AAYRINE



Aaron já havia desaparecido àquela altura. E eu não o culpava.

Ficamos nos entreolhando por um longo momento. Sentia meu coração quase saltando para fora da boca, e meu corpo enrijecido de tensão.

Não sabia qual seria o próximo passo dela.

E isso me deixava completamente vulnerável.

Entreabri os lábios. Minha boca estava completamente seca.

— Undyne – sussurrei, quase sem fôlego.

Levantei o olhar em direção à casa incendiada, retraindo minhas orelhas. Senti um esgar de aflição abrindo-se em meu rosto.

Finalmente, depois do que pareceu ser uma eternidade, Undyne balançou a cabeça.

— Aquele cabrito estúpido…

Minha reação impensada foi conjurar um espadim em minha mão, ofegante, retraindo o focinho, num misto de defensiva e desespero.

— Não foi culpa dele, Undyne – sibilei entredentes – eu que fugi do cárcere.

Para meu absoluto choque, ela nem sequer havia feito menção de invocar uma de suas lanças - mesmo percebendo minha óbvia pose ofensiva.

Seu único olho se fechou por um momento.

— Acho que… eu já esperava isso – jurei ter visto a sombra de um sorriso cínico cortar seu rosto, assim que seu olhar voltou-se para mim – ainda mais se considerarmos que designei aquele bobo sentimental como sua vigília. Você fugir do cárcere poderia ter complicado as coisas – ela se aproximou um passo, ao que, contrariando meu instinto, mantive-me incólume diante dela – mas aí está você, Nacabi – suspirou – isso vai facilitar as coisas para mim.

Ergui o espadim, apoiando-o no peito, como um escudo laminado.

— Não quero lutar com você, Undyne – grunhi – há outras maneiras de resolvermos isso.

Vi-a negar com a cabeça, adiantando-se mais um passo.

— Não. Não há, Aayrine – Undyne estava a poucos centímetros de mim - só há uma maneira de consertarmos este erro.

Esperei que ela invocasse uma saraivada de lanças contra mim. Que gritasse. Que esperasse meu momento de maior fraqueza ou guarda baixa para infligir o que quer que estivesse planejando contra mim.

Em vez disso, ela ergueu os braços ao meu redor.

Por alguma razão – contrariando o bom senso – fiz com que meu espadim desaparecesse, desintegrando-se no ar.

Arquejei, espantada e confusa, quando senti Undyne me puxar sem rodeios contra ela, praticamente aninhando-se em meu ombro.

Era um abraço.

Se aquilo por si só já não tivesse me pegado de surpresa, senti o corpo de minha amiga sacolejar por um momento em cima de mim.

Undyne estava chorando.

Eu nunca havia visto aquela monstra derramar uma única lágrima em toda a minha vida. Nunca.

— Undyne!

Me afastei, segurando seus ombros, meus olhos saltados de choque.

Suas orelhas estavam completamente baixas.

— Você tinha razão, Aayrine – disse, num único sussurro – me desculpe.

Agora eu estava genuinamente assustada. Undyne, capitã da Guarda Real, a guerreira mais destemida e cabeça-dura de todo o subsolo, estava admitindo estar errada e se desculpando – e tudo isso em uma única frase?

— Como é? - o espanto era tamanho que minha exclamação soou quase horrorizada.

Ela assentiu firmemente.

— Eu disse que tinha razão – como que numa combinação silenciosa, ambas erguemos as cabeças na direção de sua casa chamuscada – o humano… - Undyne voltou a me fitar – é mesmo uma boa pessoa…

— Ah, é? - não quis ser sarcástica, mas a situação pareceu exigir isso de mim – e o que te faz pensar nisso?

Ela fez uma careta.

— Lutei com ele na passagem de Waterfall – me contou – esqueci o como a entrada pode ser um verdadeiro inferno… e eu ainda estava de armadura – deu de ombros – previsivelmente… esquentou o bastante para eu perder os sentidos. E, ironicamente, logo na frente daquele bebedouro.

Já sabia o que tinha acontecido á seguir.

— E ele salvou sua vida com a água.

Undyne rosnou baixo.

— A tempo de eu não entrar num coma, eu diria – contraiu os punhos – ele poderia simplesmente…

Refreei a vontade de bufar.

— Ter ido embora – completei – e, em vez disso, ele te salvou – a encarei severamente - eu te disse, Undyne.

— Sim… eu sei – não era todo dia que você via sua melhor amiga e capitã com uma expressão sinceramente arrependida – no fim das contas… eu poderia arriscar acho que vou ter que morar com Papyrus agora…

— Calma – sacudi as mãos – o que diabos rolou na sua casa?

Achei que estava ficando louca, por que vi Undyne morder o lábio, subitamente sem graça. Aquela monstra nunca havia me parecido mais fofa e menos ameaçadora.

— Aula de culinária… com o humano – guinchou – digamos que ele, por alguma razão… me apareceu com Papyrus por aqui. E como Papyrus… literalmente pulou janela afora….

Tapei a boca, esganando uma risada que quase havia escapado de meu focinho.

Aquilo explicava muita coisa.

— Céus…

Ficamos em um silêncio constrangido por alguns minutos.

Era certo que, assim como eu, depois do que havia acontecido, Undyne havia sido colocada numa boca de sinuca em relação àquele humano.

— O que vamos fazer agora? - indaguei.

— Eu não sei – admitiu – se ele ligar para Papyrus, vou tentar ajudá-lo também… imagino – murmurou, constrangida – eu não vou te culpar…. se não me perdoar pelo que eu fiz. Eu mesma… acho que nunca me perdoarei.

Pousei a mão sobre o ombro dela.

— Você é minha irmã – sorri gentilmente – é claro que perdoo. E depois, acho que estamos no mesmo barco agora, Undyne – careteei – só nos resta esperar… tentar ajudar… e desejar boa sorte.

Por alguma razão, o olhar penalizado dela me causou um calafrio na espinha.

— A quem? - disse, entristecida – ao humano… ou á Nitch? Por que você sabe que Buster não vai poder ter piedade… e tampouco o humano quererá que isto o impeça. Não poderemos interferir desta vez. Se ele não hesitou em nos poupar… - ciciou – não vejo por que hesitaria em outra situação mais drástica – baixou a cabeça – um deles sucumbirá, Aayrine. E tenho medo do que isso poderá significar.

Quanto á isso, eu não tinha resposta.

E, mesmo que tivesse, qualquer uma delas me traria a mesma amargura.

Só me restava esperar.