deixado para trás, Sam. Você havia sumido sem deixar rastros, de acordo com ela. Agora é claro que... eu sei a verdade. – Suspiro com dor no peito, e esfrego o rosto para limpar as minhas lágrimas teimosas, sentindo raiva por ser tão vulnerável perto dele – Assim que contei a Dean sobre o que eu acreditava, ele me contou que era tudo mentira. Me contou que você havia ido me ver, todos os dias. E desde então, fiquei sofrendo ao imaginar que tipo de coisa ela podia ter inventado e dito a você. As possibilidades me mantiveram acordada por muitas noites, desde que descobri tudo isso... – Respiro fundo e aperto os punhos - Eu sinto muito, Sam. Que ela tenha dito isso a você. Não foi verdade, nenhuma palavra. Sinto muito que ela tenha me usado para te machucar, Sam.

Seus olhos se enchem de lágrimas, mas ele parece contê-las melhor do que eu. Sinto que ele está desabando por dentro, mas que está segurando as pontas por minha causa.

—Eu nunca teria te abandonado, Hazel. Só fui embora porque acreditei que era isso que você queria que eu fizesse! – Ele tem a voz envolta por dor e raiva. Ouço cada letra embebida nesses dois sentimentos – E depois do ataque de Azazel...eu só queria que ficasse segura, Hazel. E deixá-la foi a coisa mais difícil que tive de fazer, preciso que entenda isso, El. Preste bem atenção, por favor... – Ele dá um passo a frente, ficando um pouco mais perto de mim, completamente transtornado. Só por se aproximar um pouco, sinto o ar ficando mais denso. Seus olhos buscam os meus com desespero – Te deixar sem dizer adeus foi a pior coisa que eu fiz na vida, Laverne. E não foi, nem por um segundo, uma escolha que eu tomei por mim.

Nos encaramos em silêncio por um momento, os nossos olhos transbordando dor. Sam está hiperventilando enquanto ele dá um passo para trás e se apoia na madeira da cabeceira da cama. Os nós dos seus dedos estão brancos de tão firme que ele se apoia ali, como se estivesse prestes a quebrar alguma coisa.

—Eu te odiei por anos, Sam. – Ao confessar isso, dou um passo para trás e me encolho em meu casaco, envergonhada de admitir esse sentimento que cultivei por anos em voz alta – O odiei por tanto tempo, acreditando em tudo o que ela disse. E isso não é justo. Não é...

Minha voz se quebra, o gosto do ódio na ponta da minha língua.

Ódio sintético, cultivado por sobrevivência, semeado por Antonella Laverne.

—Ainda odeia? – Ele questiona, as sobrancelhas erguidas com um olhar de cão abandonado. Ele para de se apoiar na cabeceira, e anda até a minha direção – Agora que sabe a verdade?

—Não, Sam. Não te odeio, não mais... – Sinto todo o seu corpo se aliviar ao dizer isso, mas ainda assim, vejo o quão tenso ele está. Sei disso porque quase posso ver cada músculo do seu corpo se contraindo.

—Eu também me... ressenti de você por um tempo, El. Mas fazia tanto sentido para mim que você não me quisesse mais depois do incêndio... – Ele respira fundo, e umedece os lábios – Por falar em ressentimento...por que não veio falar comigo ontem à noite, Hazel? – Sua voz é magoada, assim como seu olhar - Tem noção de como me senti? Sei que não tenho direito algum de sentir nada... - Ele respira fundo, claramente ferido - Mas por favor, me dê um motivo para ter feito isso... - Olho para baixo, respirando fundos sem conseguir sustentar seu olhar inquisidor.

Porque toda a minha linha de realidade se despedaçou em um milhão de pedacinhos e o meu passado está me engolindo, penso. Porque nunca imaginei que fosse ter a oportunidade de te dizer todas essas coisas e prometi a mim mesma que ficaria a uma distância segura de você, acontecesse o que acontecesse, pela minha própria sanidade, e agora...não sei de mais nada.

Não. Não dá para dizer nenhuma dessas coisas.

—Não sabia como agir perto de...você. – Digo, por fim, o que também é verdade – É tudo tão confuso, Sam. Não quis ser indiferente, e acredite em mim, a última coisa que senti foi indiferença. Só estou passando por muita coisa...

Minha voz morre, e ele assente lentamente, acreditando em minhas palavras.

—Não precisa ser estranho, sabe? – Ele diz, dando um passo para trás, o rosto ainda coberto de ressentimento – Nós. Sei que... os anos se passaram, eu tenho noção disso. Não quero te deixar desconfortável.

Meu estômago se contrai.

—Não estou desconfortável, Sam. Só... – Minha voz morre mais uma vez. Não contei a ele sobre o aborto, ou sobre todo o resto, e nem sei se consigo. Não dá para processar quase cinco anos de trauma em um dia. Respiro fundo antes de continuar – É tanta coisa para assimilar, Sam...

—Eu sei, acredite... – Ele suspira, notando a minha dificuldade com as palavras.

Ficamos em silêncio por mais um tempo, até que seu olhar desce dos meus olhos para o colar em meu pescoço. O ressentimento deixa seu olhar por um momento, e ele sorri de lado, quebrando a pequena distância entre nós dois ao dar alguns passos em minha direção. Sam segura o pingente com sua mão, o girando em seus dedos, e senti-lo perto assim de mim faz todos os pelos do meu corpo se arrepiarem. Temo que possa ouvir as batidas violentas do meu coração, então engulo em seco e não me atrevo a encará-lo nos olhos.

—Você me odiou por todo esse tempo, mas não jogou isso fora?! – Ele indaga, o sorriso crescendo mais em seu rosto. Sorrio timidamente, sentindo o sangue bombeando freneticamente em meu rosto, avermelhando a minha pele.

—Pois é, mas não se gabe muito, eu realmente gostei do pingente e foi só por isso que ele escapou de ser jogado fora. – Uso um tom de brincadeira ao dizer isso, e ele ri.

—Ouch. Não precisa me humilhar, Laverne. – Ele também usa um tom leve, descontraído, e retira a mão do pingente, recolocando-a em seu bolso.

—Estou brincando. Não é esse o motivo de ter o guardado. Sabe disso, não sabe?! – Indago a ele. Não quero que pense, nem por um minuto, que sou indiferente a ele. Especialmente agora que sei sobre o que ele passou. Ele sorri de lado.

—Eu consigo pensar em um motivo ou dois para você ter o guardado... – Sua voz é suave, o olhar nostálgico em seu rosto – Afinal, te dei ele no nosso primeiro... natal.

O sorriso malicioso que ele me disfere ao pronunciar a palavra “natal” faz com que todo o meu corpo trema um pouquinho. Ele sabe o que isso fez comigo, sei que sabe.

Está se referindo ao nosso primeiro e único natal, mas também está se referindo a noite em que perdemos a virgindade um com o outro, em sua casa. Como se eu fosse capaz de me esquecer...

—Foi sim. – Digo, pigarreando e tentando conter a minha vergonha. Fico toda desconcertada – E isso foi um golpe baixo da sua parte, espero que saiba disso, Winchester. – Uso um tom descontraído. Ele ergue as mãos no ar, rindo. Como se estivesse se rendendo.

Que sorriso lindo, meu deus. Eu poderia morar nesse maldito sorriso.

—Desculpe, eu não consegui resistir, precisava ter certeza de que as nossas lembranças mexem com você tanto quanto mexem comigo. Mas...acho que vou ter que me acostumar, afinal... – Seu sorriso diminui até sumir, e ele pigarreia, o olhar levemente machucado me encarando – Acho que você prefere bad boys agora, não é?

Franzo o cenho para ele, sem entender.

—Do que está falando? – O questiono, genuinamente curiosa.

—Estou me referindo ao idiota de um metro e meio que está lá embaixo... – Sua voz é amargurada e descontraída ao mesmo tempo, se é que isso é possível. Franzo o cenho, confusa, e chego à conclusão de que ele deve estar se referindo a Jesse.

—Ele é mais alto que eu, e eu não tenho um metro e meio! – Digo, fingindo estar ofendida. Ele ri, e posiciona a mão no topo da minha cabeça traçando uma linha invisível até um pouco abaixo do seu peitoral, onde eu bato. Rolo os olhos com a provocação. Como se eu não soubesse que não sou lá muito alta perto dele... – E você não está sendo justo. Qualquer um fica baixinho perto de você, até o Dean.

Ele dá de ombros, e coça a nuca.

—De qualquer forma, tinha que arrumar um fumante, Laverne? Sério?! – Fico triplamente confusa quando ele diz isso, tentando entender onde é que ele quer chegar. Sam pigarreia e continua, com o olhar preocupado – Brincadeiras à parte, só quero o melhor para você. De verdade. Mas honestamente, esse Jesse Turner...eu não consigo entender o que foi que você viu nele.

Ele diz o nome do meu irmão com desprezo, e eu começo a me questionar se ontem deixaram mais partes de fora da explicação, fora as que sabia que deixariam.

—Espere um minuto... – Intervenho, erguendo a mão no ar por um momento – Não te explicaram nada sobre Jesse e eu, ontem?

—Eu juntei os pontos sozinho, só isso. – Ele dá de ombros meio amargurado, cruzando os braços com o olhar sério – A postura protetora dele quanto a você, o apelido...Está tudo bem, sério. Eu nem tenho o direito de estar te falando isso, se está feliz é isso o que mais importa, só não fui com a cara dele... - Sam respira fundo, inquieto – Sei que nosso relacionamento acabou há muito tempo, El. Mas... você foi a minha primeira namorada, e eu não consigo não me preocupar com você, e ver que está com o cara errado é meio perturbador para mim, tendo em vista todo o nosso histórico...

Junto os pontos na minha cabeça e tenho vontade de rir, mas me contenho. Ele acha que Jesse é o meu namorado.

Por um momento, fico o encarando, perplexa. Sinto meu estômago esfriar só pelo fato de constatar que, caso eu tivesse um namorado, isso o incomodaria.

Não tenho esperanças de nada, no entanto. Mas não consigo não me aproveitar disso por um momento:

—O que faz você pensar que ele é o cara errado para mim, Sam? - Questiono, sorrindo sem querer. Sam parece envergonhado, e ele coça a nuca de maneira desconfortável. Ele não estava esperando ser questionado.

—Eu... – Ele está completamente perdido, e eu me sinto uma pessoa péssima. Mas é irresistível ver até onde isso vai— Ah, El. Não me faz fazer isso. Eu só sinto, ok? Que ele não é o cara certo para você. E não é da minha conta, sei disso também...

Assinto, com os olhos levemente cerrados para ele.

—Entendi... então você é quem vai aprovar o cara certo para mim, é isso? – Ergo uma sobrancelha, de maneira quase especulativa. Ele ergue as sobrancelhas, completamente desconcertado pela situação.

—Não, é claro que não! – Ele dá de ombros e dá um passo para trás, enfiando as mãos nos bolsos – El, me desculpa. Jesse e eu nos desentendemos, foi só isso...

—Era sobre isso que estavam quase se batendo lá na cozinha? – Vejo que ele está quase hiperventilando de nervoso, e me sinto mal por ter me aproveitado disso tudo, mesmo que só um pouquinho, e decido esclarecer tudo – Sam... Jesse Turner é meu irmão por parte de pai. Hm, pais, no caso. Longa história... – Vejo a cor desaparecendo do seu rosto por um momento, enquanto ele assimila as minhas palavras.

—Não... não é seu namorado?! – Ele pergunta, de queixo caído e querendo ter certeza da informação, e eu acabo sorrindo.

—Não, Sam. É mesmo o meu meio-irmão. Como eu disse, longa história..., mas o que Harvey fez comigo, fez com Jesse também. Eu e ele...somos híbridos. – Pigarreio após dizer isso, envergonhada por ser o que sou. Ele fica estático, pensando em tudo o que acaba de ouvir.

—Eu me sinto um idiota... – Ele dá um suspiro, colocando as mãos na cabeça por um momento, bufando com raiva de si mesmo. Sam torna a abaixar as mãos e balança a cabeça de um lado para o outro, incrédulo – Eu fui um babaca com ele.

—Relaxa, eu também fui babaca com ele uma vez... – Digo isso me lembrando do dia do ferro velho, onde me exaltei com ele. Ainda estou me sentindo mal pela maneira como agi com ele, especialmente depois de ter visto o olhar dele quando acordei. Se havia alguma dúvida em mim antes, não há mais nenhuma, Jesse realmente se importa comigo. Sei que, sem as memórias, não consigo sentir nem uma parcela do que ele sente, mas eu quero sentir. Eu quero me aproximar dele e quero minhas lembranças de volta – Jesse é um cara legal, Sam. E ele vai me ajudar a tentar... engatilhar os meus poderes.

— Ele mencionou algo sobre isso, mas espere um minuto... – Sam parece confuso, e se senta na cama com as mãos nos joelhos – Será que pode rebobinar um pouco? Como descobriu que ele é seu irmão e como é que funciona esse negócio de poderes? Dean tentou explicar ontem a noite, mas eu gostaria de ouvir de você.

Me sento ao seu lado, e conto tudo a ele, com o coração apertado. Conto a ele sobre as coisas que George White disse, sobre minha falta de memória ser culpa dos poderes de Jesse, sobre tudo que há para se saber sobre Jesse e eu e nossos poderes bizarros. Ele me escuta calmamente, e fica pensativo.

Enquanto vejo os raios cálidos do dia refletindo em seus olhos verdes, nós dois sentados assim tão perto enquanto conversamos sobre as coisas...Parece até mesmo que nada mudou. Por um momento que seja, sou a garota de anos atrás e ele, o garoto.

Isso é tão assustador.

Sam Winchester suspira, os olhos preocupados e pensativos.

—Não vai estar sozinha, El. Durante toda essa loucura de Astaroth e Crowley e quem mais seja...- Ele me olha no fundo dos olhos, sua mão apoiada na cama perto demais da minha – Eu vou estar com você a cada passo. Te ver do outro lado, daquele jeito... – Sua voz morre por um tempo, parece fragilizado – Foi horrível. Planejo uma vida longa para você, Hazel Laverne.

Sorrio para ele, tristemente.

—Você sabe, tanto quanto eu, que isso é improvável. – Minha voz sai sussurrada e como uma sentença, sabendo que muito provavelmente morrerei na longa estrada que está diante de nós. Ele faz que não com a cabeça, com o olhar sério.

—Não, escute o que digo, El... você vai sobreviver a isso. Não é uma simples afirmação. – Ele usa um tom firme, e ergue a mão no ar, colocando uma mecha solta do meu cabelo para trás da minha orelha. Respiro fundo e sinto um frio no estômago quando ele faz isso enquanto me olha tão fundo nos olhos assim – É uma promessa.

Sorrio para ele, e então olho para baixo.

Ficamos quietos por um momento, e ele parece estar em conflito com algo em sua mente.

—O que foi? – Pergunto a ele. Sam, que estava com a cabeça baixa e o olhar pensativo, torna a me encarar.

—A última vez que você me viu, não foi a última vez que eu te vi. – Ele começa a dizer, ajeitando a postura – Sabia?

Faço que não com a cabeça, completamente confusa. Ele me disfere um sorriso triste.

—Tive um momento de insanidade, pouco mais de um ano depois incêndio. Quase dois anos depois, acho. Eu dirigi de Denver, onde estava trabalhando em um caso, até Nova York. Eu sabia que você estaria na NYU, simplesmente sabia. – Ele suspira e mexe nervosamente em suas próprias mãos, inquieto – Eu só queria saber se estava bem, se parecia feliz. Fiquei do lado de fora do prédio do dormitório feminino, no carro. Bem longe, perto de umas árvores. Só queria te ver por um segundo e ir embora. Quando você finalmente apareceu, estava com um cara caminhando ao seu lado. Ele estava segurando na sua cintura e... – Ele pausa a fala por um momento, como se fosse difícil continuar. Meu coração se estilhaça ao ouvir isso. Eu nunca imaginei que ele tivesse me visto depois do acidente, especialmente com Noah — Foi uma das piores dores que eu senti, mas também o maior alívio. Você parecia estar bem, Hazel. E isso era o mais importante. Eu temi que tivesse estragado a sua vida, por ser eu quem...Azazel queria atingir, afinal de contas. Eu nunca me perdoei, pelo incêndio. Ver que você tinha superado tudo aquilo...tornou as coisas um pouco mais fáceis.

Absorvo suas palavras, sentindo dor. Queria ter o visto, queria que tivesse saído do carro e me dito todas as coisas que me disse hoje. Mas não dá para a gente alterar essas coisas. O que está feito, está feito.

E isso é cruel.

—Nem sei por que estou te contando isso... – Ele respira fundo, esfregando o próprio cenho com o polegar, aparentemente drenado emocionalmente – Tem tanta coisa não dita entre a gente, El. E eu tenho essa sensação... esse comichão por dentro da minha pele que me diz que vocês estão escondendo algo de mim.

Seu olhar é o de sofrimento, e eu me afogo em culpa. Sei que ele tem o direito de saber a verdade, sobre o que Crowley fez com ele e tudo o que foi feito por seu corpo desde então.

Mas não consigo dizer a ele. Não agora.

No minuto que souber... isso vai acabar com ele. E foi de comum acordo entre Dean, Bobby, Jesse e eu que agora não é o melhor momento para ele saber a verdade.

—Você voltou a vida não tem nem 48 horas, Sam. É natural que se sinta por fora de tudo, um forasteiro na própria pele. Mas... tenha calma. Tantas coisas aconteceram de lá para cá, e se quer saber... está todo mundo um pouco perdido. – Tento soar o mais convincente que consigo. Sam analisa as minhas palavras, e sorri tristemente. Sua covinha se evidencia por isso, deixando sua expressão doce.

—Você não pode se esquecer de uma coisa, El. Eu sempre sei quando está mentindo para mim, lembra? – Ele diz isso com a voz triste, o olhar taciturno. Está se referindo a como tínhamos essa conexão inexplicável um com o outro, do tipo que parecia até mesmo telepatia as vezes. Suspiro, pensando no que dizer, mas ele prossegue – Não se preocupe. Sei que, seja lá o que for, vai me dizer eventualmente. Ou... eu irei descobrir eventualmente. De todo modo... me resta ser paciente.

Ele dá de ombros, vencido pela situação, momentaneamente. Sinto um peso enorme em meus ombros.

Sam se levanta, pensativo e confuso. Ele anda um pouco pelo quarto, as mãos na nuca, totalmente tenso.

Me ergo da cama e me encosto na parede, pensando no que dizer a seguir.

—Nesse tempo em que esteve com Dean, o quanto você sabe sobre tudo o que me aconteceu, El? – Ele me questiona especulativo e um pouco temeroso.

Ele tem medo do que vou pensar dele.

—Usei meu dom em Dean, na noite que ele e Castiel me levaram para o Hotel Mormont. – Começo a explicar, e no minuto que digo isso, Sam parece se contrair um pouco – Então... tudo o que ele viu, eu...pude ver também.

—Então você sabe sobre o sangue de demônio. Sobre meus caminhos tortos e todas as coisas que eu fiz até chegar no momento em que me joguei na jaula, certo? – Seus olhos expressam vergonha. Assinto, lentamente, e vejo ele abaixar a cabeça por um momento, suspirando e aceitando o fato de que sei sobre sua parte mais sombria – Acho que não sou mais o garoto que você conheceu em Lawrence, não é? – Um sorriso triste e desapontado consigo mesmo surge em seu rosto.

Faço que não com a cabeça. Esse medo que Sam tem de ser julgado, é algo que aparentemente não mudou dentro dele ao longo dos anos. Isso me entristece.

—E eu não sou mais a mesma garota também. Sabe, Sam... você sempre agiu como se você fosse um perigo para as pessoas ao seu redor, e sempre se sentiu deslocado. Sempre teve uma coragem para cruzar linhas que os outros não tinham... – Respiro fundo, me aproximando um pouco dele – E ainda por cima, imagino que teve que ser julgado o tempo inteiro por isso. Mas você precisa saber que, eu não vejo as coisas dessa forma. Eu sou como você, Sam. Não tenho culpa alguma de ser o que sou. E estou mais do que disposta a cruzar a linha do macabro, se for para fazer a coisa certa, assim como você fez. A maioria das pessoas não entende isso, mas eu entendo. Se pensa por um momento que eu o julgo, saiba que está enganado. Eu sempre o vi como você realmente é. E, antes que eu me esqueça, preciso que entenda que o incêndio não foi sua culpa, Sam. Azazel é um monstro, ele é o culpado. – Passo a mão pelo meu cabelo e respiro fundo – Se quer culpar alguém, culpe ele. Não a você.

Ele escuta as minhas palavras, com os olhos emotivos. Sam parece relutar contra algo mentalmente, mas seja lá o que for que estava tentando se convencer a fazer ou não fazer, parece perder a batalha ao andar até mim. Sinto o meu coração disparar quando ele envolve o meu corpo com as suas mãos, me puxando para um abraço, me surpreendendo completamente. Fecho os olhos e sinto os seus braços fortes pelas minhas costas, as mãos na minha cintura. O queixo em meu ombro, o corpo reclinado sobre o meu.

E tenho vontade de desabar. Por quantos anos sonhei em abraçá-lo novamente? Quantas foram as noites que eu me revirei, desejando isso?

Afundo o rosto em seu peitoral, os olhos fechados com lágrimas que escapam sem a minha autorização. Sinto o seu cheiro, cítrico e veraneio, e me sinto envolvida e protegida quando uma de suas mãos começa a acariciar o topo da minha cabeça, como se o seu abraço exorcizasse tudo o que já me feriu na vida para fora do meu corpo.

Sam continua me acariciando com a sua mão firme, suavemente, enquanto me mantém no seu abraço. E no nosso silêncio, me sinto completa por um momento.

Não posso abrir meu coração para ele. Não posso, não posso, não posso...

XXX

Ponto de vista de Sam Winchester.

Queria abraçá-la desde o primeiro minuto que coloquei os olhos nela novamente. Adiei o momento até o meu limite, incerto se ela me abraçaria de volta ou não. Mas depois do que ela disse...

Nunca me senti tão compreendido na vida. Por ninguém.

Sempre me senti julgado, como se eu fosse um vitral cujo as pessoas só falam sobre as rachaduras. Ela vê as cores, realmente as vê.

Sei que não é prudente, e que é loucura a essa altura das coisas, levando em consideração toda a confusão envolvida. Mas eu quero beijá-la.

Eu não devia fazer isso. É cedo demais e, nada me garante que ela sente o que estou sentindo. Fomos ambos muito machucados no passado, com a nossa história.

Mas não por culpa nossa. E acho que isso muda as regras do jogo, não muda?

Agora que sei que ela nunca me mandou ir embora, e que ela sabe que não a abandonei...

Ela está com a cabeça afundada em meu peito, encolhida sob meus braços. Ergo o seu rosto, segurando gentilmente o seu queixo. Nos encaramos profundamente por alguns segundos, e eu limpo as lágrimas do seu rosto com a ponta dos meus dedos.

Seguro o seu rosto suavemente com as minhas duas mãos, enquanto acaricio sua nuca por entre os seus cabelos e fico procurando em seus olhos por um sinal.

Eles se acendem, a pupila se dilata, e ela umedece os lábios. Encaro os seus, com a certeza de que ela quer isso também. Isso é loucura, Sam. Loucura!

Vocês não são mais dois adolescentes e provavelmente não sabem mais nada um sobre outro. Tudo mudou, tudo...

Inclino o meu rosto, pronto para jogar a razão pelos ares.

—Gente, o Turner teve uma... – Bobby abre a porta sem bater, e Hazel e eu nos sobressaltamos, nos separando. Encaro Singer como se eu estivesse fazendo alguma coisa errada, e El também parece constrangida. Mas ninguém, absolutamente ninguém no mundo, está mais vermelho que o próprio Bobby – Ah, que droga. Me desculpem, eu devia ter batido...

Fico frustrado, quase nos beijamos.

Aí mora a coisa mais dolorosa de toda humanidade: O quase.

Parece até coisa do destino, a gente sempre ser interrompido, sempre um grande quase. Talvez seja melhor assim, onde eu estava com a cabeça?

Acabou. Acabou faz tempo.

—Está tudo bem, já estávamos descendo... – Digo, coçando a cabeça, desconfortável.

—É, eu vi mesmo para onde é que estavam descendo... – Bobby usa um tom repreensivo, resmungando – De qualquer forma, venham comigo. Turner teve uma ideia interessante sobre como engatilhar os poderes de Hazel.

Hazel não diz nada, apenas anda em direção a porta completamente apressada, o rosto se tingindo de carmim. Sorrio de lado, envergonhado, porém satisfeito por perceber que talvez ela fosse retribuir meu beijo. Ela passa por Bobby, apressadamente.

Coloco as mãos nos bolsos e sorrio constrangido para Bobby, que rola os olhos para mim.

—Tem hormônios demais nessa casa, é isso o que eu acho... – Ele resmunga, enquanto descemos as escadas.

XXX

Ponto de vista de Dean Winchester.

Estamos, Turner e eu, de pé na sala de estar. Ele acaba de dar uma ideia sobre o que podemos fazer, e estamos esperando o retorno de Bobby para discutirmos isso com Hazel e Sam.

Os dois estão lá em cima há mais de uma hora, e embora uma felicidade enorme tenha me consumido ao saber que podem estar se acertando...

Também senti meu coração ruindo, só de imaginar. É o sentimento mais confuso do mundo e eu não conseguiria explicá-lo para ninguém, nem se tentasse.

Quem desce primeiro é Hazel, toda vermelha e desconcertada. Ela coloca as próprias mechas do seu cabelo para trás da orelha, e nos olha timidamente. Será que ele a beijou?

Bobby vem logo atrás, seguido por Sam, que está tentando disfarçar um sorriso bobo no rosto. É, definitivamente aconteceu alguma coisa.

Se fosse possível ouvir um coração se quebrar, tenho certeza de que soaria como cacos de vidro sendo pisoteados. No entanto, dou um sorriso de canto, torcendo para que estejam bem e que tenham se resolvido. Eles merecem isso, depois de tudo.

—E então...? Qual é a sua ideia, Jesse? – Ela pergunta, a voz levemente trêmula. Abaixo a cabeça e fico encarando o carpete, torcendo para estar disfarçando bem.

Me sinto tão culpado por querê-la tanto assim.

—Você precisa de gatilhos, Lavie. E sei que situações em perigo parecem servir como tais... – Jesse diz isso com cuidado, porque todos nós sabemos o que ele quer dizer com isso. Está se referindo ao fato de ela ter conseguido utilizar telecinese, mesmo que sem querer e por apenas um segundo, no corpo de Sam, no momento em que foi “assassinada”. Mas todos concordamos que ele não precisa saber dessas coisas, não agora – E fiquei sabendo que você passou por um treinamento pesado com esses dois caçadores experientes. Então... o que acha de pegar um caso?

Hazel parece levemente surpresa, mas não tanto quanto Sam.

—Sua ideia é colocar ela em situações de perigo verdadeiras, é isso o que está dizendo?! – Meu irmão mais novo contesta, olhando para Turner como se ele fosse louco.

Jesse rola os olhos imediatamente, exausto com a atitude de Sam em direção a ele.

—É precisamente isso que estou dizendo. E antes que você proteste e diga que não me importo com a segurança dela, entenda que sou o irmão dela e a conheço há muitos anos, mais anos do que você, inclusive. Me importo com ela e conheço a capacidade dela, Winchester. Ela não é frágil. – Jesse não precisava ter dito isso dessa forma, mas Sam o irritou profundamente mais cedo. Todo mundo fica em silêncio, enquanto os dois se fuzilam com o olhar.

—Ela é mais do que capacitada, e sei muito bem que não é nada frágil! – A voz de Sammy sai entredentes – O ponto nem é esse, Turner. Vocês tentaram o que antes, exatamente? Antes de brilhantemente sugerirem jogá-la frente a frente com um monstro ou coisa pior?!

Turner caminha na direção de Sam, ficando cara a cara com ele.

—Eu estava lá, com George White, junto com ela, vivendo coisas que você sequer imagina. Coisas que eu mesmo precisei arrancar dela para protegê-la. – O tom de Turner é irredutível e solene. Sammy não tira os olhos afiados dos dele – E eu garanto a você que Hazel se bloqueou em um nível jamais visto antes. Se eu estou lhes dizendo que um gatilho é necessário, é porque eu sei. Eu já vi acontecer.

—Conveniente que você tenha apagado as lembranças dela, não acha? – Sam franze o cenho, e olha desconfiado para Turner, com seu maxilar travado. Fico pronto para intervir caso necessário – Só eu que acho isso no mínimo estranho?!

—Eu e ela temos um combinado, Winchester. Ela as terá de volta. – Turner rebate o argumento de Sam, irritado e no próprio limite – Não que isso seja da sua conta, e de qualquer forma, cabe a ela escolher o que fazer.

Ele dá alguns passos para trás, e se encosta na parede de braços cruzados. Hazel, que ouviu a tudo isso com seriedade, parece ponderar por um tempo. O olhar pensativo não nega a sua indecisão. Sammy olha para ela com as sobrancelhas erguidas, como se suplicasse com os olhos para que ela não aceite fazer parte disso.

—Hazel...por favor, pense um pouco mais sobre isso... – A voz dele sai contida, mas sei que está sofrendo com isso. Ele nunca a imaginou em uma caçada, apenas em seus pesadelos. Todos os pesadelos de Sammy estão se concretizando e não há nada que eu possa fazer para ajudá-lo. O olhar dos dois se encontra, e ele percebe que ela está inclinada a aceitar. Vejo seus olhos desmoronando – El, por favor, não...

—Eu quero tentar isso. Eu consigo. – Ela determina, firmemente, pedindo desculpas silenciosas ao meu irmão com os olhos. Dou um longo suspiro, porque sei o que isso vai fazer com ele. Sammy preferiria arrancar a própria mão fora a ver Hazel enfiada em uma caçada – Não podemos esperar demais, Crowley está solto por aí e Astaroth fica mais forte a cada minuto. Se perigo é o meu gatilho... – Ela suspira e dá de ombros – Que seja. Farei o que for preciso para lutar. Toda a humanidade depende disso.

Jesse olha para ela, orgulhoso. Sammy troca um olhar comigo, e percebe que estou tão preocupado e contrariado com isso quanto ele. Ele sacode a cabeça de um lado para o outro, mas não protesta. Vai respeitar a decisão dela, assim como eu irei. Bobby observa a tudo, analítico.

—Tem um caso, há três cidades daqui... – Jesse caminha até a mesa de Bobby, recolhendo um jornal e o entregando para Singer, e depois vem para perto de mim – Acho que pode ser exatamente o que precisamos.

Bobby lê o jornal, com os olhos afiados. Ele ajeita o boné, e então nos encara.

—Montanhas, pessoas desaparecidas...inverno...- Ele suspira, cansado – Já sabem, não é?

Bobby olha de Sammy para mim. Fazemos que sim com a cabeça, nos lembrando muito bem de uma criatura que matamos, anos e anos atrás.

—Wendigo. – Dizemos em uníssono.

Todos nos entreolhamos, cada um com um sentimento diferente explícito no olhar.

O que mais me chama a atenção é o de Hazel. Está ardendo em coragem e é irredutível. Ela não irá medir forças para ganhar essa batalha.

—Bom... é isso então. – Bobby coça a cabeça e abre uma garrafa de Whisky com os dentes, dando um gole generoso no líquido âmbar desbotado – Se preparem.

Olho para Sammy, que atravessa a sala em direção a Turner, que está ao meu lado. Ergo as sobrancelhas, atento pelo que está por vir. Meu irmão fixa o olhar nos olhos de Turner, com raiva, porém sua expressão é fria.

—Se acontecer alguma coisa com ela nessa maldita caçada suicida que você está propondo, você é um homem morto, me ouviu?! – Ele sussurra entredentes, enquanto Hazel está concentrada em examinar o mapa com Bobby. Jesse continua a encará-lo, com a expressão fria. Sammy então olha para mim, as narinas infladas – Eu vou dar uma volta, antes que eu faça alguma besteira.

Ele passa por nós dois e atravessa a porta da frente, transtornado. Dou um longo suspiro, e encaro Jesse.

Nenhum de nós dois diz nada.