O Coração da Rainha

A Carta de Alforria


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– Mary? - Bash gordinho chamou a atenção de Mary. Estavam sentados com os pés no lago, após um dia de caça às borboletas. Também subiram nas árvores procurando frutas. Encontraram uns bons marimbondos e tiveram que descer correndo – Por que acha que envelhecemos?

– Porque em algum momentos temos que assumir o lugar de nossos pais.

– Eu nunca vou assumir o lugar do meu pai. Eles dizem que minha mãe não é uma mulher digna. Você acha isso, Mary?

– As pessoas falam as coisas sem saber – ela acariciou o cabelinho macio e castanho dele – Nenhum deles conhece a sua mãe, com certeza. Não como você.

Mary tinha um saquinho de biscoito no formato de ursinhos. Tinha frutinhas cristalizadas, ela não gostava. Bash gordinho adorava. Deu mais a ele.

– Francis diz que você anda comigo por pena. Isso é verdade?

– Claro que não! - Mary acariciou o rostinho dele. Se chamassem ele de gordo, ela o defendia como se fosse seu irmãozinho indefeso, se tentassem bater nele, ela o defendia. Bash já pulou num rio para tentar salvá-la, mas ele era muito gordinho. Francis teve que salvar os dois.

Francis...

– Mary, o que está fazendo com o gorducho? - Francis perguntou, todo pomposo. Cheio de pose.

E levou Mary embora. A menina, feliz e saltitante, foi embora com seu noivo. Bash ficava sempre sozinho, olhando os dois, pensando nela.

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Bash

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E aqui estava eu de novo. Achando que já era um novo homem e agindo com a mesma imaturidade... Eu fui criado sabendo que Francis seria rei, que Mary seria esposa dele. E sempre sentia o mesmo calafrio, a mesma rigidez na espinha. Eu já tive tantas moças bonitas, talvez até mais bonitas que Mary... Mas sempre, toda maldita vez, tinha aquela dor de barriga sempre que falava com ela... E depois sou obrigado a vê-los rindo e se beijando. Eu não sou obrigado a ficar vendo isso. Que raiva!

Quebrei outro copo na lareira, atiçando o fogo. Estou bêbado, estou irritado, estou com depressão e crise de gota. Me ajuda, Senhor.

Sentei na cama, esperei a arritmia no coração passar. Fiquei zonzo. Dormi.

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Mary

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Saí que nem uma besta-fera solta. Os cabelos da Medusa e quem olhasse viraria pedra, mesmo. Que ódio! Que ódio! Que ódio e que raiva! Como assim Francis ousa me dispensar? O que eu fiz de errado? Mamãe me matará! Eu vou voltar para a Escócia arruinada!

Francis bateu na porta.

– Mary, deixe-me explicar!

– Explicar o quê? Veio consolar por pena mais uma vagabunda que você despreza após um beijo? Aquele era meu primeiro beijo! Pode não significar nada para você, mas era importante para mim!

– Mary, a porta é grossa! Eu não consigo te ouvir direito!

– Saia daqui! Seu principezinho falso! Aproveitador!

– Mary, não consigo ouvi-la!

Abri a porta, irritada.

– Já estou fazendo minhas malas – cruzei os braços. Menti. Não podia mostrar ser capacho dele.

– Mary, você não entendeu! Eu quero me casar com você, você é linda, é esperta, inteligente! É tudo que eu queria para mim. Mas é meu pai quem decide isso.

– Acho que está me livrando de uma boa – depreciei como uma víbora – Um homem que não consegue agir independente do pai. No fim eu estaria mais casada com o rei da França do que com o Francis.

– Mary, me respeite!

– Mereça!

– Não há nada que eu possa fazer! Ele faz o que pensa ser melhor para o povo! No momento em que ele achar que você e eu juntos é o melhor para a França, ele dará sua bênção.

– Sua permissão – retifiquei, com um dedo ao alto – Olhe minha cara e veja se pareço uma palhaça, Francis. Fico te esperando, ajeitando meus cabelos e usando belos vestidos na sua corte?

– É uma questão de tempo, Mary.

– Somos noivos há uns quarenta anos! Vou perder a virgindade aos cem!

– Mary, espere. Não seja assim... Ah... - ele se embolou todo. Bati a porta na cara dele. Não podemos ser frouxas com homens.

Eu amava Francis. Passei minha infância pensando naquela carta que ele escreveu para mim. Eu me sentia tão triste, como se largasse toda minha infância, tudo que guardei para ele se o deixasse.

Fiquei sentada na cama, esperneando para minhas amigas. Tão coadjuvantes que nem vou citar as falas delas. Apenas me aconchegaram. A rainha abandonada. Já me via voltando para casa. Batendo à porta do castelo de mamãe. Acabada, arruinada, manca. Ela ia jogar água quente em mim, não aceita mulher solteira com mais de 14 anos na casa dela. Com trinta anos ia estar andando na corte, procurando algum homem que me quisesse. Ninguém quer casar com uma velha.

As meninas foram embora. Ouvi algum barulho atrás do armário. Era um armário enorme, estranhei. Conseguia ouvindo o barulho. Abri o armário, talvez fosse um amante escondido, melhor do que ser um rato. Nada, vasculhei as roupas e não encontrei nada. Eu nunca tinha mexido no armário, só as criadas faziam isso. Enfim! Mexi, mexi, mexi e empurrei o fundo do armário. Abriu-se ali uma passagem. Não, não encontrei Clarissa. Eu ia encontrá-la depois.

Achei o culpado por aquela cacofonia e sei que desmaiei. Um rato. Um rato numa passagem atrás do meu armário. Bem, quando despertei ele já havia ido embora. Entrei na passagem, eu conhecia aqueles túneis, pensando bem. Se estivesse certa, tomando o caminho da esquerda, encontraria...

O quarto de Bash.

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– Majestade, já falei o que acho – disse Nostradamus - Não acho certo fazermos mal a essa menina.

– Não vamos fazer mal. Vamos assustá-la um pouco – disse a senhora Médici - Talvez ela encontre outro príncipe para levar para a cova! Não meu filho!

– Ela não tem culpa de nada.

– Ela tem toda a culpa! Você é o único em quem confio, Nostradamus, pois sabe minha motivação!

– Está bem, Majestade.

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Bash estava dormindo. Estava com um hálito de álcool intenso. Havia cacos quebrados no chão, parece que a empregada estava fazendo um rodízio de cerveja e resolveu derrubar todas as louças na lareira dele. Bash estava violento, então. Será que estava com febre? Toquei a testa dele. Ai, ele estava muito bonito e gostoso. Mas como apagar a imagem assexuada daquele gordinho simpático que comia todos os biscoitos? Fácil. Era só olhar para aquele corpinho forte. Senhor! Sou noiva! Eterna noiva, mas sou. Larguei a tentação, fui ler uns livros. Livros... Desde quando Bash gosta de livros?

Ele fazia desenhos. Desenhos... de mim! Eu com os pés no lago, eu com a mão na cintura. Fácil saber que era eu.. Pela boca horrível que eu tenho. Eu perguntava pra minha mãe se tinha um pé na senzala, ela ia atrás de mim com a escova de cabelo para aquela surra simbólica.

Bash gostava da minha boca.

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– Eu acho bonita – ele dizia.

– É grande, boca de... parecem lábios vaginais.

Ele ria.

– Você é muito boba. Olhe minha barriga e pare de achar que tem defeitos.

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Eu ri ao lembrar. Fiquei levemente corada. Olhei para Bash. Com certeza a mulher que se casasse com ele teria sorte. Ele era uma pessoa excelente. Bondoso, corajoso. Isto é, se ainda era como antes.. Belas coxas.

Ai, Mary! Cuida da sua vida!

Além dos desenhos, ele escrevia pequenos contos de um menino sem importância que salva o mundo. Bash tinha imaginação. No fim da história, o menino apagado de nascença se casa com uma rainha.

Apalpei a folha da história. Eram três da manhã e eu estava ali. Lendo e me divertindo. Bash se mexia na cama. A passagem do meu quarto estava ainda escondida atrás das roupas, a essa hora ninguém me incomodaria.

Fiquei rindo e cobrindo a boca com as coisas que Bash escrevia. Ele desenhava e compunha algumas melodias para violoncelo. Eu nem imaginava o que aquelas canções significavam. Ele era um homem cujas vontades não significavam nada. Com certeza quis manifestar seus sentimentos de alguma forma.

Bash arriscou como seria minha aparência. Desenhou-me de acordo com sua criatividade. Vou pedir que me desenhe agora. Mexi nos cadernos dele. Ele não ia perceber, eu não era tão estabanada assim. Deixaria cada folha na mesma posição que antes.

Ah, não. A mesa estava molhada. Um dos papéis ficou destruído! Ó, céus.

No papel, um poema. No poema, um verso que eu conhecia.

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Minha amada Mary

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Vasculhei os poemas dele...

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Mas nada tenho a oferecer

Exceto meu eterno bem-querer

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Cada poema trazia versões diferentes com cada vez mais detalhes em comum com o poema do Francis.

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Bash escreveu o poema que eu passei minha adolescência toda venerando?

Ele me amava?

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