AAYRINE



Daquele dia em diante, eu e Nitch Buster nos tornamos melhores amigos.

Eu tinha que admitir. Embora eu tivesse nada menos do que o odiado de início, ele não era a bola de pelos fracote que eu havia imaginado.

Saber que era filho de um dos meus maiores heróis de infância – cujas histórias sempre havia ouvido desde pequena, assim como as épicas batalhas de meu pai – também ajudou para que meu anterior preconceito com Nitch minguasse gradativamente.

Havia contado à Undyne sobre ele em uma de nossas patrulhas por Waterfall. E ela me contou um pouco mais sobre aquele rapaz.

— Eu havia acabado de ser nomeada capitã da Guarda Real quando Asgore me contou sobre ele – comentou, sorrindo – um cabritinho pequeno, com aquelas estranhas orelhas de gato. Incomum… especial…. desde o início. Embora pequeno, visivelmente cheio de espírito de luta… mas Nitch sempre foi muito reservado… e solitário – fez uma careta – estar praticamente morto para o resto do mundo não ajudaria um monstrinho a conseguir qualquer amizade, no fim das contas. Ele passou tempo demais enfurnado naquele castelo.

— Por que ele nunca se revelou? - indaguei, confusa – o que ele teme, afinal de contas?

Desviei da lança que Undyne arremessou contra mim, segurando o riso, enquanto ela revirava seu único olho descoberto.

— Usa a cabeça, Nacabi – bufou – um monstro sem passado, órfão, criado pelo rei em segredo… seria um escândalo. Ainda mais depois do que aconteceu com o príncipe.

— Ah – baixei a cabeça, sentindo todo o humor desaparecendo de meu rosto – sim. O acidente na superfície.

Era uma memória dolorosa para todos os monstros do subterrâneo. A tragédia com Asriel Dreemurr era algo que todos faziam o possível para esquecer.

O pior é que muitos – assim como eu – estavam certos de que a culpa havia sido completamente daquela estranha garotinha humana que haviam adotado. A mesma que havia pedido que o príncipe a levasse de volta a superfície, onde foi alvejado fatalmente pelas armas dos odiosos humanos daquela aldeia.

Para mim, aquilo só reforçava a mediocridade e podridão daquela raça miserável. Mesmo a mera existência de suas crianças tinha o poder de causar as piores desgraças.

— Exatamente – Undyne pontuou – saber que o rei adotou outra criança… logo depois da rainha partir? Seria o cúmulo. Tivemos que manter isto em segredo… a qualquer custo – me encarou de modo tácito – e deveremos continuar assim, Aayrine.

Assenti, suspirando.

— Ok. Acho que devo isso àquela bola de pelo – grunhi, revirando o olhar – depois que ele me flagrou cantando o hino da Guarda. Se alguém souber disso… - gemi, tensa – eu estarei é muito ferrada.

Undyne virou-se em minha direção, aparentando reprimir o riso.

— É mesmo? - gracejou – eu queria ter ouvido isso.

— Ah – soquei o ombro dela – foi um mico e tanto. E muito choroso – fiz uma careta – baixei as orelhas, exasperada, enquanto Undyne ainda estremecia, numa tentativa esforçada de não gargalhar – ah, que inferno. O que foi?

Seu olho se estreitou numa fenda maliciosa.

— E por que será que Buster apareceu ali? - vi-a piscar – duvido que tenha sido por causa de sua beleza escultural…

Ela pulou agilmente para longe dos espadins azulados que conjurei, equilibrando-se de maneira elegante no cercado da ponte em que estávamos caminhando.

— Ahh.. - sibilei, retraindo o focinho – sua peixinha abusada.

— Quanta maturidade, Nacabi. Quanta maturidade – Undyne desceu do cercado, caindo em cima de mim com as mãos em garras, bagunçando meus cabelos.

Me debati, resmungando, abrindo e fechando a boca como um brinquedo de corda, fingindo que iria lhe dar uma tremenda mordida.

— Espera aí! - enfim a empurrei, o que só a fez achar ainda mais graça - você me sacaneia, e eu que sou a imatura?

Continuamos a conversar ao longo de toda a caminhada por aquela área.

Eu simplesmente adorava jogar conversa fora com Undyne. Ela era uma boa ouvinte, embora ocasionalmente reagisse com as mais hilariantes caretas e guinchos de surpresa. E também contava as melhores histórias, num tom bardo de exímia contadora. Não era à toa que as crianças deliravam com as crônicas que narrava.

— Undyne… - falei em determinado momento – o que diabos você quis dizer com “beleza escultural”?

Vi a monstra parar de caminhar, virando-se para mim com uma expressão de absoluto tédio.

— Não começa, Aayrine – ela empunhou a lança de frente para rosto, encarando seu reflexo na lâmina, ajeitando um fio rubro de cabelo que havia saído do lugar – você sabe o que os rapazes falam de você… e de mim – acrescentou, rosnando baixo, irritada.

— Tipo “Undyne é o exemplo perfeito de que a Guarda Real pode ser poderosa e atraente”? - citei, risonha.

— Não brinca – suas mãos se fecharam em punhos – quem foi o idiota que disse isso?

Sorri de lado.

— Acho que Alphys já é muito tímida sem que você enfie um soco na cara dela, irmã.

Foi impressionante - e cômico – ver Undyne paralisar, boquiabrindo-se, corando adoravelmente por baixo das escamas azuladas do rosto.

— Ela… disse… isso…? - guinchou.

— Só que gaguejando – foi minha vez de encará-la maliciosamente – exatamente como está fazendo agora, maninha.

Pela diferença de alguns meros segundos, quase fui empalada pelas lanças que ela evocou do chão para cima.

Dei um mortal, caindo do outro lado da cerca, assistindo Undyne tendo seu chilique constrangido. Foi engraçado de se ver.

— Considere-se uma carneira morta, Aayrine! - embora enfurecida, dava para notar que mordia o lábio, aparentando uma velada ternura por baixo de toda a irritação.

— Como diria a Alphys… eu shippo – fiz um coração com as mãos, fugindo gargalhante das lanças que continuaram a voar em meu encalço.

Naturalmente, aquilo durou alguns minutos, já que Undyne finalmente me alcançou, arrastando-me pela orelha ao longo de toda a estrada de Waterfall, resmungando algo sobre eu ter que deixar de ser besta.

Ainda assim, havia o fantasma de um sorriso em seu rosto.

E eu tinha total certeza que não era devido ao humor de estar me rebocando pelo chifre de volta ao posto de vigilância de Snowdin.