NITCH



Estava sentado no sofá, esperando um telefonema que Undyne havia me prometido, quando alguém bateu à porta de entrada dos meus aposentos.

— Já vou! - sacudi a cabeça, bufando, indo na direção do hall.

Quando abri a fresta, porém, meu primeiro impulso foi tentar fechar a porta outra vez, ofegando de indignação e raiva.

— Espere, Nitch!

Grunhi, deixando-a alguns centímetros aberta, apenas para ouvir a desculpa esfarrapada que aquela monstra havia trazido desta vez.

— O que você quer, Karin? - rosnei, recostando a cabeça contra a superfície amadeirada.

A voz dela passou pela fresta, trêmula e sussurrada.

— Apenas… lhe entregar um presente.

O comentário me pegou de surpresa. Depois do que havia visto e ouvido, Karin ainda queria tentar me agradar?

Aquilo não fazia sentido nenhum.

Resolvi abrir a porta.

— Entre logo – sibilei, aborrecido – e não se demore.

A loba adentrou no hall, cabisbaixa, abraçando um pacote nos braços. Estava vestida com um grande casaco peludo azul-marinho, o que só me fazia pensar que havia pegado o canal direto de Snowdin para se dirigir ao Núcleo, e mal havia tido tempo de despi-lo em Hotland.

Assim que se aproximou da sala, ergueu-me o olhar, insegura.

— Deixou bem claro que eu deveria ficar longe de você… - disse, num tom súplice – mas eu tinha que te entregar isso…

Inclinou-me o pacote pardo, com as mãos fremindo de receio.

— Tinha? - repeti, erguendo a sobrancelha.

Karin assentiu, fitando-me de maneira aflita.

Num misto de intriga e antipatia, resolvi apanhar o envelope, abrindo-o e puxando seu conteúdo para fora, sem dizer nada.

Contudo, senti meu coração parar, assim que resvalei o olhar sobre a superfície vítrea de um porta-retratos.

— O que…? - pisquei, arquejando.

Era uma fotografia antiga - muito bem conservada pela proteção do vidro – de duas monstras, que nitidamente haviam encarado a câmera com expressões cheias de insegurança.

Ambas vestiam longos vestidos, e tinham as mãos espalmadas sobre o abdômen – o que eu não compreendi de início, até perceber o volume proeminente abaixo de suas mãos.

No entanto, não foi aquilo que me chocou.

O que fez meu corpo bambear foi a familiaridade daquelas duas jovens grávidas.

Uma bonita cabra de pelagem creme, e brilhantes olhos azuis, cujo sorriso tristonho parecia ter se aberto para tranquilizar a moça ao seu lado.

E uma carneira cáqui, de longos cabelos castanhos ondulados, cujas íris rosadas espreitavam hesitantes a outra gestante, como se temesse algo que sabia estar por vir.

Vi uma das garras de Karin pousar sobre a imagem da simpática monstra caprina.

— Asha Buster… a sua mãe.

Um nós e formou em minha garganta.

Passei os dedos sobre o rosto de Asha, sentindo meus olhos lacrimejarem.

— Minha… mãe?

Não conseguia acreditar. Ela era mais extraordinária do que havia imaginado.

— Ela era… tão bonita.. - minha voz não passava de um sussurro choroso.

— Asha era maravilhosa – concordou Karin, baixando as orelhas – mesmo quando ainda estava grávida de você… fez o possível para tornar a transição dos monstros para o subterrâneo menos deprimente… sempre mantendo-se otimista e perseverante. Mesmo tendo que lidar com o próprio luto, ajudou várias outras pessoas a superarem suas perdas… - deu dedo deslizou na direção da outra monstra da fotografia – incluindo a viúva do vice-comandante da Guarda Real da época…

Minhas orelhas felinas recuaram.

— Essa… essa é…?

— Sim, Nitch – ela me abriu um meio sorriso – Mistrel Nacabi.

A mãe de Aayrine.

Foi como levar um soco na boca do estômago.

Então, desde o início, elas haviam ficado juntas… até a morte de minha mãe.

Aayrine havia me contado tudo sobre Mistrel… mas nunca havia tido a chance de ver qualquer fotografia dela ou de Terso.

Talvez ela nem sequer tivesse alguma.

— Vocês dois são filhos de grandes guerreiros – a monstra empurrou delicadamente o porta-retratos de encontro ao meu peito – e você, mais do que ninguém, merecia ter o mesmo futuro honrado de seu pai – suspirou – talvez o mais difícil não seja apenas me perdoar, querido… - seu olhar tristonho pousou sobre o meu – por que, por alguma razão… sinto que precisa perdoar a si mesmo também…

Meu coração perdeu um compasso.

Era como se Karin soubesse da amargura que eu ainda trazia.

— Eu… - comecei, engasgando com minhas próprias palavras – Karin…

Ela tinha razão. A quem eu estava tentando enganar? Eu estava insistindo em minha aversão com Karin, ainda julgando-a por algo do qual já havia se arrependido, quando eu mesmo havia cometido um erro tão ou mais grave quanto ela.

Como eu podia continuar a odiando, depois de tudo que havia acontecido?

Baixei a cabeça. Karin tomou-me o rosto nas mãos de forma carinhosa, e mal tive forças para pensar em recuar.

— Se não fizer as pazes com o passado… - disse gentilmente – não poderá ter um futuro de verdade, Nitch.

Foi a gota d'água.

Desolado, inclinei-me sobre seu ombro, ainda segurando a fotografia, sentindo que Karin me abraçava.

Uma surpreendente sensação de alívio me invadiu.

Parecia que, no fundo, eu realmente estivesse precisando daquele abraço desde o início. Foi como se um peso enorme tivesse sido retirado de meus ombros.

— Karin…

— Não – ela me interrompeu, recuando alguns centímetros, afagando meu antebraço - está tudo bem, meu garoto – a loba soltou um riso tímido – você tem a mesma ternura e altruísmo de sua mãe. E por isso se tornou esse rapaz incrível que é hoje.

— Eu não diria isso… - contestei, amargurado, repousando a fotografia sobre a mesa de cabeceira – esqueceu como fui… injusto com você?

Karin arfou.

— Não – seu sorriso esmaeceu – não esqueci, Nitch. Apenas… decidi deixar todo o sofrimento no passado – ajeitou seu casaco, virando-se para o hall – talvez, um dia… você consiga fazer o mesmo.

E então, adiantando-se, saindo pela porta, e desaparecendo solário afora.

Fiquei ali, paralisado, espreitando de soslaio a foto de Mistrel e Asha sobre a mesa.

Não é tão fácil. Retruquei comigo mesmo. Ela não sabe pelo que eu passei. Todos os erros que cometi. Nunca vou conseguir me perdoar de verdade.

Eu não tinha nenhuma esperança de ter aquela paz interior.

Porém, em pouquíssimo tempo, isso iria mudar.