O Conto da Piedade

Prólogo — A Rainha Esquecida


Toriel observava pacientemente as luzes da cidade abaixo se acenderem conforme os monstros retornavam para as suas casas após um longo dia de trabalho. O ar estava frio nas ruínas aquela noite, apesar de já ser quase verão. — “Espero que a minha criança esteja bem…” — Pensou. Muitos anos já haviam se passado desde que Frisk voltara para a superfície, e o peso da solidão já minava a mente de Toriel. Ela sabia que havia alguém atrás das maciças portas duplas que separavam as ruínas do resto do subsolo, mas não se atreveria a abri-las. Não poderia correr o risco de ser reconhecida como a Rainha Perdida da dinastia Dreemurr. Uma dinastia que arruinara sua vida, tirara seu bem mais precioso e fora responsável pelo assassinato de seis humanos inocentes por nada. Uma dinastia que deveria acabar.

— Vossa Alteza. — Disse uma grave voz feminina, em um tom solene.

Devagar, Toriel se vira para encarar sua interlocutora.

— Undyne? Eu devo confessar que esperava por Alphys… — Disse a cabra, cruzando os braços para tentar aquecer suas mãos sob as mangas do vestido.

— Por que, Alteza? — Questiona o peixe, de joelhos.

— Hum… Bem… Porque… — Toriel simplesmente não poderia dizer que era devido ao fato de não haver erros gramaticais na carta que recebera por baixo da porta. Seria o mesmo que sugerir que Undyne não tem capacidade de escrever apropriadamente, e certamente isso iria ferir seus sentimentos. Então era preciso pensar rápido. — Bem, ela sempre me pareceu mais propensa à Alta Traição que você.

— ALTA TRAIÇÃO É NEGLIGENCIAR SEU POVO E DELIBERADAMENTE NEGAR A LIBERDADE! — Undyne pôs-se de pé abruptamente, e só então percebeu que estava gritando com a legítima rainha. A amazona se ajoelha novamente, de cabeça baixa, em um silencioso pedido de desculpas.

— Não precisa se ajoelhar. Eu não sou da realeza. — Disse Toriel, melancólica.

— Pode não exercer o cargo, mas ainda tem sangue real.

— Sangue não transforma ninguém em um regente adequado, criança. A honra sim.

— E integridade. Duas virtudes que nosso rei não tem. — A voz de Undyne fica um tom mais baixa, e ela se vê tendo que lutar contra as lágrimas que insistiam em tentar escapar de seu olho exposto.

Seu coração estava partido desde que descobrira a verdade sobre Asgore; todo esse tempo ele poderia ter libertado os monstros, mas ao invés disso escolheu enganar a todos — enganar a ELA, aquela a quem chamava de “filha” — com uma profecia que nunca existiu. Preferiu não se mover e passar suas responsabilidades para os outros, mesmo crianças.

— Ele mentiu pra gente. Ele mentiu pra todo mundo. Ele mentiu PRA MIM! ELE ERA UM PAI PRA MIM E MESMO ASSIM ELE MENTIU! EU NUNCA VOU PERDOAR ELE! — Undyne cerrou os punhos e mordeu com força seus lábios, contendo assim o volume de sua voz. Sentiu o gosto do próprio sangue invadir sua boca, e livrou-se dele com um cuspe.

— Acalme-se, minha jovem… — Toriel se aproxima da amazona, tocando gentilmente seu ombro esquerdo — Não se pode consertar tudo através da violência. Mesmo que vença Asgore em um combate, como espera governar sendo tão explosiva?

— Eu não vou governar nada. Você vai. Digo, a senhora.

— Isto está fora de cogitação. — Disse Toriel, categórica.

— POR QUÊ? Ninguém mais pode!

— Outro alguém há de querer.

— VOCÊ é a rainha por direito!

— Eu abdiquei aquele trono, assim como abdiquei o nome Dreemurr e o amor de Asgore. Aquela coroa não é minha, e não há nada que você ou qualquer outro possa fazer quanto a isso.

A amazona rangeu os dentes. Alphys não tinha falado nada quanto à abdicação da rainha. “Aquela lagartixa nerd idiota!” — Praguejou mentalmente — “Discutir com essa cabra velha teimosa tá sendo uma perda de tempo! Eu devia ter usado a boa e velha FORÇA BRUTA.” — A vibração do seu celular interrompeu a onda de pensamentos furiosos que emergia em sua mente. Era Alphys, bem a tempo, com uma informação útil.

Toriel viu Undyne sacar seu telefone da armadura, e não teve um bom pressentimento ao ver o sorriso malicioso que se formou no rosto do peixe ao encarar a tela.

— Ah, então quer dizer que vossa graça abdicou, hã? — Undyne sorriu com desdém para a antiga governante. — Onde estão os papéis do divórcio?

Toriel arregalou os olhos em espanto por um breve instante, mas voltou à sua expressão serena logo em seguida.

— Acredito que isso não seja de sua alçada. Você não é nada além de uma criança insolente que ousou invadir essas ruínas, MEU território, para tramar contra seu legítimo rei. Vá para casa, menina, e volte quando aprender que não se faz política com músculos e deboche.

— Heheheh. — Para a frustração de Toriel, Undyne riu. — Você não tem papel nenhum, né? — O peixe virou a tela de seu celular para a rainha, mostrando o arquivo que Alphys tinha acabado de lhe enviar: um artigo sobre o misterioso desaparecimento Toriel e sua total ausência de rastros. — Olha, velha… Política não se faz com músculos nem com deboche. Se faz com burocracia. Você não abdicou de nada, só fugiu feito uma covarde, não deixou nem pista! Sem abdicação. Sem divórcio. Sem mudança de nome. Então, pelo que parece, você ainda É a rainha do subsolo. E você vem comigo.

Com incrível agilidade, Undyne respondeu à mensagem antes de guardar seu celular. “ALPHYYYYS! Funcionou! A velha tá surtando! Você é um gênio, minha lagartinha nerd mais fofa desse mundo! Te amo! ♥” — Dizia o breve texto.

Toriel ficou em silêncio por algum tempo. “Maldita seja, Alphys…” — Pensou. Ela definitivamente não esperava por isso. Após um longo suspiro, a cabra se virou para fitar a cidade abaixo novamente.

— Divorciada ou não, eu não vou voltar.

— Então te levo à força! Não vou sair daqui sem você!

— Huhuhuhuh… — Toriel falhou em conter o próprio riso — E depois? Vai me amarrar ao trono e me obrigar a reinar? Como pretende fazer isso?

Undyne franziu o cenho. Ela não havia pensado nisso. Tudo o que ela queria era um aliado político contra Asgore, e que pudesse reinar em seu lugar. Alguém merecedor do título de “Governante do Subsolo”. — “Da próxima vez deixo Alphys planejar tudo… Ela é bem mais esperta que eu…”

— Por favor, vá embora, criança.

— Para de me chamar de criança!

— Então pare de agir como uma e vá pra casa. — A voz de Toriel passou de seu habitual tom sereno e gentil para um pouco usual tom severo e frio.

— ‘Cê não me ouviu? Eu disse que não ia sair daqui sem você! Eu cheguei muito longe pra voltar de mãos vazias! — A amazona disse, enquanto preparava sua lança. “Às vezes é preciso agir, não pensar!” — Mas fica fria, velha… Eu vou tentar não te machucar… Muito.

— Criança tola. Então, prefere que as coisas se resolvam do modo mais difícil…

Subitamente, uma parede de chamas se ergueu ao redor de Undyne, encurralando-a no centro de um círculo de fogo. Com reflexos rápidos, a amazona refletiu uma bola de fogo com sua lança momentos antes que esta pudesse atingí-la. “Essa foi por pouco…” — Pensou. — Eu não vou perder pra uma velha, mesmo sendo a rainha! EU SOU O MONSTRO MAIS FORTE DO MUNDO!”

Undyne ergueu a mão livre e nela conjurou uma grande lança de gelo. Arremessou-a com toda sua força em direção à Toriel, mas a lança, apesar de rígida, derretera contra a parede de fogo, antes que pudesse atingir seu alvo. O peixe girava sua lança nas mãos, tentando abrir caminho até Toriel, mas quando finalmente consegue escapar das chamas furiosas a rainha não estava mais lá.

— HA! TÁ FUGINDO DE MIM?! — Undyne sentia um leve aumento na temperatura do ar vindo de seu lado esquerdo, e mesmo sendo seu lado cego, conseguia sentir a aproximação de um projétil.

Com um rolamento, Undyne desviara bem a tempo: uma imensa coluna de fogo passava por cima de sua cabeça, incendiando uma das poucas pilastras que ainda resistiam ao tempo naquelas ruínas decadentes. “PUTA MERDA! ELA TÁ TENTANDO ME MATAR?” — Undyne nunca vira tanto poder; nem mesmo Asgore conseguia conjurar aquela quantidade de fogo sem graves consequências à sua Alma.

Conforme a temperatura aumentava, a fumaça cada vez mais espessa e escura tornava difícil enxergar, e quase impossível respirar. Undyne sentia o aço de sua armadura aquecer cada vez mais, ao ponto que se tornara impossível adaptar sua temperatura corporal. Ainda tentou investir contra a cabra, mas não demorou muito até que começasse a se sentir tonta e precisasse se apoiar em sua lança para evitar um desmaio. A densa fumaça irritava seus olhos e suas guelras, fazendo-a tossir intensamente.

— Eu lhe disse para ir embora, criança. — Mesmo no meio daquele inferno de fogo e fumaça, a silhueta de Toriel se aproximando era perfeitamente reconhecível. — Deveria ter me escutado.

— Eu nunca… Desisto… — O olho de Undyne lacrimejava, extremamente irritado pela fumaça.

Antes que pudesse se levantar, a amazona sentiu o impacto das mãos flamejantes de Toriel no peito de sua armadura, lançando-a para trás. Seu corpo bateu contra o parapeito de mármore da sacada, que imediatamente se quebrou sobre seu peso, lançando-a em queda livre até o rio. O toque gélido da água fora um alívio; o peixe abriu bem suas guelras, respirando profundamente, deixando a água lavar toda a fumaça de seus pulmões. Sentindo como se tivesse nascido de novo, nadou de volta até a costa gelada de Nevada.

— Merda… MERDA!! Aquela bruxa filha da puta! Ah, mas o mundo vai ADORAR saber onde você se esconde, sua VACA!