A janela da sua casa continuava igual, a mostrar o mesmo mundo. O que o aliviava, mas também o apoquentava. Por muitas aflições que pudesse experimentar, por muita dor que pudesse conhecer, o mundo haveria de continuar indiferente desde que girasse. Nove dias passados e tudo permanecia na mesma rotina, no mesmo ritmo. Aparentemente.

Gohan inclinou a cabeça, os olhos descaíram para o parapeito da janela. Não o via, nem as flores no jardim para além da vidraça, a rua sossegada beijada pelo sol brilhante. Concentrava-se num sítio longínquo, esforçava-se por perceber o que estava a acontecer, lendo os contornos e as mudanças das auras. No entanto, a energia libertada era a suficiente para ter uma certeza inabalável: nesse sítio longínquo combatia-se.

Fechou os olhos. A mente revolvia-se confusa com todas as sensações que vinham até si, como disparos luminosos, estampidos surdos, ar quente, falta de ar. Começou a filtrá-las devagar, descartando as menos indistintas e encontrou o ki do pai. O poder de Son Goku era inconfundível. Tinha-se transformado em super saiya-jin, nível três. Fizera-o pois o adversário – que deduziu ser Keilo – também tinha chegado ao mesmo nível de potência. O planeta tremia a espaços irregulares, tenuemente, persistentemente, rejeitando as forças imensas que se enfrentavam.

Alguém se roçou devagar nas suas pernas. Gohan olhou para baixo.

- Pan-chan?

A miúda cismava, como ele, com o que os vidros impecavelmente limpos da janela não deixavam ver.

- O ojiisan está a lutar… – murmurou ela.

- Hai.

- Tu também vais lutar, ‘tousan?

Ele estremeceu.

- Por enquanto, estou apenas… a observar.

- Posso ajudar-te. Se fores, irei contigo.

Tornou a estremecer.

- Pan-chan, tu não vais lutar contra os guerreiros de Zephir. É demasiado perigoso!

- Sou uma saiya-jin – protestou ela.

- Só tens oito anos.

- Que idade tinhas quando derrotaste o Cell?

A impertinência dela escandalizou-o. Gohan corou, estremecendo outra vez. Muito antes de completar oito anos já combatia ao lado do pai e dos amigos do pai.

- As circunstâncias eram diferentes… E era mais velho do que tu.

Videl entrou na sala.

Abruptamente, como quem desliga um interruptor, os combates terminaram. Gohan susteve a respiração. Colou o nariz ao vidro, crispou o rosto, focou todos os sentidos no sítio longínquo.

- O que é que se passa? – Perguntou Videl parando atrás deles.

- Os combates, ‘tousan – disse Pan admirada. – Acabaram! Já não sinto a energia dos combates.

- Combates?... Quem está a combater, Gohan?

Ele voltou-se para a mulher. Uma gota de suor escorreu-lhe da testa, alojando-se entre os óculos e a cana do nariz.

- O meu pai… Vegeta… Piccolo. No Templo da Lua.

- Nani? Mas se acabámos de regressar à Dimensão Z!

Pan puxou-lhe pelas calças.

- ‘Tousan, por que é que os combates acabaram?

Videl olhava-o ansiosa e, de algum modo, triste, pois não havia luz nos seus olhos azuis habitualmente tão reluzentes. Ele limpou a testa com os dedos, sentiu a orla dos cabelos molhada.

- O que é que vais fazer, Gohan?

- Não… Não sei bem…

- Pan-chan. – Voltou-se para a filha. – Vai para o teu quarto. Preciso de conversar com o teu pai.

A miúda fez beicinho, cruzou os braços. Protestou:

- Se vão falar sobre os combates, eu sei o que é que se passa. Trata-se daquele feiticeiro mau chamado Zephir.

- Sem discutir… onegai shimass.

Pan ainda olhou para Gohan. Não conseguiu o apoio desejado e desistiu do braço-de-ferro. Descruzou os braços, esticou-os ao longo do corpo, punhos cerrados, rangeu os dentes e saiu da sala numa corrida contrariada.

Videl continuava ansiosa, mas a tristeza foi substituída por uma determinação feroz.

- Gohan-san, desta vez, não te vou deixar sair.

Ele refugiou-se na janela, perscrutando o horizonte, atrapalhado por não estar a conseguir alcançar os ki dos guerreiros do sítio longínquo. Os espíritos tinham diminuído a sua energia, o que lhe dificultava a tarefa, pois estava tão destreinado naquilo que aprendera quando era mais novo. Muito mais novo do que a filha, muitos anos antes de Cell.

Videl esperava uma réplica. Ele disse num tom neutro, numa tentativa de sossegá-la, de lhe arrancar a ansiedade, a determinação, a tristeza, o que quer que provocasse aqueles olhos gelados:

- Os combates acabaram, Videl… De repente, não sei explicar. Simplesmente, acabaram. O meu pai estava a combater, mas já não está. Não irei a lado nenhum.

- Ainda bem.

A pausa foi angustiante. Ele acrescentou, num murmúrio inseguro:

- Julgo que estão todos bem.

- Vejo que estás preocupado.

- O meu pai estava a combater… Claro que estou preocupado.

- Mas não aconteceu nada de grave.

- Estão todos bem – repetiu, apesar de os espíritos estarem tão ténues que já lhes tinha perdido o rasto. Desistiu do horizonte. Manteve-se à janela, a olhar para nenhures.

Sentiu a mão de Videl nas costas, a pressionar ao de leve.

- Se estão todos bem, não deves ficar preocupado. Em breve, terás notícias. Acredito.

- Não percebo por que é que foram combater… Zephir é agora um deus. O que foram fazer ao Templo da Lua?

- Em breve, saberemos – insistiu ela.

Conduziu-o até ao sofá, sentaram-se ao mesmo tempo. Ele pousou os braços nas pernas, entrelaçou os dedos, inclinou o pescoço. Ela mostrou-lhe um livro que apanhara na mesa de apoio.

- Lê um pouco, ajuda a passar o tempo.

Não lhe apetecia ler, muito menos um livro sobre teoremas matemáticos por resolver, mas não a queria contrariar e aceitou o livro. Deixou-o fechado entre as mãos, calcando a capa com a mão esquerda com receio de que esta se abrisse sozinha e o obrigasse a ler as fórmulas complexas das páginas.

- E para além de preocupado, vejo que estás com dúvidas.

Ele suspirou.

- Sou um saiya-jin… O meu dever é proteger a Terra. Não me podes impedir de lutar quando o planeta se encontra em perigo. Faz parte de mim.

Ela suspirou a seguir.

- Já tivemos esta conversa, Gohan-san.

Quando Videl era formal, significava que estava irritada.

- Pois já… É verdade.

- És teimoso. És um saiya-jin muito teimoso. Mas devo recordar-te, mais uma vez, da opção que tomaste há treze anos atrás?

- Não. A mesma opção que me levou a dar aulas na Dimensão Real.

- Precisamente.

- Mas há mais… Muito mais. O meu instinto também conta.

- Gohan-san!

Antes da explosão final, a campainha soou. Videl inflou as bochechas de ar, como se retivesse o próximo grito na boca fechada. Entreolharam-se confusos, não esperavam visitas. Ela soprou todo o ar que guardara, rasgou um sorriso, os olhos azuis encheram-se de luz e anunciou com alegria:

- As notícias chegaram!

Saltou do sofá, arrancou-lhe o livro das mãos, disse-lhe:

- Vamos, vai abrir a porta.

Ele foi. Encontrou Chi-Chi e Gyumao na entrada.

- Okaasan?... Ojiisan?

- Gohan-kun, regressámos à Dimensão Z!

Aquela frase espontânea da mãe deixou-o ainda mais desnorteado. E deixou-se ficar, a segurar a maçaneta da porta. Chi-Chi perguntou:

- Não nos vais convidar para entrar?

Afastou-se, balbuciando:

- Claro… Entrem… Entrem e fiquem à vontade.

Fechou a porta. Videl cumprimentou-os cordialmente, ofereceu-lhes uma taça de chá, mas Chi-Chi recusou energicamente. Estava excitada e foi direta ao assunto:

- Gohan-kun, sabes onde anda o teu pai?

Olhou para Videl, antes de responder.

- Acho que sei… Porquê, ‘kaasan?

- Tens de encontrar o teu pai imediatamente. Ele deverá começar a procurar pelas bolas de dragão sem mais demoras. Já esperei tempo demais por este dia.

- Mas, ‘kaasan… Acho que sei onde ele está, mas não vai ser fácil encontrá-lo – justificou-se, espreitando Videl que também não estava a perceber o que se estava a passar.

Mas Chi-Chi elucidou-os com um brilho pueril no olhar, as mãos crispadas junto ao peito:

- Chegou a altura de devolvermos a vida ao teu irmão Son Goten e não quero esperar nem mais um dia. O teu pai consegue encontrar as bolas de dragão num instante, com a ajuda do radar do dragão de Bulma. Preciso de Goku. – E berrou: – Já!

Gyumao limpou com o dedo indicador o ouvido esquerdo que se entupira com aquele berro. Gohan encolhera-se. Videl tentou acalmar a situação.

- Chi-Chi-san, percebo a tua urgência… Mas Gohan perderá muito tempo se for à procura de Goku-san, sem saber muito bem onde é que ele está.

- Ele deve estar na ilha, com Ubo.

- Talvez. – Videl olhou de relance para Gohan que corara ligeiramente.

- Ele consegue sentir o ki do pai…

- Quando está a combater, ‘kaasan – explicou Gohan escondendo as mãos nos bolsos das calças, a olhar por cima dos óculos.

- E mesmo quando não está.

- Se estiver suficientemente perto.

- E mesmo quando está longe. Os teus treinos, que eu sempre detestei, serviram para alguma coisa. Para situações como esta, digo eu.

Chi-Chi empurrou Gohan na direção da porta da rua, acrescentando numa voz cada vez mais esganiçada:

- Vamos, Gohan-kun. Mexe-te. Estás a perder tempo.

- ‘Kaasan!

- Já te disse. Preciso de Goku. – E terminou com um segundo berro: – Já!!

Naquele instante, Goku materializou-se no centro da sala.

Assustou-os a todos. Videl gritou. Gyumao deu um salto para trás, tropeçou no sofá e acabou sentado. Chi-Chi estacou, imobilizando-se no mesmo segundo. Gohan escancarou a boca.

- Goku! – Exclamou Chi-Chi.

- Otousan! – Exclamou Gohan, por sua vez.

Goku olhou em volta para reconhecer o sítio.

- Ah… Chi-Chi. Estás na casa de Gohan?

- Goku-sa, como é que sabias que estava à tua procura?

- Estavas à minha procura? Que coincidência! Eu também vim à tua procura… Mas encontro-te facilmente por causa da Shunkan Idou.

E começou a rir.

Gohan observou-o minuciosamente. Aparentemente, não tinha nenhum ferimento e exibia a boa disposição que o caracterizava. Nem parecia que tinha estado a combater até alguns minutos atrás, a não ser pela roupa ligeiramente amassada.

Chi-Chi postou-se diante de Goku, assentou os punhos na cintura e ordenou:

- Goku-sa, vais começar imediatamente a procurar pelas bolas de dragão.

Os sobrolhos dele desenharam dois enormes arcos, fez uma expressão de genuíno espanto, gaguejou:

- Pois vou… Mas só depois de Bulma construir o radar do dragão.

- Ah, que maravilha! – Exultou Chi-Chi. – Então, tiveste a mesma ideia que eu. Vamos ressuscitar Son Goten imediatamente. Esse feiticeiro que se transformou num deus pode esperar. Primeiro, o nosso filho!

- Mas as bolas de dragão não vão ser utilizadas para ressuscitar Son Goten.

A máscara de alegria de Chi-Chi estilhaçou-se. Berrou a plenos pulmões, vermelha como a lava de um vulcão em erupção:

- Nani?!!

Gyumao tapou ambas as orelhas com as mãos, suspirando. Há muito que havia desistido de tentar conter os ímpetos histéricos da filha.

- Goku-sa, perdeste o juízo?

Goku agitou as mãos para se proteger da ira da mulher.

- Calma, Chi-Chi…

- Não me peças para ter calma! Não queres ressuscitar o teu filho?!

- Não é isso. Não precisamos… Son Goten está vivo.

Novo estilhaçamento, desta feita da capa fervente de fúria. Chi-Chi arquejou, sem fôlego, empalideceu, colocou uma mão no peito como que a querer suster o coração que batia desvairado naquela viagem alucinante.

- Nani?!!

- Son Goten… está vivo. Foi para isso que vim ter contigo, para te contar isso.

Gohan perguntou:

- ‘Tousan, o que foi que aconteceu? Como sabes que Son Goten está vivo?

- Estive com ele, no Templo da Lua. Ao que parece, nunca chegou a morrer. Ficou ferido gravemente e esteve a ser curado pelo feiticeiro nestes dias em que estivemos na outra dimensão.

- A ser curado para quê?

Goku encolheu os ombros. Enfiou os polegares no cinto branco, respondeu:

- Não sei… Talvez para ser enfeitiçado e para que combatesse ao lado do feiticeiro.

- E o que foste fazer ao Templo da Lua?

- Não fui sozinho. Vegeta, Piccolo e Trunks também foram comigo. Fomos buscar a rapariga da Dimensão Real. Aquela que era tua aluna…

O baque de ouvir aquilo sufocou-o. Gohan gaguejou:

- A… A Ana?

- Hai, essa mesmo. – Goku explicou sério: – Ao interagir com Trunks veio para a Dimensão Z e acabou prisioneira de Zephir. O feiticeiro precisa dela para se transformar num deus. Só o vai conseguir depois de unir um medalhão mágico e só quem o pode unir é alguém da Dimensão Real. A tua aluna!

- Eh… E o que é interagir?

Goku olhou para Videl, depois para Chi-Chi. Acercou-se de Gohan, tapou a boca com as costas da mão e segredou-lhe ao ouvido. As faces de Gohan ruborizaram.

- Honto? Só isso?

Goku encolheu outra vez os ombros.

- Pelos vistos…

- Então, o feiticeiro ainda não é um deus. E o que pensam fazer agora, em relação a Zephir?

- Que se dane esse maldito Zephir!

O berro de Chi-Chi sobressaltou-os. Ela exigiu transtornada, à beira das lágrimas:

- Se Son Goten está vivo, onde é que ele está? Quero vê-lo!

Goku explicou:

- Ele ficou com Trunks. Estão os dois a proteger a rapariga, para que não volte a cair nas mãos do feiticeiro. Foram para as montanhas, para a cab…

- Por que é que ele não veio contigo, para ver-me? Não sente falta da mãe?

- Mas para Goten apenas se passaram algumas horas, não tem necessidade de ver ninguém.

- Não lhe disseste que se passou uma imensidão de dias, que o julgávamos morto, que eu chorei tanto por ele? Não lhe disseste como sofri durante essa imensidão de dias?

- Não tive tempo para lhe falar assim tanto. Ele teve de partir com Trunks e eu fui com Vegeta até à Capsule Corporation, para ir buscar o radar para começar a procurar pelas bolas de dragão. Todos os minutos são preciosos, agora que podemos ganhar alguma vantagem sobre Zephir.

- E não pensaste que eu o queria ver, baka?!

Chi-Chi começou a soluçar. Condoído por ver o estado lastimoso da mãe, Gohan pousou as mãos nos ombros dela, uns ombros pequeninos que tremiam, agitados pelas emoções que se sucediam em golfadas, em extremos.

- ‘Kaasan, tem calma. Son Goten irá voltar para casa.

- Quando?

- Depois de termos acabado com Zephir – respondeu Goku.

Chi-Chi gritou com as lágrimas a escorrerem pelas faces:

- Estou farta desse Zephir!

Goku entristeceu e murmurou-lhe com sinceridade:

- Estamos todos, Chi-Chi.

A meiguice dos olhos dele tranquilizou-a. Fungou, limpou as lágrimas da cara com a manga. Videl aproximou-se.

- Aceitas agora uma taça de chá, Chi-Chi-san?

Fez que sim com a cabeça. Fungou mais uma vez.

- Hai. Arigato.

Videl levou-a consigo para a cozinha, a murmurar-lhe palavras simpáticas e confortantes.

Gohan descobriu Pan a espreitar a sala no cimo das escadas. Não a chamou e a miúda, vendo-se descoberta, não procurou esconder-se. Deixou-se ficar e ele também deixou-a ficar, fingindo que não a tinha visto.

- E agora, ‘tousan?

Goku esfregou a barriga e confessou:

- Agora, tenho fome e gostaria de comer.

- Ah… Claro.

- Onde está Pan-chan?

A miúda revelou-se com aquela deixa. Desceu as escadas numa correria a chamar por ele. Abraçou-se ao pescoço de Goku e os dois riram-se com uma felicidade que, apesar de destoar daqueles momentos angustiantes, mercê de um feiticeiro que não lhes dava tréguas, foi acolhida com alívio, um intervalo merecido nas atribulações.

Ficaram todos a jantar na sua casa e Gohan aproveitou para perguntar sobre os combates, daquele dia, no Templo da Lua. Goku contou-lhe sobre as façanhas de Keilo, com uma admiração que espantou Videl, pois dir-se-ia que falava de um companheiro, não de um inimigo que não lhe perdoaria qualquer falta e que lhe tiraria a vida na primeira oportunidade.

Tal como Videl havia dito, as notícias sempre tinham vindo. Assim, Gohan ficou a saber o que se iria fazer a seguir. Goku e Vegeta iriam procurar pelas bolas de dragão para pedir a Shenron a segunda metade do Medalhão de Mu.