As explosões faziam tremer tudo em volta, mas nunca me detive. Sabia que teria de continuar, sem olhar para trás, sem pensar no perigo, resolutamente, como Orfeu a subir dos Infernos.

Tinha abandonado a ladeira, havia uma espécie de caminho serpenteante num desfiladeiro escuro e meti-me por aí. Era um lugar estreito e claustrofóbico que normalmente não me atreveria a conhecer, mas a urgência da situação não me dava escolhas ou a possibilidade de ser caprichosa. Era de tal maneira estreito que conseguia tocar nas paredes de cada lado se tivesse os braços abertos e foi assim que corri pelo desfiladeiro, roçando as mãos na pedra que fervia e que oscilava, porque a terra continuava a tremer.

Um ruído ensurdecedor, como milhentos trovões rolando do céu abaixo, penetrou no desfiladeiro. Olhei para cima e vi os limites superiores balançarem perigosamente. O fim da passagem estava a alguns metros, uma corrida breve de não mais que dez segundos e desatei a correr. A luz do sol escureceu e o peso brutal de rochedos gigantescos caía atrás de mim. Sei que gritei, enlouquecida de medo, mas o som do desfiladeiro a desmoronar-se num apocalipse de poeira e de pedra abafou o meu infeliz grito e bem que podia urrar por socorro que ninguém me haveria de escutar.

Atirei-me de cabeça, como quem mergulha para uma piscina e saí do desfiladeiro a tempo de não ser esmagada pelo último rochedo. Tossi ao sentir os pulmões congestionados. Agora já não era só as mangas do casaco rasgadas, tinha também as calças abertas nos joelhos e as bainhas desfiadas.

A terra roncava sacudida pelas explosões. Olhei por cima do ombro. Vi o desfiladeiro em escombros, vi as explosões luminosas no céu. Gohan combatia contra Ubo e se eu quisesse que o sacrifício de Gohan tivesse algum significado, deveria continuar a fugir.

Impulsionei-me com a ajuda de um braço, corri. Tropecei, caí e voltei a correr. O terreno subia. Não podia ser, não queria ir para cima, queria descer e abandonar aquele deserto rochoso. Voltei para trás, contornei um penedo, evitei um abismo, choraminguei de medo mas prossegui, a sentir o peso do Medalhão de Mu a motivar-me para que continuasse sempre, sem olhar para trás, melhor que Orfeu que, no final da empresa, cedera à tentação e olhara mesmo para trás.

Uma explosão trovejou, igual ao rebentar de uma potente bomba. A onda de choque provocada pela explosão apanhou-me e derrubou-me, como se tivesse levado com um monumental murro nas costas. Caí de borco, raspando novamente as palmas das mãos, enchendo-as de sangue. Arquejei sem fôlego. Os arranhões picaram-me a pele. Limpei as mãos às calças e continuei, coxeando.

Descobri outra ladeira e vislumbrei para lá de um muro denteado de rochas, as pontas mais altas de muitas árvores, o que indicava existir ali uma floresta. Não me agradava enfiar-me num sítio onde existiriam animais, mas não tinha alternativas.

Meti-me pela ladeira. O chão continuava a agitar-se, atirando-me da esquerda para a direita, como se tivesse bebido álcool a mais. Os meus pés tentavam não derrapar, mas era impossível. Uma sacudidela mais forte atirou-me contra um rochedo do lado direito, mas a sacudidela seguinte atirou-me para o precipício desprotegido do lado esquerdo. Gritei, não sabia que conseguia gritar tanto. Caí. Consegui agarrar-me a uma saliência do precipício e fiquei pendurada por um braço, sobre um vazio de arrepiar.

- Ah!... Socorro!

Novo grito. Desesperado, profundo, horrivelmente assustado.

Cravei as unhas da mão solta na rocha numa tentativa de me içar e escalar o que podia até chegar novamente à ladeira, mas a terra tremeu outra vez e foi como se me enxotasse, impedindo a minha salvação. Comecei a chorar, em pânico. As forças desapareciam do braço herói que me impedia de me esborrachar na fundura daquele abismo, os soluços agitavam-me o corpo, o peso do medalhão de Mu puxava-me para o inevitável.

Sim, era inevitável eu acabar esborrachada na fundura do abismo. E talvez fosse o melhor. Já era a segunda vez que tinha esse pensamento mórbido. Sem mim, Zephir nunca se iria transformar num deus. Sorri, embalando-me nesse detalhe, convencendo-me que não seria assim tão mau.

Ah!, mas seria. Seria muito mau. Shenron não me podia ressuscitar, pois as bolas de dragão tinham sido recentemente utilizadas. Arrependi-me por ter tido a ideia do segundo desejo, mais valia que Goku tivesse enviado Shenron de volta e o tornasse a chamar, passados dois meses e já me podia devolver a vida perdida naquele abismo, depois de Zephir. Fechei as pálpebras, só que dois meses depois podia ainda haver Zephir e, provavelmente, o melhor fora utilizar o possivelmente último desejo das bolas de dragão.

O rochedo onde me segurava fendeu-se. Vi o meu sangue no rochedo. Arreganhei os dentes com aquele arrepio de medo que me arrefeceu as extremidades do corpo.

Tinha chegado a minha hora.

Lembrei-me de Trunks, queria que ele não chorasse demasiado a minha perda, não suportaria sabê-lo triste por causa de mim ou por causa de outra coisa qualquer. Sabê-lo triste, simplesmente. O meu coração apertou-se. Queria ter-lhe dito tantas coisas, a começar por “desculpa se te falei de mirai Trunks e não o devia ter feito, mas juro que não sabia que tu não sabias que ele existiu”.

E então o rochedo quebrou-se de vez e comecei a cair. Voava sozinha, em direção ao Outro Mundo, pensando em Trunks, pensando em como tinha adorado todos os momentos que tinha passado com ele, naquela dimensão, na minha dimensão. Sobretudo, na minha dimensão.

Senti um esticão súbito. Parei de respirar, atónita com as sensações extremas que experimentava. Agora subia e alguém agarrava em mim pelo pulso esquerdo. Estavam a salvar-me. Gritei de alívio, de quase alegria até perceber que até podia ser Ubo e isso significava que estava a ser levada para o templo odioso e que Gohan tinha perdido o combate.

Olhei para cima.

- Pan! – Exclamei com outro grito.

Hoje, era toda gritos. Que raiva por não me conseguir controlar!

Ela não me respondeu. Voava velozmente, com um livro de capa negra debaixo do outro braço.

- Pan, salvaste-me – ventilei, querendo falar mais alto mas tinha um peso no peito a tolher-me as palavras. – A-arigato… Pan-chan…

Senti duas lágrimas grossas desprenderem-se das minhas pestanas. Sim, a miúda tinha acabado de me salvar. Agarrei no Medalhão de Mu, travando a sua dança errática. O metal era real e tocar naquela coisa dura, de arestas precisas, acalmou-me.

Alcançámos a floresta que eu tinha descoberto quando tentava fugir do labirinto de rochedos. Mas estranhei ao ver que as árvores, gradualmente, passavam cada vez menos depressa e cada vez mais perto. Olhei para Pan. Parecia sonolenta, estava pálida e suada. Reparei num rasto de sangue coagulado num ferimento na face esquerda.

- Pan-chan…?

Nisto, teve um colapso. Os olhos apagaram-se e a cabeça pendeu, fazendo com que os cabelos negros caíssem como uma cortina sobre o rosto, ocultando-o. O corpo ficou inerte e por uma fração de segundo tive a impressão que pairávamos… antes de perdermos totalmente a sustentação e começarmos a despenharmo-nos na direção da floresta.

Não fui capaz de gritar. Acho que até eu ficara farta de escutar os meus estúpidos gritos. Abri os braços e puxei-a para mim, abraçando-a, abraçando também o estranho livro que ela, mesmo inconsciente, não largava.

A fortuna sorriu-nos inesperadamente. Debaixo de nós estava uma árvore frondosa que amorteceu a nossa queda. O primeiro impacto com as ramagens foi, contudo, doloroso. Arquejei, encolhendo-me, protegendo ainda mais a miúda que se aninhava desfalecida nos meus braços.

As ramadas quebravam-se à medida que descíamos, havia folhas verdes lançadas ao ar, a madeira estalava junto aos ouvidos, as farpas arranhavam-me a pele dos braços. Contive todas as interjeições e todos os gemidos, fechando os olhos com força. Até que parei com o chão imenso contra as minhas costas.

Não me mexi durante algum tempo, talvez minutos, para ter a certeza que estava parada, que tinha mesmo chegado a terra firme. Que estava salva, mais o Medalhão de Mu. Então, abri os braços e até as pernas, pois sem me aperceber tinha-as enrolado por cima de Pan para formar uma concha protetora. Continuava a segurar teimosamente aquele livro. Chamei-a, mas não me respondeu.

Pousei-a na erva macia, encostei um ouvido ao pequeno peito. O coração batia, mas sem ritmo e enfraquecido. Apalpei-lhe a testa gelada.

- Oh, não…

Abanei-a suavemente, chamando-a novamente pelo nome, mas Pan não reagiu. A respiração começou a ficar irregular. O estado era grave. Reparei na ferida da face esquerda, estava com um aspeto horrível. Para além do sangue coagulado havia também pus amarelo. Senti vómitos e tapei a boca. Ao desviar a cara, reparei num pequeno regato onde corria água cristalina. Arrastei Pan suavemente para colocá-la mais perto daquele fio de água mínimo. Mergulhei a mão, limpei-lhe a ferida. O pus saiu, o sangue endurecido dissolveu-se. Depois levei-lhe água aos lábios que estavam gretados e secos. Ela bebeu a água com sofreguidão. Estremeceu, reagindo pela primeira vez. Dei-lhe mais água, ela aparentava ter muita sede, pois bebia num ápice o pouco líquido que a minha mão lhe conseguia levar e parecia que nunca era suficiente. Então, esticou-se num estertor, gritou e depois ficou parada a respirar apressadamente. Nunca abrira os olhos e nunca largara aquele maldito livro. Escutei-lhe novamente o coração. Batia depressa.

Mordi o lábio inferior. Estava com febre, agora. Puxei-a para o meu colo e enroscou-se como um gatinho, sempre com o livro. Encostei-me a um tronco próximo, vigiando o seu estado, sem saber o que fazer mais a não ser esperar.

- O-O-Okaa Okaasan! – Chamou num murmúrio.

Embalei-a o melhor que pude.

Vi o céu azul por entre as árvores e vi que brilhava, de tempos a tempos, onde o horizonte se recortava em penedos e penhascos.

Gohan ainda combatia com Ubo.