AAYRINE



A sensação decepção e desolamento ainda embolavam meu estômago, me provocando uma intensa vontade de vomitar.

Eu jamais havia esperado tamanha frieza e insensibilidade da parte de Undyne.

E Nitch…

Eu podia, até certo ponto, compreender a reação agressiva de minha amiga. Afinal, todos agora deviam me ver como uma traidora. E Nitch, obviamente, estava apenas cumprindo as ordens de nossa capitã.

Porém, isso não diminuía em nada a mágoa pela forma cruel que ele havia usado para me vulnerabilizar.

Para piorar a situação, ela havia pessoalmente o designado para fazer a vigília do cárcere de Waterfall – o que não ajudava em nada a controlar a pequena faísca de fúria que tentava se acender dentro de mim.

Ao mesmo tempo, temia pela vida do pequeno humano. Tudo que eu havia feito havia sido para tentar proteger o garotinho que havia salvado minha vida.

Agora, sem minha ajuda, ele provavelmente estava outra vez exposto – e Undyne, se eu a conhecia bem, devia estar caçando-o de maneira sanguinária naquele momento.

Se ele não sobrevivesse… eu nunca me perdoaria.

Meus pensamentos foram repentinamente dissipados quando, ao meu lado, vi a silhueta de Nitch surgir entre as grades da cela.

— Bem…? - grunhi rispidamente, tentando ocultar meu tom pesaroso – foi uma bela captura, Buster. Mais ninguém teria tido tanto sangue frio.

Ele se aproximou, reclinando o rosto contra a cela.

Não esperava ver a intensidade do remorso e a angústia em seu olhar.

— Ah, Rine… - para minha surpresa, sua voz estava intensamente embargada – eu… realmente sinto muito…

— É mesmo? - retruquei friamente – me pareceu bem convincente na hora que me prendeu – acrescentei, já fora de mim – no meu momento mais vulnerável, Buster…

Nitch pareceu se contorcer com a maneira como cutuquei a ferida.

— Você poupou aquele humano – disse, numa tentativa desesperada de se justificar – eu… não podia desobedecer as ordens que recebi, Aayrine…!

Por uma estranha razão, sua voz havia ficado repentinamente trêmula, como se seu comentário tivesse ocultado algum segredo muito importante.

Aquilo fez-me recordar de algo.

Num tom de voz mais brando, encarei-o novamente.

— Quem é Alekey?

Sua reação foi surpreendente. Seus olhos saltaram, suas orelhas superiores se retraíram, e um arquejo aterrorizado escapou de sua boca.

— Como você…?

— Naquele dia – expliquei, tácita – quando você estava… embriagado – memórias um tanto desconcertantes sobre o que havia acontecido invadiram minha mente – você disse este nome… enquanto dormia.

Vi-o se retrair por um momento.

E, contudo, ele imediatamente relaxou, baixando a cabeça de maneira derrotada.

— De certa forma… - um tipo de sarcasmo tristonho escapou em seu timbre – eu tenho tanta culpa quanto você, Aayrine – seus olhos carmim voltaram a me fitar – foi um humano… que salvei há vários anos.

Foi minha vez de enrijecer.

— Um humano?

Então, eu não havia sido a única, De certa maneira, Nitch também havia visto a capacidade dos humanos de serem gentis, piedosos e terem um bom coração.

Custava-me digerir aquilo.

— Como você escondeu isso de Asgore…?

— Não foi fácil – admitiu, segurando as barras da grade - ele era tão… diferente, Aayrine. Bondoso. E completamente inofensivo – seu olhar encontrava-se súplice – o que eu poderia ter feito? Não consegui matá-lo… - fechou os olhos com força por um momento – e acabei… protegendo-o por um longo tempo.

Aquilo havia me desarmado por completo.

— O que houve com ele?

Nitch soltou uma risada amarga.

— O mesmo que talvez ocorra com seu pequeno amigo, Aayrine – falou, pesaroso – Asgore o matou.

Senti um calafrio percorrer minha espinha.

Desesperada, segurei as grades diante de mim, recostando-me perto do meu amigo.

— Eu preciso ajudá-lo, Nitch – tentei apelar para a sensibilidade repentina que ele havia ex naquele momento – você não quer que ele termine como Alekey… quer?

— Não há nada que eu possa fazer, Aayrine – choramingou – eu não tenho essa… sua coragem para fazer o que é certo… mesmo que tenha de ir contra as ordens do rei. Tive que entregar Alekey… e talvez tenha que fazer o mesmo com seu amigo… mesmo que a culpa me atormente pelo resto da vida – soluçou – eu fiz uma promessa. Isso é necessário… para salvarmos nosso povo.

— Então me solte – implorei – não terá que desacatar as ordens de Undyne nem de Asgore… eu tentarei ajudá-lo na medida do possível, sem me expor outra vez…. - guinchei, arrasada – e se ele tiver que morrer… - suspirei, abrindo um sorriso triste – espero ao menos que seja sem dor… nas suas mãos… ou nas do rei – meu olhar deslizou pelo chão da cela – o que tiver de ser… será.

Por um longo momento, vi Nitch esquadrinhar-me, mordendo o lábio, rosnando em tom baixo consigo mesmo.

Repentinamente, sacou do bolso a chave da cela, enfiando-a na fechadura e girando, abrindo completamente a grade.

— Que inferno, Aayrine – grunhiu, também desafixando as algemas de meus pulsos – se me perguntarem… direi que você fugiu – bufou, exasperado, me olhando de maneira séria – se proteja… ajude aquele humano… e não faça eu me arrepender mais ainda.

Sai da cela, sentindo o coração saltar de alívio. Abracei-o com força, cheia de gratidão.

— Obrigada, Nitch! Obrigada!

Ergui a cabeça por um momento, tentando decifrar sua expressão.

Talvez, se soubesse o que aconteceria a seguir, teria definitivamente evitado levantar o focinho em sua direção.

Ou talvez não.

Por que, atônita, repentinamente senti suas mãos repousarem sobre minha nuca, enquanto ainda me segurava com o outro braço.

Nitch sacudiu a cabeça veementemente.

E então – para meu choque absoluto – inclinou o rosto, pousando suavemente a boca sobre a minha, de uma maneira insanamente gentil.

Não se assemelhava em nada ao pequeno e acidental beijo que havia me dado há muito tempo, no dia que eu o havia acolhido em minha casa.

Aquele era consciente. Profundo.

E… apaixonado.

Impossível.

Mal conseguia me mover.

Por que… por que aquilo me parecia tão… aliviante? Por que tinha a sensação de que havia esperado longamente por aquele insano e confuso momento?

Antes que eu pudesse finalmente reagir, Nitch me soltou, olhando-me de forma misteriosa. Embora seu rosto não demonstrasse, era impossível não perceber as chamas contidas de seu olhar.

— Boa sorte, Espadim.

E então, recuou, dando as costas para mim e deixando o corredor do cárcere – deixando para trás uma caneira totalmente perturbada.