AAYRINE



Em um momento, Nitch estava ali, postado dante da estranha recém-chegada.

No segundo seguinte – para meu aturdimento completo – ele havia conjurado sua manopla no braço, recuando-o para trás, prestes a desferir um soco destrutivo contra a monstra.

— VOCÊ!

Joguei-me contra ele, segurando sua arma, fazendo a bola de fogo que havia conjurado desviar-se, ricocheteando na parede e detonando-se com um estampido no canto da sala.

— Nitch!

A loba recuou alguns passos, retraindo-se nitidamente - embora não aparentasse ser devido ao medo.

Uma expressão de imensa tristeza dominou seu rosto, conforme Nitch desvencilhava-se de mim, voltando-se para ela com a expressão hostil.

— Não o culpo por reagir assim – choramingou, dando um sorriso amargurado – acho que merecia uma recepção até mais agressiva… depois do que fiz…

Atônita, senti Nitch empunhar a manopla novamente sobre minhas mãos, ameaçando dar outro golpe. Puxei ele com força, sem compreender por que ele estava fazendo aquilo.

— Pare com isso, Buster!

Ele me encarou.

A frieza em seu olhar bastou para que eu o soltasse.

— Fique fora disso, Nacabi – ele voltou-se para a loba, grunhindo – como você tem a audácia – vociferou – de aparecer na minha frente….depois do que fez comigo??

A velha loba suspirou, contraindo as mãos.

— Eu… sinto muito… - ofegou, erguendo a mão – eu realmente sinto muito, querido…

— Mantenha suas patas longe de mim, bruxa – grunhiu. Nunca havia visto aquele rapaz tão alterado… chegava a me dar calafrios – o que diabos veio fazer aqui? Já não fez mal o bastante na minha vida?

Eu não tinha ideia do por que ele estava agindo daquela forma, ou o que aquela mulher havia feito de tão terrível para Nitch. Mas algo me dizia que sua atitude estava sendo desnecessariamente cruel.

— Eu vim… suplicar o seu perdão.

Bastou para que aquela parte assustadora de Nitch se libertasse de uma vez.

— Você – cada palavra saiu rascante de ódio – se livrou do corpo da minha mãe… me abandonou… e agora se arrasta até aqui… querendo o meu perdão?

Ergui a cabeça, espantada, finalmente compreendendo.

Aquela só podia ser Karin, a parteira que havia auxiliado Asha – a mesma que havia deixado-o ainda bebê na Vila Temmie.

Aquilo explicava um pouco do descaso e violência com que ele a estava tratando.

Ainda assim, vendo o arrependimento nos olhos daquela pobre monstra, tinha certeza de que suas palavras não haviam sido supérfluas. Ela realmente sentia remorso pelo que havia feito.

Eu precisava fazer Nitch se acalmar.

— Sim – Karin soluçou – sei que não tenho o direito de pedir isso… nem espero que me perdoe de verdade, Nitch… mas eu realmente… - sacudiu a cabeça, arquejando – eu condenei você a uma vida que você nunca pediu… tudo poderia ter sido diferente, eu sei… - a loba o encarou – eu me acovardei… não sabia o que fazer… entrei em pânico – baixou a cabeça – não conseguia achar uma saída…

O soco que Nitch deu na parede com a manopla ecoou pela sala, fazendo-a se calar.

— E abandonar uma criança… foi sua melhor solução? - supôs sarcasticamente, sibilando, o focinho retraído num esgar predatório.

— Não há um dia em que eu não me arrependa do que fiz – ela disse, súplice.

Vi Nitch fechar os olhos, grunhindo em tom baixo.

— Suma da minha frente – rosnou, voltando a encará-la de modo gélido – antes que eu faça algo do qual eu irei me arrepender.

Entristecida, assisti Karin abrir um sorriso desolado, sem qualquer vestígio de alegria.

— Compreendo, Nitch – assentiu, dando um passo atrás – foi bom… te ver, querido – recuou, virando-se – espero que encontre tudo que procure.

Karin deu as costas, deixando a soleira da porta.

Sequer olhou para trás.

Mas eu estava certa de que chorava.

Assim que Nitch fechou a porta, trêmulo de cólera, pude finalmente extravasar.

Minha mão pareceu ganhar vida própria, inconscientemente descendo contra Nitch, estapeando fortemente seu rosto.

Ele recuou, piscando de surpresa e dor, fitando-me com o olhar esgazeado.

— Mas que p…?

Meus punhos tremeram.

— Como é – gemi – que você conseguiu ser tão babaca, Buster??

Ele eriçou as orelhas caninas, como se eu tivesse acabado de esfaquear seu rosto.

— Você não entenderia, Aayrine – disse simplesmente, de maneira hostil – você nunca teve que viver sem uma família de verdade, não é? Sempre teve sua mãezinha para te criar.

Foi minha vez de arquejar.

— Minha mãe está morta – retruquei friamente, decididamente achando que um tapa dele não teria me machucado daquela forma – você não é o único que sofreu perdas desde que nasceu, Buster. E agir como se fosse não te faz melhor do que aquela pobre parteira.

Dei as costas, indo até o sofá, apanhando o desenho que ele havia feito.

— Pode levar – bufou – não vou precisar dele.

Apanhei-o sem qualquer cuidado, enrolando-o toscamente em minha mão. Estava morta de raiva, mas igualmente hesitante de tentar argumentar com aquele cabrito teimoso numa hora tão delicada.

— Vou deixar que se acalme – resmunguei - conversamos mais tarde.

Sem olhar para trás, sai a passos duros dos aposentos de Nitch, amarrotando levemente o papel que tinha em mãos.

Aborrecida, deixei a Nova Casa, atravessando o caminho para fora do castelo a passos rápidos e contidos.

Inclinei a cabeça para baixo, desamassando a folha de papel, que havia quase rasgado entre minhas mãos.

Era fato. Eu realmente havia me afeiçoado quele irritante e inconsequente filho adotivo do rei. Não havia mais dúvidas de que Nitch havia se tornado um amigo realmente muito achegado.

Mas o que Nitch havia feito com Karin havia me deixado com os nervos à flor da pele. E eu não conseguia tolerar toda a crueldade com a qual ele havia tratado Karin. Aquilo havia sido definitivamente errado.

Decidi que resolveríamos aquela questão mais tarde. Daria a ele um tempo para pensar em tudo que havia acontecido. Tinha certeza de que, em algum momento, ele veria o erro que havia cometido.

Por hora, só me restava esperar.

No entanto, aquela espera terminaria muito em breve. E da maneira mais inconvencional que eu poderia ter imaginado.