O Despertar de Mono

Nas Terras Proibidas, Wander havia completado sua missão. Matara todos os dezesseis colossos espalhados pelo ermo com muita labuta, dor e sofrimento, e no Templo da Adoração um trágico destino mudara sua vida.

Dormin, a grande entidade que havia oferecido o poder de trazer a amada de Wander do mundo dos mortos de volta a vida novamente, possuiu o corpo do jovem guerreiro tomando uma forma colossal e sombria e começou uma guerra contra os homens de Lorde Emon em busca de sua liberdade porém o xamã recuperou a espada mágica roubada por Wander e invocou seu feitiço mais poderoso para selar para sempre o espírito do colosso no templo.

As forças obscuras de Dormin logo foram sugadas pelo selo na fonte mágica do templo e Wander voltou a sua forma humana porém estava fadado ao mesmo selo por ter ficado em contato por tempo demais com as sombras dos colossos dentro de seu corpo.

Por uma ironia cruel do destino, todos os colossos do qual dera seu sangue e suor para executá-los espalhados por toda a extensão das Terras Proibidas em troca da vida de Mono foram também a causa de sua trágica morte e ainda sem ao menos poder ver sua amada respirando uma última vez.

Talvez estes sejam os destinos dos heróis solitários.

Mono acordara de um sono pesado. Uma luz forte do lado de fora do templo incidia sobre o altar do qual estivera deitada por meses. Seus olhos pesados iam se abrindo aos poucos para se acostumar com os raios de sol incidindo sobre seu rosto pálido. Aquela sensação de calor era agradável em seu rosto como o toque da pele de um ente querido. Quando levou sua mão em sua bochecha sentiu fria devido ao seu estado de coma.

Com cuidado Mono jogou suas pernas para o lado ficando sentada no altar em direção à fonte mágica. Sua cabeça parecia um turbilhão de memórias confusas mas aos poucos lampejos de sua vida passada iam se formando e logo começou a se lembrar de acontecimentos da sua vida; primeiro nomes, Wander. “Wander”. Balbuciou emocionada. Wander era seu namorado na vila em que viviam o qual amava profundamente. Porém essa memória deu lugar a outro lampejo e outro nome. “Lorde Emon”. A imagem de Lorde Emon erguendo um punhal a sua frente quando estava amarrada em um altar na vila, chorando desesperada como que esperando um último milagre, prestes a perder sua vida, em seguida sua visão ficando avermelhada e por fim enegrecida. Essa era a última coisa que lembrava antes de sua morte. Uma lágrima quente escorreu do canto de seu olho esquerdo.

Mono era uma bela garota de longos cabelos pretos, olhos castanhos e traços delicados. Ainda vestia o mesmo vestido branco de seda com ornamentos ritualísticos usado no dia de seu sacrifício.

Tentou ficar de pé e sentiu o mármore gelado sob seus pés descalços. Olhou ao redor e viu toda aquela construção ciclópica e gigantesca com certa surpresa e boquiaberta. Tentava dar alguns passos com certa dificuldade pois seus músculos estavam fracos e frágeis devido a todo esse tempo em repouso profundo.

Ao esbarrar em uma espada ensanguentada perto de seu pé que fez um certo barulho agudo de metal raspando na pedra que ecoou por toda a estrutura se assustou levemente e perscrutou aquele cenário no chão ao longo do salão de espadas, bestas, flechas e alguns corpos inertes. Ela levou as duas mãos à boca em sinal de espanto e ouviu alguns ruídos que pareciam ser passos atrás dela.

O som começou a ficar mais claro para Mono e ela distinguiu como o som das patas de um cavalo. Um lampejo veio à mente e quando se virou de costas viu Agro o cavalo que Wander sempre a carregara junto em suas viagens e passeios.

Um semblante de alegria e euforia foi desenhado no rosto de Mono assim que ela reconheceu seu velho amigo e companheiro de nostálgicas cavalgadas. Porém Agro parecia estar ferido pois estava mancando e após receber um afago de sua dona começou a andar em passos lentos em direção a fonte e Mono o acompanhou desviando com cuidado dos corpos e das armas espalhadas pelo chão do templo.

Ao se aproximar da fonte um choro de bebê foi escutado e no meio daquela fonte seca Mono avistou a criança chorando. Era um bebê crescido e parecia saudável exceto por algo que chamou muito sua atenção: o bebê tinha um par de pequenos chifres nascendo na testa. Mono então o pegou com cuidado segurando em seus braços e sussurrou um pequeno “shhh” para acalmá-lo. Ela o encarava ternamente e achava seus olhos verdes lindos. Na sua mente tentava imaginar o que teria acontecido ao pobre bebê, por que ele estava sozinho ali abandonado. Repentinamente em meio a esses pensamentos Mono começou a soluçar baixinho e percebeu que estava chorando mas não sabia o porquê. De alguma maneira o menino a lembrava de Wander.

Agro o cavalo começou a subir um lance de escadas que levava em algum lugar fora daquele salão e Mono o seguiu.

Chegando lá em cima Agro e Mono deram em uma espécie de grande jardim que contrastava completamente com o resto do templo. De um verde vívido e repleto de criaturas como cervos, pássaros, coelhos e lagartos.

Mono estava embasbacada pois não esperava encontrar um jardim tão grande ali com tanta vida naquele lugar deserto e abandonado pelos deuses, logo em cima do templo.

Dali em diante decidira fazer um lar naquele local sagrado para criar a criança já que a única saída daquela Terra Proibida estava destruída e selada para sempre.

***

Após seu despertar do sono profundo a fome a sede finalmente acometeram Mono. Decidiu explorar mais o jardim em busca de água e para sua felicidade encontrou uma pequena cascata. Ela não fazia ideia de onde essa água vinha, parecia haver uma nascente ali nas proximidades pois o templo fora erigido tendo como base uma montanha com alguns cumes. A construção do Templo da Adoração tinha aproximadamente duzentos e oitenta e sete metros de altura.

Mono enfiou suas mãos delicadas na pequena correnteza e juntando as duas em forma de concha levou-as até seus lábios ressecados e bebeu aquela água cristalina e límpida com regalo. Repetiu o processo uma, duas, três vezes até se sentir um pouco mais viva além de molhar seu rosto e sentir o frescor e o efeito purificador daquela água. Depois trouxe o bebê para próximo de si e levou um pouco também na boca da criança. Ao ver o menino engolir o líquido com regozijo deu um leve sorriso. Agro também aproveitou para beber um pouco ao lado de Mono que estava sentada sobre a grama.

Aquele lugar parecia surreal para Mono. Parte da estrutura do templo se estendia até um paredão da montanha e o som de quedas-d’água podiam ser ouvidas próximo dali. Acima dela podia-se ver arcos de pedra gigantescos e pilares como se fossem pedaços de uma ruina, a diferença é que toda essa estrutura estivera ai desde a construção do Templo sem sofrer com as intempéries do tempo.

Tentou procurar alguma coisa para se alimentar e dar de comer para o bebê mas tudo que encontrou foram alguns pêssegos o que não foi o suficiente para saciar sua fome. Ela olhava aqueles animais dóceis presentes e não podia parar de pensar em comer a carne de algum deles. Os raios do sol banhavam todo aquele lugar e a se julgar pela posição do astro no céu era por volta de umas onze horas da manhã.

Mono então correu descendo pelos lances de escada e vasculhou o chão do salão em busca de ferramentas que a ajudassem com alguma caça. Ela encontrou uma adaga na bainha de um dos corpos e manteve consigo. Logo a sua frente viu um elmo de um dos soldados e pensou que poderia servir como uma panela bem rústica para cozinhar algum guisado. Depois de mais algum tempo andando pelo salão encontrou um arco e uma aljava com algumas flechas. O arco parecia bem familiar e lembrou que Wander usava um bem parecido com aquele. O colocou em seu ombro, pegou os itens surrupiados e subiu novamente a escadaria até o jardim.

No jardim Mono deixou o elmo no chão próximo dela junto com a adaga. Pegou o arco e retesou uma flecha. Avistou um cervo a uns metros de distância que não notara sua presença e mirou nele. Seus braços tremiam por não terem força o suficiente para manter a flecha retesada por muito tempo então deu o primeiro disparo que zuniu longe acima do cervo que nem percebeu o perigo. Mono soltou um suspiro de tristeza e pegou outra flecha. Tentou se concentrar melhor dessa vez controlando a respiração, mirou e soltou a corda do arco que disparou mais uma seta sem sucesso que atingiu uma pedra próxima dela. Olhou o cervo de forma pesarosa que continuava comendo algumas folhas no chão e tentou novamente.

Dessa vez puxou a flecha usando os músculos das costas e concentrando toda sua força naquele momento para manter o arco mais estável possível, mirou um pouco acima do alvo, prendeu a respiração e disparou acertando o animal com precisão perto da cabeça que soltou um guinchado de dor.

Mono com um misto de tristeza e alegria pegou a adaga, largou o arco e correu em direção ao cervo que morria lentamente. Ao agachar-se perto do bicho mono o acariciou na cabeça e pediu desculpas antes de enfiar a lâmina em seu pescoço e terminar de matá-lo.

A noite caíra na Terra Proibida. Uma infinidade de estrelas enfeitava o céu negro. Um aroma de comida cozida dispersava pelas extensões do jardim. Mono preparava um guisado de carne de cervo no elmo de um dos soldados. Suas mãos estavam todas raladas e com hematomas por ter ficado quase horas tentando fazer fogo com um graveto e folhas secas. Com uma cumbuca improvisada de madeira se serviu e depois colocou um pouco do caldo na boca da criança que ainda não conseguia mastigar. A refeição seria sem graça por conta da ausência de tempero mas como não comia a meses devido ao coma, até que estava de bom grado para seu paladar.

Improvisou uma cama bem pobre com algumas folhas e pegou uma capa de um dos soldados para servir de cobertor. Se aconchegou, cobriu o bebê e ficou admirando o céu estrelado até adormecer.

Dali em diante aquela era a vida que tinha que seguir naquele mundo desolado sem outras civilizações por perto.

***

Doze anos se passaram naquelas terras ermas e o garoto havia crescido. Se tornara uma criança forte saudável e alegre. Mono não havia mudado muito exceto que estava por volta de seus trinta anos e se sentia como uma mãe. Batizara o menino com o nome Ico.

Mono esperava Ico montada em seu cavalo Agro na saída sul do templo. Havia se tornado uma verdadeira figura esbelta e elegante próxima a uma amazona pois cavalgava como o vento.

Mais uma vez ela gritou:

̶ Ico! Já pegou nossos suprimentos?

Eles estavam de partida para mais uma cavalgada nos ermos da Terra Proibida. Durante esses anos tudo que podiam fazer naquele mar de desolação era explorar o templo e os arredores.

E era isso que fizeram. Encontraram calabouços vazios no subterrâneo do templo, com nada mais do que ratazanas enormes. Nada de tesouros ou itens mágicos. Nos arredores conheceram grandes cânions, planícies que se estendiam até o horizonte onde os olhos podiam ver, desertos, praias, florestas e falésias. Não havia sinal algum de vida humana, apenas animais exóticos e selvagens.

Porém quando saia do templo podia-se avistar vários pilares de luz intensa espalhados pela Terra Proibida. Ao todo eram dezesseis. E naquele dia iriam fazer sua cavalgada mais longa rumo a um desses pilares, algo que nunca tinham feito antes para averiguar.

Ico vinha correndo em direção a Mono carregando uma sacola de couro com suprimentos para viagem. Comida, cobertores e água. Rapidamente subiu no cavalo e se ajeitou na frente de Mono.

̶ Pronto? – perguntou Mono com um sorriso.

̶ Sim! Vamos partir. – respondeu Ico eufórico.

Mono então deu um leve tapa no traseiro de Agro que entendeu o sinal e começou a galopar em direção ao pilar de luz mais próximo.

Rumo às montanhas ao sul estava o pilar de luz mais próximo e para lá cavalgavam de forma veloz. Passaram por uma grande ponte de pedra sobre um cânion e o vento soprava de maneira forte vindo do leste. As paisagens da Terra Proibida eram estonteantes e tiravam o fôlego de qualquer um. Vales e planícies do verde mais vívido como esmeralda e o céu tão azul quanto uma pedra de safira.

Chegando no grande paredão que se erguia imponente ao céu desmontaram e procuraram uma trilha que circundava a montanha.

̶ Hey! Mono! Achei algo. – Ico acenava de forma frenética para Mono.

Ico havia encontrado uma trilha que circundava a montanha. Mono a analisou para ver se tinha algum perigo eminente e então acenou para o garoto a seguir.

Mais de cinco horas subindo pela montanha. Nesse meio termo pararam para comer pedaços de carne seca de coelho e se hidratarem. O sol naquela altura castigava um pouco a pele.

No final chegaram a um planalto. Olhando da beirada do terreno dava pra ver até algumas nuvens próximas. Ico estava deitado de bruços na beirada do paredão olhando atônito a vista o que assustou Mono.

̶ Hey, não fique ai desse jeito querido, é perigoso. – alertou Mono que o puxou pela camisa.

̶ Eu tenho uma sensação de que já estive aqui antes – retrucou Ico para Mono. ̶ Não sei explicar como mas tudo isso me parece familiar. Eu sonhei com esse lugar.

Mono acariciou o cabelo do garoto e deu um leve sorriso. Continuaram a andar por entre algumas pedras e árvores e encontraram algo que não esperavam.

De onde emanava o pilar de luz se encontrava uma forma gigantesca e colossal que jazia inerte no solo. Tinha aproximadamente dezesseis metros de comprimento. Possuía uma forma que lembrava um touro humanoide. Seus membros eram protegidos por um pelo negro de tonalidade marrom muito espesso e outras partes de sua carcaça pareciam rocha. Era um colosso, morto no passado pelo próprio Wander.

Ico andou em direção ao ser estupefato por tamanha magnitude e se aproximou cada vez mais estendendo a mão.

̶ Ico! Não toque! – exclamou Mono com certo receio.

No entanto Ico não ouviu e ao tocar a criatura foi acometido por uma epifania de memórias e imagens em sua mente. Deu um grito de dor e caiu para trás.

Mono correu em sua direção e agachou a seu lado chacoalhando o garoto:

̶ Ico, você está bem? Fale comigo!

O garoto então abriu os olhos lentamente e viu a mulher com o rosto quase grudado ao seu com um semblante de espanto. Se levantou e ficou de frente com ela. Mono ainda agachada segurava nos ombros do menino e o encarava.

Ico começou a chorar e a soluçar baixinho enquanto encarava Mono. Ela sem entender fez um gesto inclinando a cabeça levemente. O garoto sibilou em meio aos soluços:

̶ Mo...no...

̶ Sim! – respondeu Mono sem entender o que acontecia. – Pode falar querido.

̶ Sou eu... – continuou o garoto.

Uma lágrima quente percorreu o rosto de Mono. Ela não conseguia proferir uma palavra mas havia entendido tudo. E então começou a chorar compulsivamente e a soluçar. Levou as duas mãos em seu rosto como um gesto involuntário. E titubeou uma única palavra:

̶ Wander...

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.