Enquanto planava pelo fogo do inferno eu tive uma visão do paraíso.

Primeiro ouvi o som mais feliz que minha mente podia conjurar – tão lindo, tão enaltecedor quanto medonho. Era o outro grunhido, um rugido mais profundo, mais selvagem, soava com fúria.

Eu não conseguia abrir meus olhos, mas a dor aguda partia de minha mão, o suficiente para me fazer desejar a morte, ansiar por ela com um certo alivio. Ou eu já estava no inferno? Era bem provável.

Mas das profundezas amargas e extremamente dolorosas do inferno a voz mais doce do mundo me chamou, era um anjo. Só podia ser um anjo. Não, era muito melhor, era uma anja. Minha anja.

- Ah, não, Eduardo, não! – gritou a voz apavorada da anja.

Por baixo da voz da anja estendia-se outro barulho, uma confusão, um tumulto medonho que se abriu em minha mente – eram vozes do inferno. Um rosnado grave e maligno, um som estrepitoso, chocante, e um lamento agudo, interrompendo-se de repente...

Tudo que eu queria era ouvir a voz da anja.

- Eduardo, por favor! Edu, me escute, por favor, por favor. – implorava ela.

Sim, eu queria responder, eu queria tocar a anja, queria abraçá-la, beijá-la, mas eu não conseguia me mover. Eu não encontrava meu corpo.

- Carlos! – gritou a anja, a agonia naquela voz maravilhosa. – Eduardo! Eduardo! Ah não! Não! – e a anja chorava sem lágrimas, soluços interrompidos.

Eu não queria que ela chorasse. Isso não era certo, não para uma anja. Não para ela. Eu queria consolá-la, mas não sabia onde eu estava. O inferno era pesado e tinha muita dor. E ali anjos choravam.

Houve um ponto de pressão em minha cabeça. Eram demônios, só podiam, estavam me torturando por ser tão esnobe. Estavam me castigando pelo mal que fiz a todos. Minha cabeça doeu muito. Depois, enquanto essa dor irrompia a escuridão, muitas outras chegaram e eu gritei – sem me importar em ser uma menininha – a dor era excruciante. Era insuportável.

- Eduardo! – gritou a anja.

- Ele perdeu muito sangue. Mas o ferimento na cabeça não é muito profundo. – informou uma voz calma, seria Deus? Deus iria me salvar? – Veja a perna dele, está quebrada.

Um uivo saiu estrangulado da voz da anja.

Senti uma dor aguda do lado do corpo. Por que não me tiravam logo do inferno. Doía demais, será que eles não sabiam disso? Me tirem logo dessa droga!

- Acho que algumas costelas também. – continuou a voz de Deus, tão metódica, tão calma. Por que ele não me salvava logo?

E todas as dores passaram quando o fogo do inferno começou a queimar minha mão. Eu seria queimado no inferno. EU seria QUEIMADO!

Eu estava mesmo no INFERNO!

- Clara! – gritei, ou tentei, minha voz saiu tão fraca, tão impotente. Não me importei, ela tinha que me tirar do inferno.

- Eduardo. Você vai ficar bem. Pode me ouvir? Eu te amo. – a anja murmurou. Se ela me amava tanto por que não me salvava?

- Clara. – tentei de novo, aliviado por ter a voz mais forte.

- Estou aqui.

- Isso dói. – murmurei.

- Eu sei, eu sei. – ela me confortou. E depois longe de mim, angustiada. – Não pode fazer nada?

- Minha maleta, por favor... Prenda a respiração Elidia. Ele perdeu muito sangue. – prometeu Carlos.

- Elidia? – grunhi.

- Ela está aqui. Ela sabia onde encontrá-lo.

- Minha mão está doendo. – comentei. Ela ainda estava no inferno.

- Eu sei, Carlos vai lhe dar algo. Vai passar.

- Ela está queimando! – eu gritei, finalmente conseguindo voltar, ou quase voltar, minha mão ainda estava no inferno, aquilo não era possível, era ruim demais.

A voz dela ficou assustada.

- Eduardo?

- O fogo do inferno! Está me queimando! O fogo! – gritei, sentindo aquela terrível sensação. Eles não viam isso?

- Carlos! A mão dele!

- Ela o mordeu. – a voz de Carlos não estava mais calma, estava aterrorizada.

Ouvi Clara prender a respiração com horror.

- Clara, você precisa fazer. – era a voz de Elidia, perto da minha cabeça, dedos frio enxugaram as lagrimas de meus olhos.

Eu estava chorando? Desde quando eu estava chorando?

- Não! – berrou Clara.

- Elidia! – eu gemi, angustiado com aquela queimação.

- Pode ser a única chance. – disse Carlos.

- O que? – implorou Clara.

- Sugue o sangue dele. A ferida está limpa. É a única chance. Rápido. – algo cutucava meu couro cabeludo, mais uma dor excruciante.

- Isso vai dar certo? – perguntou Elidia.

- Não sei. Temos que tentar. – comentou Carlos.

- Carlos, eu... – Clara hesitou. – Não posso fazer isso. – sua voz estava em plena agonia.

- A decisão é sua. Não posso ajudá-la, tenho que estancar o sangramento aqui se vai tirar mais sangue de sua mão.

Eu me torci com mais uma queimação.

- Clara! – gritei. Piscando, conseguindo finalmente enxergar ao redor, ver o rosto de minha anja amada, indeciso e preocupado.

- Elidia, me de uma coisa para imobilizar a perna dele. – pediu Carlos, se curvando sobre mim, trabalhando em minha cabeça. – Clara, tem que ser agora, ou será tarde demais.

Encarei o rosto indeciso de minha anja, ela me olhou, angustiada, e pegou minha mão com suas mãos frias, levando seus lábios para a ferida. No começo a dor foi muito pior, eu gritei e me contorci, enquanto alguém segurava minha perna quebrada e minha cabeça.

Depois, lentamente, o fogo cedia, se concentrando em um ponto, até que passou. Eu sentia que a inconsciência me chamava e tive medo de partir antes de falar com ela, de pedir...

- Clara... – eu mal ouvia minha voz, mas eles podiam me ouvir.

- Ela está bem aqui, Eduardo.

- Fique comigo. – implorei.

- Eu ficarei. – sua voz era tensa, mas de certo modo triunfante.

Eu suspirei, aliviado. Sentindo que as dores me matavam, mas não havia nenhum fogo. Eu não estava no inferno.

- Saiu tudo? – perguntou Carlos de algum lugar ao longe.

- O sangue está limpo. – informou Clara com a voz baixa.

- Eduardo? – Carlos me chamou.

Tentei responder.

- Hmm?

- O fogo passou?

- Sim. – suspirei, cansado. – Obrigado, Clara.

- Eu te amo. – ela murmurou.

Eu tentei curvar meus lábios, os olhos fechados, num sorriso convencido.

- Eu sei.

- Eduardo, onde esta seu pai? – perguntou Carlos.

- Não sei. Mas ele não estava aqui. Ela me enganou. E Elidia, ela falou de Elidia. O vídeo...

- Shh. Fique calmo.

- Vamos levá-lo daqui. – pediu Carlos.

- Não quero. – resmunguei, mais fraco ainda.

- Eu te carrego.

- Hmm. – resmunguei em desagrado.

E apenas com o som da risada angelical eu mergulhei na escuridão.