O Conto da Piedade

Capítulo V — Flor Fantasma


Na manhã seguinte, Toriel e Chara fizeram um rápido café da manhã e partiram para as ruínas à procura do colar perdido da garota. Levaram algumas horas para cobrir todo o caminho que Toriel fizera da caverna até sua casa, mas nada encontraram.

— Mas que droga! — Praguejou Chara, espalhando um bocado de folhas secas que se aglomerava em pequenos montes nas ruínas. — Como eu fui perder aquele cordão? Foi presente do meu pai, a única coisa que me restou dele! Como eu sou burra!

A menina se sentou no chão e escondeu o rosto entre os joelhos, desamparada.

— Não foi culpa sua… Você se acidentou… Nós vamos encontrá-lo, minha criança. Eu prometo. — Toriel se ajoelhou ao lado da humana e acariciou suavemente sua cabeça e ombros.

— Obrigada. — Chara lançou a Toriel um triste sorriso, e se pôs de pé para continuar sua busca. — Sabe… Eu não sou mais criança, então… Bem… Não precisa me chamar assim.

Chara achou que uma mudança brusca de assunto ajudaria a aliviar o clima pesado e melancólico que se formava entre as duas. Ela não gostava de chorar, muito menos de chorar na frente dos outros; por isso tentava sempre manter conversas leves e engraçadas. Mesmo nos momentos de maior dificuldade ela conseguia distrair a irmã com suas baboseiras e até fazê-la sorrir, e isso fazia com que cada dia valesse a pena ser vivido.

— Não é uma criança? — Toriel encarou a menina por um tempo, pendendo levemente a cabeça para o lado. Chara parecia uma criança para ela. Um pouco mais alta que o normal, mas ainda assim uma criança. — Quantos anos você tem, meu bem?

— Quinze. — Disse, cheia de orgulho.

— Quinze? — Toriel riu. — Isso é idade adulta para os humanos?

— Bem… Quase. É adolescência, na verdade. — Chara deu de ombros. — Não é mais infância, de qualquer maneira.

— Tudo bem, tudo bem. — Toriel ergueu as mãos em frente ao corpo, como em uma rendição. — Não vou mais chamá-la de “criança”. A partir de agora, é “senhorita adolescente”.

— Credo. Não, prefiro “criança” mesmo.

As duas riram, mas logo o cansaço levava embora a euforia da brincadeira. Vendo o desânimo da menina, Toriel segurou sua mão e a levou para próximo de um córrego, para beber água e descansar.

— Não fique assim, meu bem… Não podemos desistir ainda. Mesmo se não o encontrarmos hoje, eu prometo que voltamos amanhã, e depois de amanhã, e depois de depois de amanhã, e todos os dias! Vamos revirar cada cantinho dessas ruínas até acharmos! E quando voltarmos pra casa, posso te ensinar a fazer torta de chocolate!

Aquilo fez a menina sorrir.

— Obrigada, Toriel.

— Sabe, você pode me chamar de “mãe” se quiser. Era assim que seu pai me chamava.

— Se meu pai te chamava de “mãe”, eu não deveria te chamar de “vovó”?

— “Vovó”? — Toriel franziu o cenho, entreabrindo os lábios em uma expressão de choque, e então soltando uma risada nervosa. — Hahaha! Não, não, não, minha criança, eu não acho que eu seja tão velha assim. “Mamãe” já está bom.

— Mas a mãe do meu pai é a minha avó. Né?

— Err… — Toriel estava bem ciente do peso de sua idade, mas isso não significava que se sentia confortável em ser lembrada disso por terceiros. Precisava de uma saída rápida. — Ali, procure naquele monte de folhas, eu vou olhar na caverna.

“Ué… Falei alguma coisa errada?” — Pensa Chara, mas logo voltou sua atenção ao que realmente veio fazer ali: procurar seu cordão.

Apoiou-se nos joelhos e revirou as folhas secas o mais avidamente que seu braço enfaixado permitia. Era constantemente atormentada pela sensação de que estava sendo observada, mas nada via ao olhar ao redor; sua visão periférica, no entanto, denunciava a presença de um grande vulto branco à sua esquerda. O susto quase a fez cair no chão, tamanha a pressa com a qual se levantou.

— T-Toriel?! — Gaguejou, e engoliu em seco. Não havia mais ninguém ali. Fechou os olhos e respirou fundo. — Tudo bem… Foi só minha imaginação… Só minha imaginação…

Quando abriu os olhos, levou outro pequeno susto: Flowey desabrochava em meio às folhas, bem à sua frente.

— E aí! Hehehehe… Tá devendo é?

— Que? Ah, me deixa em paz!

— Ou será que viu um fantasma? As ruínas estão cheias deles… Provavelmente dos outros humanos que caíram aqui. Todos eles tiveram mortes horríveis, não me admiraria que ainda assombrassem o lugar…

— Para com essa merda! Tem nada melhor pra fazer não? Sei lá, vai comer uns insetos, ou criar raiz em algum lugar!

— HAHAHAHAHAHAHA! Olha pra ela, a pobre humana com medo de fantasmas!

— Vai se fuder.

— Nossa, que grosseria. Pelo seu humor, ainda não deve ter achado aquele colar idiota. — A flor sorri em desdém.

— É. Porque você deve ter roubado. Me devolve! — Chara estava furiosa. Nunca foi difícil tirá-la do sério, mas Flowey tinha o poder de fazer isso com apenas duas frases.

Ela não sabia com certeza se ele realmente havia roubado seu colar, mas a condescendência da flor era no mínimo suspeita. Na pior das hipóteses, poderia tentar forçá-lo a procurar o colar. Na melhor, nunca mais o veria de novo.

— É o que? Pirou? Por que eu iria roubar o seu colarzinho inútil?

— Não sei, você parece que gosta de me irritar. Pois bem, já conseguiu. Devolve.

— Ha! Você não é tudo isso, queridinha. Eu tenho mais o que fazer.

— Não, não tem. Se tivesse, não estaria aqui me aporrinhando. Você ROUBOU o meu colar! Devolve AGORA!

— Você é louca. Até porque… Achado não é roubado, tolinha! Hahahahaha! — Debocha Flowey.

— Seu ladrãozinho filho da mãe! Eu sabia! Já não basta ter roubado meu celular, agora roubou meu cordão!

— Como é que é? Eu fiz o favor de DEVOLVER aquela porcaria, dá pra demonstrar um pouquinho de gratidão?

— É bom devolver meu colar também!

— Além de burra você é surda? Quantas vezes vou ter que repetir que não peguei porcaria de colar nenhum?

— DEVOLVE! — Chara arrancou Flowey do chão com a mão boa, enquanto a mão enfaixada tentava arrancar suas pétalas, que não saíam por nada. — DEVOLVE MEU COLAR!

— AI! PARA! ISSO DÓI! ME SOLTA, SUA MALUCA! — Flowey bradava e se contorcia, tentando se livrar do aperto das mãos da humana.

— Olha só, parece que você não é tão “fantasma” assim! — Chara rangeu os dentes, tentando arrancar as pétalas de Flowey, mas estas estavam muito mais presas que as pétalas de flores normais.

A flor de repente cuspiu uma semente, acertando em cheio sua testa. Frustrada, Chara o jogou no chão e o pressionou sob um dos pés. Flowey gritava e tentava se desvencilhar, mas a humana o esmagava com toda sua raiva.

— Chara? — A voz de Toriel vinha da entrada da caverna. — O que houve?

— Essa flor idiota roubou meu colar! — A jovem enfurecida apontava para Flowey, mas este apenas sorriu cinicamente.

— Flor? Que flor? — Toriel franziu o cenho, olhando na direção que a menina apontava.

— Essa flor! — Levantou seu pé, e Flowey soltou uma risada. — Tá rindo de que?!

— Chara, meu bem… Você deve estar exausta. Vamos, vamos pra casa… Podemos comer algo e descansar, amanhã procuramos novamente.

— O que? Não, eu não vou sair daqui até esse maldito devolver o meu colar! — A risada de Flowey agora era uma gargalhada descontrolada. — PARA DE RIR!

— Mas você é muito estúpida! Não percebeu ainda? A única que pode me ver e ouvir é você.

— Chara, minha criança… — Toriel envolveu gentilmente os ombros da menina com as mãos. — Não há flor alguma ali. Você passou por muita coisa… É doloroso perdermos algo que é tão importante para nós. Podemos voltar quando você melhorar. Não há mais ninguém nessas ruínas, seu colar está aqui em algum lugar, você o terá de volta, eu prometo.

— Mas… Mas… — Chara mordeu os lábios a risada de Flowey ainda ecoando pelas ruínas. Estava derrotada, se sentindo uma idiota. Agora certamente Toriel a achava louca, e nada podia fazer a respeito a não ser seguí-la de volta para casa e nunca mais tocar no assunto.