AAYRINE

Alguns dias haviam se passado, desde o encontro com Nitch na gruta.

Em determinada manhã, por algum motivo, durante nosso lanche rápido de ketchup pela manhã, Sans parecia anormalmente nervoso e distraído.

— Tudo bem, saco de osso? - perguntei em tom de brincadeira, sem ocultar o tom preocupado em minha voz, enquanto mordiscava minha embalagem.

Sans colocou as mãos esqueléticas dentro do bolso, soltando um muxoxo.

— Heh – inclinou o crânio para mim - claro… por que não estaria?

Ah... eu reconhecia aquele tom deprimido e pensativo. Estreitei o olhar.

— Andou brigando com a sua amiga das Ruínas?

— Que? Não… - lançou-me uma pupila branca, arregalada de perplexidade – nós continuamos nos dando… muito bem. Só… - balançou as omoplatas – tivemos uma conversa… diferente – ele ergueu uma falange, antes que eu o interrompesse – e bem mais particular.

Ergui a sobrancelha.

— Ah… não vai me contar. Certo.

Ouvi o som de algo chacoalhando. Só pude imaginar que havia sido sua mandíbula rilhando contra o crânio, numa tentativa de reprimir um riso exasperado.

— Ela me fez guardar segredo, garota.

— Ah... eu também não queria saber mesmo – sacudi os ombros, fingindo intensa mágoa.

Sans riu.

— Qual é, Nacabi – ele ergueu os indicadores na minha direção – em questão de guardar segredo… eu realmente sou cabeça-dura.

Fechei os olhos e tentei contar até dez.

Não consegui.

— Às vezes tenho vontade de enfiar meu espadim no teu cóccix, Sans.

— Falando em enfiar coisas onde não se deve – por alguma razão, aquele comentário fez meu rosto esquentar de imediato – como vão as coisas com seu namorado?

O esqueleto nem se encolheu quando taquei o sachê mais próximo em seu rosto, encharcando seu crânio de molho vermelho.

Ficou maluco, cara? - exclamei – que namorado??

Vi-o passar a mão em cima da cabeça, baixando-a, e começando a lamber os dedos com o ketchup que havia limpado, com uma expressão de absoluta serenidade.

— Ora essa… - Sans decididamente reprimia o gracejo naquele momento - o filho secreto de Asgore… o cabrito-temmie musculoso e bonitão, Nitch Dreemurr Buster.

Meu rosto, já corado, ficou ainda mais ruborizado.

— Ele não é meu namorado, seu idiota – por que diabos minha voz havia ficado tão trêmula de repente? - eu e o Nitch somos apenas amigos!

— Ah… claro – ele me encarou, nem um pouco convencido, de uma maneira zombeteira – e eu sou o revenant mais sério e formal do Underground. Vai mesmo ter coragem de me dizer isso, após ter cuidado do garoto naquela noite... e depois daquele encontro? Vou te contar, Rine... - lançou-me uma piscadela - amar e não admitir deve ser osso duro de roer.

Ele se teleportou para longe dos espadins que conjurei abaixo dele, gargalhando, equilibrando-se desengonçadamente no parapeito da minha varanda.

— Agora entendo o que Papyrus diz sobre suas piadas – grunhi, comichando de vontade de treinar meu arremesso, e fazer tiro ao alvo naquele esqueleto abusado.

— E o que ele diz? - brincou – que as minhas piadas são absolutamente sansacionais?

Pronto.

Foi o suficiente para me transformar na encarnação do demônio.

— AHHHH! - berrei, encolerizada - SOME DA MINHA FRENTE, SANS!

Com um último teleporte, Sans gargalhou, desaparecendo no ar e finalmente sumindo de vista.

Sacudi a cabeça, atordoada e irritada. Por mais que Sans fosse meu amigo, haviam horas em que era dificil conseguir aturá-lo.

Não fosse por consideração e carinho por Papyrus, já tinha afiado minhas lâminas naquela ossada há um bom tempo.

— Ei, Nacabi!

Virei-me, vendo Dogamy e Dogaressa acenando para mim à alguns metros adiante, brandindo seus machados ao lado do corpo.

— Dogamy! Dogaressa! - vendo uma deixa para esquecer o que havia acabado de acontecer, aproximei-me dos dois, ajeitando as ombreiras de minha armadura – já estão indo para a patrulha?

Sorri para eles, que aparentavam uma felicidade quase contagiante. Há menos de uma semana, ambos haviam finalmente se casado - era visível o quanto ainda estavam eufóricos e apaixonados.

O que também me lembrava desagradavelmente da insinuação tola de Sans, á alguns minutos atrás. Pisquei, refreando um guincho exasperado.

— Sim… - Dogamy assentiu - vamos fazer vigília no nosso posto antigo, ao longo do caminho dos antigos carvalhos – sua voz baixou um tom – ouvimos dizer… que outro humano caiu no subsolo.

Senti-me enregelar de choque.

Minhas orelhas se eriçaram.

— Um humano?

Seria o oitavo a cair. E a sétima alma que coletaríamos. A última que o rei necessitava para nos libertar.

Apenas mais uma.

Enrijeci.

— Sabe o que isso significa, não é? - Dogaressa sussurrou, retraindo o focinho de ansiedade.

Sibilei.

— Claro que sei – resfoleguei, contraindo os punhos sobre a empunhadura do espadim, que jazia embainhada em meu cinturão – é o que todos nós temos esperado durante anos – meneei a cabeça de forma irredutível – a Guarda Real se preparou para este dia… - grunhi - e não podemos hesitar agora – enfatizei, encarando Dogamy – o rei já foi comunicado?

— Sim… - ele concordou – e Undyne… também foi avisada. Estaremos todos a postos – inclinou o rosto, fazendo suas orelhas felpudas esvoaçarem – se este humano cruzar nosso caminho… poderá se considerar morto.

Assenti em aprovação.

— Não podemos perdê-lo de vista. Vamos nos espalhar por Snowdin. Distribuam-se pelas passagens da área. Se realmente for verdade… cedo ou tarde iremos encontrá-lo – vinquei a testa – estarei de tocaia... defronte á antiga ponte do vilarejo. Avisem se conseguirem algum resultado.

Ambos acenaram em concordância, despedindo-se com uma vênia e disparando rapidamente em direção à estrada nevada dos carvalhos.

Não me demorei, dando a volta por trás da cabana, e apanhando um atalho em direção à velha ponte de madeira.

Nós estávamos mais perto da liberdade do que nunca.

A possibilidade de dar cabo de toda aquela situação ribombava dentro de mim, alimentada ferozmente pelo desejo de vingança e justiça.

Se eu realmente o encontrasse, teria o maior prazer em arrancar sua alma. Eu o espreitaria das sombras. Eu queria - e iria - causar a destruição daquela ameaça inexplicável.

Eu não tinha dúvidas.

Aquele humano teria o seu fim sob o gume de minha espada.