Aconteceu tão depressa que nem me apercebi ao certo das circunstâncias do evento. Provavelmente, Maron estava tão distraída com a fuga e com os terramotos que sacudiam as montanhas que tentávamos atravessar, que não se apercebera que ele vinha no nosso encalço. Provavelmente, eu estava mais preocupada em evitar ficar esmagada debaixo dos penedos que se soltavam dos montes e esquecera-me dessa possibilidade ou tê-la-ia recordado a Maron.

Julep riu-se.

Ela fitava o demónio tentando mostrar segurança, intrepidez, mas eu sabia que ela estava nervosa, pois duvidava se me conseguia defender em condições, depois de ter ficado tão debilitada pelo ataque do saiya-jin.

- Pensavam que conseguiam fugir de mim? Ninguém foge de Julep!

Se ela pudesse virar-se para mim era bem capaz de me ordenar que fugisse. Era só o que ela me pedia para fazer. E era a coisa mais acertada que eu podia e conseguia fazer, admitia-o zangada pois desejava ser mais útil. Por isso, decidi agir e recuei um passo.

- Tu… Fica parada! – Ameaçou o demónio e eu fiquei parada. Era já um tique, sabia-o, mas não consegui evitar agarrar-me a um dos triângulos dourados. Um tique a roçar o vício.

Julep soltou uma gargalhada boçal. Estremeci. Estava tudo perdido. Quando abri os olhos, vi Maron a defender um soco do demónio. Mesmo com a ameaça bem presente, tornei a recuar um passo.

Aconteceu um pequeno combate, aquilo que Maron conseguia fazer estando ferida e sem energia. Ela tentou fazer-lhe frente, mas o adversário era muito poderoso e derrubou-a com um pontapé que a espalmou contra um rochedo. A minha salvadora acabava de ser neutralizada.

Encarei o demónio que se dirigia a mim com passadas largas, de manápula aberta pronto para me aprisionar e levar-me de volta ao feiticeiro. Cerrei os dentes. Não devia fugir, não sabia combater, não o conseguiria contrariar, mas não iria sem luta.

Ele ria-se, lia medo nos meus olhos e nas minhas atitudes, caminhava inchado de arrogância por estar a assustar-me.

Preparei-me. A distância encurtava-se inexoravelmente. Larguei o triângulo dourado.

A sombra de Julep cobriu-me. Suspendi a respiração, congelei de pavor. Mas estava determinada a resistir. Dependia tanta coisa de mim e havia aquela estranha profecia de Toynara, às portas da morte, afirmando que o meu destino era destruir Zephir. Permitia-me ser arrojada, julgar que poderia fazer alguma diferença mesmo contra um demónio gigante, tão grande como Piccolo.

Apanhou-me o braço.

- Não!

O riso de Julep aumentou de tom. O meu pânico alimentava-lhe o ego. Puxou-me e fui de encontro a ele. Segurou-me, pressionando-me contra os seus músculos. Era frio como mármore e não tinha qualquer cheiro, uma coisa artificial, morta, que se movia emulando as criaturas viventes. Finquei as pernas e comecei a gritar.

- Deixa-me em paz! Não! Não!

O demónio levantou-me, pousou-me num ombro como se eu fosse uma saca de batatas. Esperneei, escoiceei, agitei os braços, parecia enlouquecida, mas ele estava a adorar a minha reação e soltava gargalhadas medonhas. Não conseguia contrariar a força dele, mas nunca iria deixar de tentar soltar-me. Rezei por um milagre, inesperadamente a imagem de Dende assomou-se à minha mente. Sim, invoquei o kami-sama naquele momento de aflição.

Com tanta agitação, enfiei um dedo na argola dourada que o demónio usava na orelha direita. Dei-lhe um esticão, arranquei a argola, rasguei-lhe o lóbulo.

As gargalhadas do demónio cessaram abruptamente. Empurrou-me, fez-me cair. Bati com o traseiro no chão duro, gemi com a dor estranha. Não contava que ele me soltasse.

Olhei para os meus dedos que seguravam a argola dourada ensanguentada. Olhei para Julep que se consumia numa raiva perigosa.

- Maldita! O que foste tu fazer?!

O meu coração disparou, sustive o fôlego.

Lançou-se furioso para cima de mim. Abri a boca, gritei. Apenas me saiu um meio grito, pois Julep apertou-me o pescoço, num repente assassino. Esganava-me. Fechei os olhos desesperada. Tinha chegado o meu fim…

Os dedos compridos de Julep apertavam, apertavam… Sem se deterem, sem sequer hesitarem. Estava a ser estrangulada por um demónio de Zephir.

Os dedos compridos de Julep eram frios, agrestes. Arranhavam-me a pele mas tinham, de repente, perdido a força. Gritei a outra metade do grito e desatei a tossir engasgada. Estranhei o silêncio, quando antes tinha o bufar irado de Julep em cima do rosto.

Abri as pálpebras timidamente.

O que vi parecia saído de um pesadelo.

Julep tinha desaparecido. Em vez do demónio estava um ramo retorcido e seco de uma árvore, cuja extremidade se enrolava no meu pescoço. Com a mão a tremer quebrei a madeira seca da ramada, libertei-me daquela coisa estranha nascida da magia negra. Afastei o ramo com uma patada. Pus-me de pé e fugi. Escondi-me atrás de um rochedo e fiquei a espreitar, à espera que acontecesse mais alguma coisa. Mas o ramo nunca mais se mexeu e quedou-se parado, oscilando de vez em quando, com a passagem de uma rajada de vento.

Olhei para a mão, onde ainda guardava a argola dourada com o sangue de Julep. Aquela era a chave do mistério. Compreendi, sorri. Tinha descoberto o ponto fraco dos demónios imortais.

Lembrei-me de Maron. Encontrei-a a pouca distância dali, caída de borco, inconsciente. Voltei-a, dei-lhe uma palmada no rosto para despertá-la.

- Maron!

Ela estava muito ferida. Já não me conseguiria ajudar. Eu teria de fugir sozinha. Iria abandoná-la com relutância, sabendo que ela precisava ser levada com urgência para um hospital, mas eu não sabia se devia atrasar-me por causa dela, já que tanto dependia da minha fuga. Os tremores de terra sucediam-se assustadores.

No céu ouviu-se um silvo. Dirigi de imediato os olhos para o alto e vi que Ubo se aproximava. Mais problemas. A perseguição de Zephir era impiedosa. Estava realmente determinado em não me deixar escapar com o Medalhão de Mu.

Maron abriu um dos olhos com muito esforço. Agarrei-lhe na mão, fechei lá dentro a argola dourada de Julep.

- Escuta-me, Maron. Estás a ouvir-me?... Os demónios imortais de Zephir, Julep e Kumis, têm um ponto fraco. Os brincos que usam. Se lhes arrancares a argola da orelha, eles desaparecem. Aqui está a argola de Julep. Resta Kumis. Confio-te este segredo, Maron.

Puxaram-me pela gola, caí de costas. As correntes dos triângulos dourados penderam cada uma para o seu lado e o seu peso esmagou-me a traqueia. Olhei para cima. Vi-lhe as pernas, o torso. Ao se inclinar para mim vi-lhe o rosto fechado, o “M” na testa, o penacho de cabelo negro. Ubo encontrava-me. Tentei pôr-me de pé, não me deixou. Puxou-me por um braço – mas por que estúpida razão me puxavam pelo braço sempre que me queriam raptar? – e agarrou-me pela cintura, sem um pingo de delicadeza ou cuidado. Saltou e começámos a voar.

Procurei por Maron, mas ela ficara atrás de mim e já não a conseguia ver. O vento batia-me na cara, cobri-a com as mãos, refugiando-me da confusão do mundo exterior.

- Alto aí, ranhoso!

Eu conhecia aquela voz.

Curiosamente, Ubo obedeceu. Parou. Mas parou tão de repente que me apertou o estômago e quase que me fazia vomitar. Encontrei, parado a flutuar diante de nós, a figura imponente do príncipe dos saiya-jin.

- Vegeta - murmurei.

Vegeta não estava nas melhores condições. Vinha de um combate duro. Tinha as roupas esfarrapadas, a cara magoada, os braços arranhados, os joelhos ensanguentados à mostra. Mordi o lábio inferior, duvidando se aquele seria de facto um salvamento ou um encontro fortuito entre Vegeta e Ubo.

Mas as minhas dúvidas desfizeram-se ao escutá-lo afirmar autoritário:

- Solta-a. Se a quiseres levar até ao maldito feiticeiro, terás de passar primeiro por mim, ranhoso!

Bem, podia ter sido um encontro fortuito, mas era agora um salvamento.

Olhei para baixo. Soltar-me não seria uma boa ideia pois estávamos a alguma distância do solo e não me apetecia uma queda naquele momento. No entanto, Ubo sabia que a sua carga era preciosa. Pousou e soltou-me depois. Aceitou o desafio e atacou Vegeta no segundo seguinte. Fui projetada de encontro a um rochedo com a onda de choque de uma explosão que iluminou o céu. Gritei, protegendo a cabeça com as mãos.

Vegeta lutava com Ubo. Olhei para cima, para baixo, para todo o lado, mas não consegui distinguir um golpe que fosse. Os dois adversários eram imensamente poderosos e, atrevia-me a julgar, invencíveis.

Contudo, no fim daquele combate haveria certamente um vencido. Estremeci ao ouvir um berro. Vegeta materializou-se e caiu desamparado, acabando por se estatelar com toda a força entre os rochedos. Foi rematado por um raio vermelho, fogo intenso, que zuniu pela atmosfera e rebentou em cima dele.

Vegeta era o vencido.

Ubo desceu. Obstinado, o príncipe tentava levantar-se. O seu orgulho dizia-lhe que um saiya-jin não se devia deixar abater com tanta facilidade. O Medalhão de Mu queimava-me no peito. Era tudo por minha causa e eu não suportava ver tanto sofrimento provocado, pela minha presença, por aquele estúpido medalhão partido em dois.

Ubo olhou com desprezo para Vegeta, apontou-lhe uma mão para desferir o golpe final.

A decisão assentou-me no estômago, como uma comida demasiado quente que tinha acabado de devorar. Corri, arrojei-me pelo chão rochoso, esfolei os joelhos. Abri os braços, pedi num berro esganiçado:

- Não! Espera! Ouve-me, por favor!

Estava entre Ubo e Vegeta, a proteger o príncipe que gemia e fungava atrás de mim, esforçando-se para regressar ao combate. Ao perceber o que eu estava a fazer, gritou-me:

- Fora daqui! Não preciso da tua ajuda, intrometida.

Ubo baixou o braço devagar, intrigado com a minha presença. Inclinou a cabeça ligeiramente para a direita.

- Peço-te que o deixes ir… Já não pode lutar contigo. Se te fores embora, dou-te isto.

Tirei os dois triângulos dourados do pescoço e estendi-os no espaço entre nós.

- É isto o que o teu mestre quer. Leva-lhe o medalhão e serás recompensado. Em troca, peço-te que nos deixes em paz.

- O que… o que é que pensas que estás a fazer?! - Perguntou Vegeta zangado.

Ubo aproximou-se, arrancou-me à bruta as correntes douradas das mãos. Sorriu-me, sorriu através de mim para Vegeta. Aceitou a troca. Segurou as correntes com força, as veias dos braços sobressaíram sob a pele negra, levantou voo. Deixou-nos e eu suspirei de alívio.

Contudo, Vegeta não estava nada satisfeito com o que eu acabara de fazer. Quando me debrucei sobre ele, apertou-me o pescoço com a sua mão enluvada.

- Porque é que fizeste uma coisa daquelas? Maldita!

Tentei falar.

- O medalhão sem mim não tem qualquer valor… Zephir vai ficar furioso com Ubo.

- Julgas que te estou agradecido por me teres salvo a vida? Vou fazer-te pagar por esta humilhação!

Estava a sufocar-me. Tentei, mais uma vez, falar:

- Eu… não pretendia humilhar-te… Queria… ganhar tempo. Gomen… nasai… Vegeta…

- Não quero…

Dobrou-se numa convulsão e cuspiu uma golfada de sangue que me sujou a saia do vestido. Caiu para trás fulminado e eu assustei-me. Chamei por ele, mas estava a ter uma espécie de ataque e não me respondeu. Tremia, os olhos reviravam-se. Coloquei-o sobre o lado esquerdo e cuspiu outra golfada de sangue.

- Deixa-me em paz, intrometida… – pediu num sopro.

- Parece que cheguei na altura ideal. Vejo que estão a precisar de feijões senzu.

Levantei a cabeça. Pisquei os olhos para clarear a visão turva das lágrimas. Mas quando tinha eu começado a chorar? Não me lembrava. A presença dele ali parecia-me uma alucinação, demasiado maravilhosa para ser verdade.

Ten Shin Han ajoelhou-se. Retirou um feijão senzu de uma bolsinha castanha que segurava e enfiou-o na boca de Vegeta. Passados uns segundos, o tempo de mastigar e de engolir, Vegeta abriu os olhos recuperado, os ferimentos totalmente curados. Levantou-se e afastou-se de nós.

- Dende comunicou-me que estavam a lutar no Templo da Lua. Passei pela torre Karin e trouxe feijões senzu. Imaginei que precisassem deles – explicou Ten Shin Han.

Fiel ao seu estilo, Vegeta não agradeceu a cura providencial, outro que lhe salvava a vida. Ordenou a Ten Shin Han que me protegesse e partiu para o Templo da Lua, disposto a vingar-se da sova que recebera de Ubo. Iria certamente descarregar a frustração por ter sido salvo duas vezes.

E eu fiquei com Ten Shin Han. Mostrei-lhe um sorriso amarelo. Estava devastada com tudo o que tinha acontecido.

Sentia-me também insegura. Não lhe disse nada para não ser mal-agradecida ou parecer ofensiva, mas a verdade é que não me sentia muito segura com Ten Shin Han. Sabia muito bem que ele era o chikyuu-jin mais forte da Terra, mas esse facto não era grande conforto. Sentei-me e aguardei em silêncio pelo inevitável.

O meu destino era partir da Dimensão Z, dissera-me Toynara. Mas antes tinha outra incumbência: eliminar Zephir. E soube, naquele instante de silêncio, quando o sol desaparecia no horizonte, que se iria cumprir naquele dia.

As horas de Zephir estavam contadas.