Em casa, ao deitar na cama, fiquei relembrando Matheus falando comigo. Suas palavras incertas mas decididas ainda me faziam corar. O medo com que ele estava, mais a certeza de que aquilo era o certo. Eu ainda não entendo o que me fez recusar o beijo. Eu poderia ter beijado ele, isso não foi problema com outros garotos, que não foram muitos. Mas Matheus estava apreensivo, senti tristeza em sua voz e aquilo me consumia a cada segundo que passava. Eu não acreditei que tinha deixado escapar o que eu queria há tanto tempo.

Domingo, o dia era ensolarado. Nem parecia outono. Eu levantei e fui tomar banho. Depois percebi que já passava do meio-dia e corri a cozinha para ir almoçar. Meus pais não estavam em casa, tinha um bilhete na geladeira:

“Filho, fomos à casa de sua tia, Carol. Voltamos à noite.
Tem comida na geladeira, se sentir fome esquente no forno de microondas.”

Como foram na casa da tia Carol? Hoje era meu aniversário, como não podiam estar lá? Eu fui tomado de uma fúria tão grande que acabei quebrando um copo na mão. Corri até o banheiro, onde eu lavei com bastante água, não foi um corte tão fundo, mais doía muito. Eu fiz um curativo rápido e voltei pra cozinha, pra recolher os cacos que estavam no chão. Eu tinha perdido toda a fome, fui pra sala liguei a TV e lá fiquei quase até às seis da tarde. Eu na vou negar, eu estava triste. Meus pais não estavam em casa, ninguém havia me ligado, meus amigos que provavelmente fariam alguma coisa estavam mortos e no dia seguinte eu teria que ir até a delegacia. Comecei a chorar compulsivamente, me sentindo sozinho no mundo. Vinha-me a mente imagens de Júnior, Rebecca, Andréia, Monica, João. Até mesmo do tonto do Ricardo que era uma das pessoas mais chatas do mundo. Eu recordava das brincadeiras, conversas jogadas fora na noite. O dia em que eles ficaram bêbados e Andréia e Rebecca se beijaram na frente dos meninos. A expressão de excitação na face deles era cômica. Éramos tontos às vezes, éramos adolescentes e felizes.

Quase sete da noite, e eu ainda teria que me arrumar. Por mais que ninguém tivesse me dado atenção, eu não podia deixar de ir naquela festa que Matheus havia me convidado. Iria ser a pior festa da minha vida, mas eu faria o que estava fazendo há tempos, seria diplomático, mesmo sofrendo.

Depois do banho eu coloquei uma roupa toda preta, e meu tênis favorito. Sequei o cabelo com o secador e o ajeitei, não iria adiantar, pôs logo percebi olhando pela janela as árvores se mexendo, sinal de que o frio ia permanecer a noite toda. Joguei um casaco escuro nas costas, desci até a cozinha e deixei um bilhete na geladeira avisando aos meus pais aonde eu tinha ido. Então sai e vi o sol se escondendo a minha frente, e atrás de mim uma escuridão total. Não havia estrela alguma no céu e aquilo na minha cidade significava chuva.

Fiz o mesmo caminho que no dia anterior quando fui para a praça da cidade que ficava pertinho. Lá eu iria pegar um ônibus e ir até a casa de Matheus. Não tenho muita coisa para dizer do caminho, já que eu estava focado em outras coisas. Muitas eram as lembranças que vinham a minha cabeça e uma delas naquele momento que me atormentava era o fato de meus pais terem sumido. Eu sou assim, vivo cada sentimento de uma vez, talvez um grande dom que eu tenha. O complicado é que quando as pessoas sofrem tudo, aquela dor logo passa, eu não consigo ser assim. As minhas incertezas, dúvidas e sofrimentos demoram pra acabar, e quando somem, logo tem outra batendo na porta.

No ponto de ônibus tinha uma senhora que me pareceu muito simpática, quando perguntou que horas que era.

– São 18:22! – eu disse a ela

– Ah, eu creio que perdi o ônibus então, vou me sentar e esperar pelo próximo. Muito obrigado meu queridinho.

Ela sentou no banco do ponto e ficou lá, estava toda agasalhada com roupas de lãs. Resolvi ficar afastando por ter alergia a lã, mesmo ali naquela distancia eu corria o risco. Aquilo era horrível. De vez em quando eu a pegava me fitando, mas não com um olhar de curiosidade, e sim de interesse, como se ela nunca tinha me visto antes e tivesse gostado de mim. Era uma sensação estranha, mais não desagradável. Não tardou até o ônibus com o destino que eu ia chegasse, ao entrar dei uma piscadela pra velha senhora e ela retribuiu com um largo sorriso. Então paguei o valor da passagem e fui até o fundo do ônibus aonde eu sentei e lá fiquei, com a cabeça encostada na janela, observando a rua para me certificar de que não iria ver nada de diferente.

Eu respirava fundo, conforme percebi que o ônibus se aproximava da onde eu teria que descer e que lá estaria todo o pessoal da escola, na realidade amigos de Matheus, não meus. O ônibus dava uns solavancos de vez em quando, o que me deixava assustado, mas nada de tão sério, era um ou outro buraco que o motorista tentava desviar.

Eu levantei e puxei a cordinha que tinha no teto do ônibus, uma luz acendeu em cima da porta que eu já estava parado em frente, esperando abrir para eu sair. Ele parou e eu desci, e ainda tinha que andar mais uns dois quarteirões até chegar à casa de Matheus.

Era estranho eu falar “A casa de Matheus”, sendo que eu sempre falava “A casa de Júnior”. Nesse momento pensei como eu iria reagir quando visse Matheus beijando Aline, e o quanto eu iria me sentir um fracassado sabendo que um dia antes do nosso aniversario ele queria me beijar e eu havia dito não. Virei os dois quarteirões e logo avistei um monte de gente em frente a uma casa, com muros altos. O grande portão estava aberto, havia alguns carros estacionados ali e algumas pessoas já bêbadas.

– Gente inútil! – eu disse.

Continuei seguindo e logo vi Aline, saindo da casa olhando para todos os lados, parecia preocupada. Ela sempre se vestia muito bem, desta vez com uma calça preta e uma blusinha rosa. Não entendi como ela agüentava aquele friozinho que estava fazendo.

– Kayo, até que enfim você chegou! – disse ela, vindo até mim. Correndo com certa dificuldade por conta do salto alto.

– Desculpa pelo atraso, eu acho que eu perdi o ônibus. – ela me abraçou.

– Parabéns, e que este seja um ano repleto de felicidades em sua vida! – disse ela cordialmente.

– Obrigado, Aline. – eu disse retribuindo o abraço.

– Vamos entrar, tem surpresa pra você.

Como eu odeio surpresas, é uma sensação ridícula de você talvez receber algo e se não gostar ter que disfarçar para não deixar ninguém chateado. Apesar de que naquela altura eu já não me importava tanto com o que as pessoas iriam sentir. A minha decisão era ficar o menos tempo possível.

Entrei então na casa de Matheus, e algumas pessoas me olharam, outras gritaram – “Parabéns Kayo”, eu apenas os olhava e dava um breve sorriso. Aquilo estava me deixando cansado.

O grande jardim da casa estava cheio de bexigas coloridas, mesas por todos os lados e obviamente, um bando de adolescente no cio e bêbados, curtindo ora rock, ora funk, ora música eletrônica. Uns se beijava e outros apenas azaravam. Tive a certeza que uma menina de cabelos louros me olhava de uma forma encantadora de mais, mais não fiquei atento a ela. Estava mais preocupado com a tal surpresa.

Aline me conduziu para dentro da casa de Matheus, que também estava cheia de gente, indo e vindo, trombando em nós a todo o instante. Eu pude ouvir mais alguns parabéns e então chegamos a sala de estar onde estavam os pais de Matheus com os meus, minha tia Carol que é irmã de minha mãe, e mais alguns adultos estranhos.

Tenho certeza de que achou que iríamos esquecer-nos de você, não é mesmo filho? – disse minha mãe, vindo até mim – Parabéns, meu anjinho. Como eu te amo. Você foi à coisa mais linda que aconteceu em toda a minha vida.

– Eu sei mãe! – aquilo era tão cabuloso, mais não era algo que me surpreendeu.

Logo depois dela, e muitos beijos depois, veio meu pai, minha tia e então logo os pais de Matheus que me deram um forte abraço. Carla, mãe dele, chorava no meu ombro e disse que aquele seria um dia que ficaria lembrado.

– Eu sei que é complicado demais pra você, mais imagine o quanto foi a nós. Júnior era muito ligado a você, vocês tinham uma amizade que causava inveja a muitas pessoas, e eu quero que saiba que com toda certeza, lá do céu ele lhe deseja felicidades, assim como nós aqui de casa. – disse ela emocionada. Eu já não esbocei nenhum sentimento.

– Obrigado dona Carla. Eu agradeço!

O pessoal então limpou as lágrimas e eu ali, totalmente sem graça disse que iria procurar algo para beber. Fui até a cozinha e peguei um refrigerante. Tomei rapidamente, pois estava com sede. Fui até a porta da cozinha que dava ao fundo da casa, onde as luzes de fora estavam bem fracas, percebi logo que ali seria o local aonde o pessoal iria para namorar. Fiquei ali olhando a enorme árvore no canto da casa, onde eu e Júnior ficávamos muitas vezes conversando em cima dela. Como eram divertidas aquelas tarde com o pessoal. Como eram legais. Como eu sinto falta disso.

– Eu acredito que o meu presente você não vai aceitar! – disse uma voz no meu ouvido. Quando me virei era Matheus.

– Que susto!

– Desculpas, eu vi você olhando para o nada e não resisti.

– Tudo bem!

– Que bom! – disse ele. Os olhos dele me penetravam e aquilo me deixava envergonhado – O meu presente eu queria dar ontem, mais você não quis. Então resolvi lhe dar outra coisa.

Ele tirou do bolso um papel dobrado e me entregou.

– Leia com carinho, e eu espero uma resposta sua em breve!

– Vou ler! – eu não tinha outra coisa para falar. Só não entendia o porquê eu o hesitava se o queria tanto.

– Matheus aí esta você, eu estava te procurando. – era Aline.

– Estava dando os parabéns ao Kayo, alias fazemos aniversario no mesmo dia.

– Sim, pena você ser o mais velho! – eu disse rindo.

– O bom é que agora posso ir e voltar com meu carro. Só tirar a carta em primeiro lugar!

– Sim!

– Está bem, vamos Matheus, tem gente te esperando lá fora.

– Estou indo! – ele me olhou, com aqueles olhos belos e azuis, como se estivesse dizendo que não queria ir.

– Eu ficarei bem.

Ele se virou e saiu de mão dada com ela. O cheiro dele penetrava em mim, me deixando indeciso do que fazer. Eu estava com a carta na mão, mais não iria dar para ler ali. Coloque-a no bolso e fui até a sala, onde meus pais estavam.

– Eu estou indo embora!

– Aconteceu alguma coisa? – disse Carla.

– Não, estou com dor de cabeça.

– Tome algum remédio então! – disse ela

– Não sou de tomar remédio, obrigado!

– Então creio que devamos ir também...

– Não se incomode pai. Ainda tem hora de ônibus, quero caminhar um pouco, sei lá! Preciso pensar.

Todos continuaram com aquele olhar estranho, tentando entender o real motivo para que ir embora.

– Amanhã será um dia incomum, espero que ocorra tudo bem! – disse o pai de Matheus.

– Vai sim, senhor Augusto. – eu disse.

Despedi-me de todos e sai tentando não ser percebido. Ao chegar à esquina vi um carro parando ao meu lado. Era Matheus.

– Carona? – disse ele.

– Não acha que pra um machão como você tenta mostrar, você está dando muito mole?

– Não me importa o que pensam. E por vias das dúvidas você é meu amigo. Não vejo maldade em levar um amigo até sua casa.

– Até um mês atrás você me odiava.

– Eu nunca disse que odiava você... mas é diferente agora. Entre!

Dessa vez não hesitei e entrei no carro.

– Guardou a carta? – disse ele quebrando o silêncio.

– Está no meu bolso!

– Não leu ainda?

– Não!

– E não vai ler?

– Quando eu chegar à minha casa, talvez!

– Por que não lê agora?

– Por que você está do meu lado! E seria estranho.

– A única coisa estranha aqui é você!

– Obrigado!

– Não era para agradecer!

– Desculpa.

– Também não é para se desculpar.

– Então está bem!

– E não se conforme também!

– Então eu vou ficar mudo!

– Esse papo esta ficando chato!

– Esta sim! – eu dei risada.

Aquilo sim foi loucura! Era como se tivéssemos recebidos um roteiro do que dizer e estivéssemos ensaiando. Ele desligou o carro e desceu. Fechou a porta e encostou-se. Eu fiz o mesmo, só que fui ao lado dele.

– Sinto falta do meu irmão! Ele era um abestalhado, mais ainda sim uma boa pessoa.

– Também sinto!

– Você nunca vai me dizer se vocês tinham alguma coisa, não é mesmo? – ele perguntou.

Eu engoli seco.

– Como assim?

– Vocês eram muito chegados, não sei dizer ao certo. Sempre tive um pouco de ciúmes. Desde o primeiro dia que eu vi você, quando chegamos à escola.

– Ciúmes? – eu indaguei.

– Sim. Você foi o único que despertou isso em mim. Essa sensação de confusão, de incerteza. De não saber o que é certo ou errado. Eu gosto de mulher, mas... não sei o que tem em você que me despertou essa coisa louca. Essa sensação de desejo. De querer você perto de mim.

“E quando eu percebi que algo estava estranho, comecei a tratar você da maneira como eu sempre te tratei. Fazendo intrigas entre você e meu irmão, essas coisas. Eu tinha medo de que o mesmo que eu sentia por você, meu irmão pudesse sentir. Eu tive medo de perder você pra ele. É estranho demais isso que eu estou te falando. Vivemos em um mundo que isso é pecado, é errado. Mais só se sabe o que realmente é, quando se passa, quando se sente isso.

“Uma semana antes de meu irmão morrer naquele acidente, ele veio até mim e me contou um pesadelo que teve. Ele disse que no sonho você estava morto. Que tinha se enforcado. Ele acordou desesperado, suado. Estava com medo e disse que você era a pessoa mais importante na vida dele. Eu fiquei com aquilo na minha mente. Ele disse que você era importante, mais não me falou o porquê dessa importância. Eu me pergunto isso até hoje. O que você tem Kayo que faz com pessoas como eu, despertem um amor tão único? O que você faz pra isso acontecer. O que?”

Aquilo tinha sido como uma facada. Saber que ele sentia isso por mim era algo irreal, e principalmente a visão que ele tinha de estar gostando de alguém do mesmo sexo.

– Matheus, essa é uma pergunta que eu não posso responder. – eu disse, me virando a ele, agora frente ao seu belo corpo, seus belos olhos – Quanto a Júnior, éramos amigos, pois partilhávamos dos mesmos segredos, das mesmas ambições. Éramos realmente amigos, amigos fiéis um ao outro. Se alguém via isso de uma forma diferente, não era importante para mim e ele saber. Sabíamos do que gostávamos. E Júnior era muito hétero... ele era apaixonado pela Érika, e ela simplesmente sumiu da escola. Eles tinham contato por e-mail, enfim. É apenas isso!

Matheus parecia não ouvir nada do que eu estava falando, seus olhos azuis refletiam suavemente a luz da luz e ele parecia hipnotizado.

– Kayo, você poderia me dar um beijo agora?

– Matheus, por favor! - mais uma vez a hesitação foi maior.

– Por que não? Dê-me um único motivo.

– Eu não...

– Não me diga que você não quer, e que não curte! Isso não vai valer como motivo.

– Não é isso...

– Diga!

Ele estava mais próximo agora.

– Diga! – suas mãos estavam em minha nuca, acariciando meus cabelos. Eu pude sentir agora sua respiração saindo de sua boca, quase se encostando à minha. - Vamos, diga!

Quando percebi já estávamos nos beijando. Algo doce, delicado. Com amor, talvez. Aquilo aqueceu meu corpo de uma forma tão suave, que conforme aquecia eu me arrepiava. Suas mãos em minha cintura me traziam para perto de seu corpo. Ele me envolvia num abraço mortal e desejavelmente aceitável.

– Sabe por que você não disse nada? – sussurrou ele no meu ouvido – Porque você simplesmente não tem motivo algum.