O Coração da Rainha

Posso Sacrificar Tudo




– O que eu faço com você, Sebastian?

– Mãe... - ela passava um pano no meu ombro. A ferida só precisava sarar. Mas eu senti uma leve febre.

– Filho, deu tanto trabalho vocês se distanciarem, ela te esquecer...Você sabe que é o melhor pra ela. E você não faz nem questão de manter isso. Você não faz questão de esconder o que sente. De que adiantou tudo? Seu amor por ela foi a queda dela, por que é tão egoísta?

– Eu sou egoísta, não por não disfarçar – segurei a mão da minha mãe -, mas porque só me dou mal e vou me dar mal e é a senhora quem sofre minha dor.

– Você entende – ela tinha lágrimas no rosto – Você nunca me deu trabalho, Bash querido, meu medo sempre foi te perder. Sempre vivemos pelas sombras, a salvo. Não mude as coisas agora.

– Mamãe, independente de eu ser um bastardo, de eu amar a Mary, eu te amo e nada do que faço é para machucá-la.

– Eu sei, Bash, mas machuca. Sei que tem que seguir seus passos sem minha perseguição, mas estou te vendo afundar-se sozinho por causa dessa garota. Não me faça querê-la mal.

– Ela não tem culpa, mãe. O imbecil teimoso sou eu – fiquei cabisbaixo. Minha mãe beijou minha testa, colocou esparadrapo nas ataduras, não sangrei demais. Foi um ferimento ao qual eu já estava mais acostumado. Meu ombro machucado era o direito, mas como eu sou canhoto, ainda podia desenhar. Há tempos eu não desenhava.

Eu sentia falta de Mary. Sentia saudade de seu jeito amável de antes. Comecei a desenhá-la. Primeiro o queixo, a torpe forma do cabelo, suas sobrancelhas, os belos olhos.

– O que está desenhando?

A criatura apareceu atrás de mim! Como ela conseguia? Como isso era possível? Não tinha nenhum barulho lá fora e não a ouvi! Amassei o desenho na mesma hora.

– Mary – pulei da cadeira e joguei o papel amassado bem longe – O que está fazendo, menina? Está louca? Eu podia estar nu!

– Calma! - ela me estendia suas mãos, em sinal de paz – Só vim ver se estava bem!

– Como pode ver, minha mãe me fez um curativo – respondi, cabisbaixo.

– Ah, que gracinha! - ela uniu suas mãos como se fosse orar, mas com dedos entrelaçados – Você fica tão bonitinho com essa carinha de quem fez coisa errada!

– Bonitinho... Sou macho! Você quer dizer que fico grandioso e imponente?

– Não... Fica bonitinho – ela sorriu e foi olhar meus ferimentos. Meu braço apenas foi machucado pela força da pedrada, não houve perfuração da pele. Na cabeça eu tomei uma pedrada na hora que me abaixei para empurrá-la e esqueci. Estava no couro cabeludo próximo à entrada direita. Mary viu. Pegou um pano e passou no sangue. Eu estava retesado com aquele contato. As mãos dela eram brancas, pálidas, como as de uma fada. Ah, Mary... Sempre que eu penso que superei, você vai lá e me mostra que não quer ser esquecida, não pode ser esquecida. E eu sou só o seu bobo da corte. Alguém que te diverte, que você humilha e depois vai para os braços de outro.

Mary lavava o pano meio sujo de sangue. Pegou um pedaço de atadura e esparadrapo e colocou na minha testa. Fez um curativo bem bonito e ainda fez um carinho.

– Você me salvou duas vezes hoje – fez uma reverência respeitosa – Eu agradeço.

– Não precisa agradecer ao vassalo por salvar sua rainha...

Mary ficou corada. Não consegui evitar. Ficamos em silêncio. Sob aquele mesmo luar já a beijei outras vezes. Não faltava vontade de beijar mais. Se eu fizesse isso, ela ia me chamar de tarado, estuprador de menininhas de novo. Fiquei cabisbaixo novamente.

– Acho que.. Acho que já está tudo bem agora, Mary. Vá dormir.

– Tudo bem – ela fez sua reverência – Foi estranho como encontrei o caminho.

– Pois é uma pergunta que eu tinha em mente mas esqueci. Como descobriu o caminho?

– Não sei. Foi um tipo de... intuição, não sei. Mas foi bom ter encontrado – Mary me deu um beijo na bochecha e entrou pela passagem. Fiquei tanto tempo com a mão na bochecha que acabei adormecendo. Ah, Mary. Como não te amar?

Peguei de volta o papelzinho onde eu a desenhava e voltei a fazer os traços, os riscos, cada fio de cabelo individual. Minha Mary tinha que ficar parecida e linda. Pelo menos ali, naquele pedacinho de papel, ela seria minha. Totalmente minha. Guardei o papel no meu coração. Eu era um verdadeiro bobo apaixonado. Uma paixão que já ia fazer aniversário de onze anos. Onze anos amando a Mary com indas e vindas. Guardando-a no meu coração, não querendo saber de ninguém. Só dela. Mary, será que você vai me enxergar de novo?

Droga! Cocei minha cabeça e embaralhei-a. Não posso pensar assim! Ela é noiva do meu irmão! Todo esse tempo não pensei na dor de Francis! Mary pode ter um noivado normal e eu estou estragando tudo. Estou sendo egoísta, como minha mãe disse. Fiz algo que nunca deve ser feito, dobrei o desenho. Já estava amassado, mesmo.

Tomei um banho bem gelado batendo queixo para me concentrar na dor e esquecer a Mary. Caí na cama. Então a rainha dos baixinhos apareceu de novo.

– Não consigo dormir – ela disse.

– O que quer que eu faça? - perguntei, olhando para o teto.

– Que me deixe dormir aqui no chão – O quê? Como assim? Ela estava me xingando hoje cedo.

– Por que confia em mim assim do nada? Você não me acha um estuprador?

– Você me salvou. Eu não sei por que, mas sinto que vou ficar mais segura aqui.

– Fale a verdade, são meus olhos azuis, não? - perguntei, sincero – A maioria só gosta deles.

– Que bobagem – ela riu. Puxou seu colchão de baixo da mesa, onde ficava a passagem. Não a mesa de desenhos, era a mesa para café da manhã. Já trouxera travesseiros, cobertores, tudo. E estava num traje de dormir delicioso, de seda, que lhe dava lindos contornos. Arrumou a caminha bem rápido e deitou-se para dormir – Boa noite, Bash!

Deitei a cabeça no travesseiro e fiquei muito confuso.

– Não te entendo, Mary. Você me maltrata o tempo todo, como assim confia em mim?

– Eu tenho uma certa sensação do passado. Quando me falaram seu nome, eu senti um vazio, como se algo faltasse. E essa sensação me diz que posso confiar em você.

– Então por que os xingamentos?

– Você me irrita!

– Antes disso. Você é soberba comigo. A coisa que eu mais gostava em você era que nunca me tratava como um bastardo idiota apenas, e sim como um ser humano comum. E você não me trata mais com igualdade.

– Desculpe, Bash – ela revelou – Eu ainda não sei que papel você ocupava em minha vida. Estou tentada a achar que era um muito importante... Se algum dia quiser falar a respeito...

– Se você esqueceu, não deveria ter muita importância – eu sorri com desgosto – Boa noite, Mary.

– Boa noite. Ah.. Você não é um bobo da corte estuprador de menininhas.

– Obrigado.

Só tive a envergadura moral de dormir duas horas depois que ela pegou no sono. Tive que tomar outro banho gelado. A presença de Mary estava mexendo com hormônios delicados que eu não estava apto a usar no momento. Virei de costas para ela, ainda tremendo de frio, e fechei os olhos.



Tive a impressão de ter visto a Mary pegar seu colchão e levar de volta pela passagem. Quando terminei de acordar, ela não estava mais lá. Tomei meu banho, já era a hora de trocarem a água de novo. Vesti uma roupa qualquer e fui pro café da manhã. Só Catherine estava na mesa. Passava creme de queijo em seu pão de alho, satisfeita.

Alguma coisa muito séria aconteceu. Fui correndo pelos corredores, procurando. Perguntei aos criados, eles não diziam palavras, apenas me apontavam direções. Cada segundo maltratava mais o meu peito. Cheguei ao salão do rei. Os guardas tentaram me impedir de entrar, mas eu dei um chute na porta, que se arreganhou totalmente.

Francis conversava com meu pai, Mary estava no chão, sentada sobre os tornozelos, chorando.

– O que está acontecendo aqui? - indaguei. Eu não tinha direito nenhum de fazer isso, mas fiz.

– Esse assunto não é da sua alçada, Bash – meu pai me disse, indiferente – Da sua também não, Francis. O julgamento é meu!

– Mas que julgamento?!

– Uma moça veio denunciar que Mary era uma bruxa. Disse que a viu visitando Morgana, na floresta. Mandei que fizessem uma averiguação no quarto de Mary.

Mary chorava. Eram os itens de ontem? Mary estava fazendo alguma bruxaria?

– Encontramos, Majestade – falou um dos guardas que trazia uma sacola: a que Mary carregara ontem. Minha mãe chegou nesse momento para me tirar do salão.

– Ervas de bruxos – o rei avaliou – Infelizmente, a sentença é a fogueira.

– Henry, não pode fazer isso! - minha mãe subitamente me soltou e foi até meu pai, tentar convencê-lo, enquanto Francis e eu gritávamos. Francis abraçou Mary, meu pai não quis ouvir nem minha mãe e eu fui atrás dele.

– Pai, pelo amor de Deus! Pai, não faça isso! Não pode matar a Mary! Por Deus, ela é uma rainha!

– Eu não posso contrariar as leis do meu país!

– Eu tenho certeza de que alguém armou isso para ela! Mary não é bruxa nenhuma, pai! Por favor!

– Sinto muito, filho. Estranho ser você a estar falando isso comigo e não Francis – ele bebeu um gole de uísque escocês, por ironia - Eu mataria até mesmo sua mãe se fosse uma bruxa – ele disse. Jamais poderia saber que ela era pagã, então – Já está decidido.

– Pai, você sabe a guerra que vai causar por causa disso? - eu gritava e gesticulava gloriosamente.

– Acha que não estou preocupado com isso? Mas como bons cristãos, deveriam me apoiar!

– Pai – eu me ajoelhei – Eu estou te implorando. Eu te rogo que não faça mal a ela, eu sei que eu a odeio, mas não a quero morta! Por favor! Foi apenas uma travessura!

– Eu admiro seu intuito de mentir para salvá-la, Bash... Mas a obra de uma bruxaria é capaz de destruir nossa família, matar nossos parentes. Isso já aconteceu uma vez. Foi como minha mãe morreu. Obra de uma bruxaria. Felizmente a tristeza de sua morte foi abafada pela alegria de sua chegada. Não quero perder mais ninguém que eu amo.

Ué... Na época que nasci, minha mãe fez uma bruxaria para meu pai me aceitar. Meu pai falou que a mãe dele era contra. A mãe dele morre, ele me reconhece. Se ele soubesse que pode ter sido minha mãe a matar a mãe dele... estaríamos mortos, eu e ela.

– Estou falando a verdade. Mary não é bruxa nem procurou tais sortilégios! Fui eu quem colocou aquelas ervas lá! Eu lhe quis mal e fiz uma pequena travessura. Por favor, meu pai... Pelo filho que tanto ama, não faça mal a Mary!

– Levante-se daí, Sebastian! - inconformado por eu ter me ajoelhado diante dele e curvar até minha cabeça ao solo, o rei ficou constrangido - Não adianta tentar assumir a culpa por ela.

– Eu admito tudo. Eu odeio a Mary e por isso coloquei ervas de bruxaria em meio às coisas dela.

– Bash, pare de ser um idiota!

Continuei ajoelhado. Olhei para ele com seriedade, mostrando que eu iria levar aquilo até as últimas consequências.

– Eu não o criei para vê-lo passar tal humilhação!

– Retire a ordem de execução - fui irredutível.

– Um rei nunca desiste de sua ordem, Bash.

– Então observe seu filho morrer.

– Você está se sacrificando por Mary, o que vai ganhar em troca? Deixe de ser burro, Sebastian!

– Não é sacrifício, eu cometi um crime e devo pagar por ele – mantive-me firme – a lei diz que aquele que confessa a culpa deve receber o castigo.

– Sebastian, não jogue a lei contra o seu pai – apontou o dedo a mim ameaçadoramente.

– Já fiz – levantei, fitando-o olho no olho – Amanhã nos veremos, então, no matadouro.

Levantei minhas mãos. Ele viu-se obrigado a fazer o gesto para que os guardas me algemassem e me prendessem. Ficou me olhando com tanta raiva que tenho certeza que não intercederia pela minha vida. Provavelmente já tinham levado Mary presa.

Estava ela lá. Presa na cela, apavorada e sem ninguém mais para interceder por ela. Eu a substituí na cela. Mary ficou assustada. Foi tirada da prisão e eu fui colocado dentro, depois de removidas as argolas. Nem os guardas acreditaram que estavam fazendo isso.

– O que isso significa? - ela me perguntou, com o rosto molhado e os olhos muito vermelhos – Seu louco! - ela segurava a grade, agora pelo lado de fora. E eu, trancado, segurava pelo lado de dentro – O que está fazendo aí? Por que está aí?

– A família da Olívia a colocou aqui. Agradeça ao Francis por isso.

Mary segurou minha mão. Ela entendia. A família de Olívia odiava Mary por causa da desgraça em que Olívia caiu e buscavam meios de destruí-la.

– Bash – os olhos dela tiritavam de lágrimas e de sua luz natural – Eu não mereço isso... Não quero que morra por mim!

– Espero que meu pai não me mate. Ele vai me dar um castigo trevoso.

Mary segurou minhas mãos, chorando horrores.

– Sou uma burra, estúpida! Eu só queria acelerar o processo desse casamento, que não sai nunca! Não queria fazer mal a ninguém! O que acontecerá com Morgana?

– Essa aí vai morrer com certeza!

Mary apertou minhas mãos com força.

– Não entendo por que está aí, Bash... Eu só te maltratei, eu não sou uma boa pessoa para você. E mesmo que fosse, com risco de morrer, por que você faria isso?

– Eu sou o filho do rei e sou inocente. Tenho menos chances de morrer.

– Bash, me desculpa – sequei os olhos dela e tentei abraçá-la de dentro da cela, mas ficou difícil – Era isso que eu sentia. Essa sensação de que você vai me proteger o tempo todo... Você foi muito importante pra mim, Bash. Eu agora tenho certeza. Não vou deixar nada te acontecer, certo? O que fizerem com você, terão que fazer comigo também.

– Não seja estúpida. Volte aos seus aposentos.

– Não.

– Volte!

– NÃO!

– Guardas! Levem essa senhorita daqui!

Francis apareceu para ver Mary, ficou olhando por um tempo, com medo de ter ficado louco.

– O que acabou de acontecer aqui? - indagou o loiro.

– Leve sua noiva embora, por favor – apontei para ela.

– Não, Francis, não me leve! - ela suplicou, não tinha armas para se fazer convencer.

– Vamos, Mary – ele a pegou pelo braço e a abraçou, levando-a embora.

Como sempre. Levava-a embora para longe de mim. Era o meu destino, morrer por alguém que simplesmente queria pertencer a outra pessoa.

Depois, Francis voltou sozinho, me olhando com uma expressão estranha.

– Por que você colocaria ervas estranhas nos pertences de Mary? - ele realmente tinha caído nessa conversa?

– Porque eu não gosto dela – falei com o maior cinismo do mundo - Não a quero aqui. E combinei com aquela moça para inventar sobre Morgana.

– Com a irmã da Olívia?

– Sim. Exatamente.

– O que Mary fez pra você?

– Não preciso de motivos pra não gostar dela! Olha, isso não é da sua conta.

– Claro que é! Meu irmão e minha noiva se atacando como cães e gatos! Eu não quero viver nisso.

– Olha, irmãozinho, seja bonzinho e procure arrancar informações de nosso pai de como será a punição, certo?

Francis ficou me olhando. Ficou pensando enquanto olhava.

– A punição para uma travessura é infinitamente menos severa que para uma bruxaria – continuou olhando – Se houver uma pequena chance de você estar se sacrificando pela minha noiva, eu quero entender o porquê.

Abri os braços para eu lhe mostrar onde estava.

– Acha que eu gosto de ficar aqui?

– De jeito nenhum, só duas coisas podem tê-lo colocado aí; a culpa – ficou severo – ou o amor.

– Vai dormir, Francis. Se fosse para alguém se sacrificar por ela por amor, esse alguém teria que ser você, não? A menos que desconfie dela.

Francis agarrou minha gola através da grade, mas a ameaça era engraçada, ele era menor que eu.

– Não tem o direito de me julgar, Bash!

– Estou perguntando. Perguntar não ofende, irmãozinho – tirei as mãos dele da minha roupa e fui sentar longe da grade – Pode voltar ao seu quartinho, enquanto eu fico aqui.

– Você está se sacrificando pela Mary.

– Coisa que você não foi capaz de fazer! Você não confia na sua noiva!

– É claro que não! Eu não confio em ninguém! Eu sou um príncipe, Sebastian. Preciso confiar apenas em mim mesmo, estou cercado de complôs, traições... Veja só você, acha que merece confiança depois de fazer o que está fazendo?

– Eu tenho a confiança da Mary. A sua não importa.

Mary apareceu na prisão, com as lágrimas secas e a expressão mais imparcial que conseguiu fazer. As mãos cruzadas à altura da coxa, queixo erguido.

– Não posso permitir que continuem discutindo por mim. Peço que, por favor, parem.

Obviamente ela estava ouvindo o tempo todo.

– Eu já acabei, mesmo – Francis passou fora rapidamente.

Não pude impedir que Mary ficasse ali o tempo todo. Ficou sentada do lado da grade, cantando músicas escocesas e falando de sua terra natal.

– Olha, embora eu não te conheça direito de fato, sinto que te conheci a minha vida toda – ela dizia. Eu estava sentado em pose de lótus, braços cruzados, olhos fechados – Por que não me fala um pouco do nosso passado?

– Eu era gordo. Extremamente gordo – eu ri enquanto falava. Sei que Mary tentava desviar minha atenção da punição – Corria dois metros e já agachava para procurar meu pulmão no chão. Não tinha fôlego. Você me fazia comer poeira – rimos – Subia nas árvores, soltava o peão direitinho, ele não parava de girar. Fazia tudo que um menino queria fazer e eu não podia devido ao meu peso.

Mary ria, confiando que eu falava a absoluta verdade. Desistiu de puxar esse fato da memória e apenas me ouviu, imaginando a cena.

– As pessoas zombavam de mim, inclusive Francis, por eu não conseguir me levantar sem usar as mãos. Um dia estávamos com nossos amiguinhos correndo pelo campo de alecrins. Caçávamos borboletas, mas depois soltávamos. Cutucamos uma colmeia e todos saíram correndo. Fiquei pra trás e minha calça foi caindo. Tive que pular no rio, mas tropecei nas calças e dei uma cambalhota, saí rolando e afundei no rio. Todos riram tanto! Até você, Mary.

– Eu?

– Exatamente – lancei um olhar de soslaio – Apesar disso, você era minha melhor amiga.

Nossos olhares se cruzaram num momento que parecia eterno e intenso. Aquele lindo rostinho enternecido, suave, pálido.

– Mary, eu... eu te... - Ah, não. De novo, não! Não deu certo daquela vez, não iria dar certo agora. Nem que fosse a última oportunidade de dizer...

– V-Você? Você me...?

– Esquece – desviei o olhar, virando o rosto até o rubor do passar. Ainda era tão difícil dizê-la o que eu sinto. Era tão difícil... - Por favor, Mary. Vá dormir. Eu te peço.

Pedi sem olhá-la.

– Não quero deixá-lo. Se está aqui, é por minha causa.

– Eu fiz o que quis fazer. Não quero que fique comigo por pena. Se quer ficar perto de Francis, por favor, fique.

– Na verdade, eu quero ficar aqui – ela se sentou no chão.

– O chão não é lugar para uma rainha.

– O chão foi o melhor lugar onde já dormi. E só dormi no chão uma vez – ela me olhou com ternura.

Essa única vez foi comigo, no meu quarto, na noite anterior. Parecia um século atrás.

– Por favor, Mary. Não quero mais problemas com meu irmão. Estou te pedindo.

Mary bondosamente levantou-se e fez sua referência jeitosinha.

E foi embora.



Mary



Não consegui dormir. Por minha culpa o Bash estava na cela. Por que fui tentar recorrer à magia? Passei a madrugada toda me arrependendo e tentando me recordar do que ele falara a respeito da nossa infância. Fiquei pensando. Não consegui dormir.



– Você está se sacrificando pela Mary.

– Coisa que você não foi capaz de fazer! Você não confia na sua noiva!

– É claro que não! Eu não confio em ninguém! Eu sou um príncipe, Sebastian. Preciso confiar apenas em mim mesmo, estou cercado de complôs, traições... Veja só você, acha que merece confiança depois de fazer o que está fazendo?



– Você está se sacrificando pela Mary.

– Coisa que você não foi capaz de fazer! Você não confia na sua noiva!



– Você está se sacrificando pela Mary.

– Coisa que você não foi capaz de fazer! Você não confia na sua noiva!



– Você não confia na sua noiva!



Sentei-me na cama. Apoiei meus cotovelos nos joelhos. Pautei mentalmente todas as razões de eu estar ali ponderadamente. Nada de equívocos. Eu havia tomado uma decisão, enfim.



Bash



Minha mãe apenas me olhou. Não me repreendeu. Em um primeiro momento, apenas nos aceitamos naquelas condições. Ela estava ali, mostrando que por pior filho que eu fosse, ela ainda se preocupava.

– Sei que está decepcionada comigo. Sei que estou me tornando um estorvo na sua vida, mãe. Mas eu tive que fazer isso.

– Eu sei – ela aparentava indiferença – Colocou a vida da Mary antes da sua de novo. Mas dessa vez, livrou a todos nós de uma guerra que talvez não tivesse fim e eu estou orgulhosa.

Ela parecia estar dizendo aquelas palavras à força. As lágrimas caíram de seu rosto.

– Serão quinze chibatadas. Com chicote comum. Se Henry pensar bem essa noite, pode reduzir a dez.

– Obrigado, mãe. Tenho certeza que ele tinha trinta em mente.

– Ele tinha planejado mandá-lo embora. Eu não suportaria – ela virou o rosto – Espero que assuma com dignidade as consequências dos seus atos, Sebastian.

Sem troca de carinhos, de conselhos. Foi fria e rígida. Estava cansada de sofrer por minha causa.

– Mãe – chamei e ela atendeu com algum custo – Só tenho uma coisa a lhe pedir. A Mary... Não queria que ela visse...



Mary



Quando eu acordei, já estava tarde. Acordei com um pulo, o sol já raiava. Saí correndo com roupas de dormir com o coração na mão. O peito machucado, sangrando. Esfreguei a palma da mão nos olhos, removendo as gotas de choro e corri descalça. Meus pés fazendo barulho no chão liso.

Quando cheguei ao pátio, vi a cena mais horrível da minha vida. Bash amarrado a um tronco, sem camisa, açoitado por um carrasco cruel. O sangue dele se espalhava pelo chão.

– Bash, não!