A cidade estava vazia, aparentemente. Eu conseguia sentir alguma coisa rodeando ela, algo terrivelmente cruel.

Foi quando eu reparei que alguns lobos estavam se aproximando, mas pareciam não estar muito preocupados comigo, e nem com meu soldado de fogo, eram dezenas deles, e estes deitaram e ficaram apenas me observando.

– Vamos! – eu disse ao meu soldado.

Então entramos no Museu de Assis, que estava escuro, apenas uma fina luz rodeava o balcão da recepção. Fui até e tentei imaginar aonde o Salão Dourado estava. Naquela altura, seria em que livro ele estaria. Logo me veio duas perguntas básicas: a primeira seria como Átimos havia encontrado esse Salão Dourado, e a segunda, será que a Taça estaria lá?

Sai dali, subindo as escadas até o terceiro andar do Museu, meu soldado sempre me acompanhando, ele estava me ajudando e muito, com seu brilho, que ia iluminando tudo.

– Tenha cuidado, não vá queimar os livros. – eu disse a ele.

Chegamos a uma pilha de livros, ao qual eu fiquei apenas parado e pensei no que fazer. Foi quando eu lembrei de como as coisas funcionavam no Museu.

– Salão Dourado! – eu disse, em alto e bom som. Nada aconteceu.

A minha frustração era evidente, já que estava pedindo ao colar, e parecia que ele não queria me ajudar nesse momento.

– Salão Dourado, qualquer material! – eu falei novamente.

Nada aconteceu. Pensei então que talvez eu estivesse procurando errado. Respirei fundo, tentei deixar a euforia de lado.

– Eu tenho o Colar do Parvo, e busco pelo Salão Dourado.

Nesse momento, acreditando que novamente nada iria acontecer, a pilha de livros a minha frente começou a se mexer, onde logo em seguida um livro se revelou, fazendo com que todos os livros se espalhassem pelo chão. O livro não veio até mim, no entanto, estava parado ali, no ar, como se algo o estivesse segurando.

Eu fui até o livro e o segurei, o abri e então comecei a folhear as paginas. O livro não tinha nome, sua capa era vermelha e de couro. Suas paginas em brancos. Mas bem no meio da pagina havia uma folha rasgada, com um desenho feito a lápis. Nessa folha, escrito a mão dizia:

Buscar pelo improvável sempre foi um ato de extrema crueldade que os próprios seres humanos buscam. A auto-piedade nunca e nem será algo aceito, por mais que seja difundido que o direito de fazer, seja permitido.

Eu descobri coisas horríveis sobre o meu passado, no entanto continuo a viver e tento buscar maneiras para que eu não caia na mesmice. De achar que sou apenas mais um sofredor.

Estamos enfrentando tempos difíceis e isso implica em guerras. Não só carnais como mentais, nós devemos ser mais cautelosos. Não ter medo, e sim fazer o que tem que ser feito.

Eu não acredito que seja algo de grande valia a minha vida. No entanto, eu pretendo vive-la, para que eu possa enfrentar os meus demônios. É horrível temer algo que não conhecemos, que não conseguimos nos dar bem, no entanto temos que enfrentá-los, doa a quem doer. Perder só faz parte de algo maior. E ganhar é apenas uma consequência.

Logo abaixo tinha o desenho de algo como uma sala, cheio de pilares. Indaguei-me se aquilo seria o tal Salão Dourado, no entanto não dava para ter certeza, já que o mesmo desenho estava em preto e branco. Imaginei o motivo daquela folha estar em um livro em branco, um livro que obedeceria apenas ao dito: Eu estou com o Colar do Parvo...

Eu resolvi então tentar. Toquei a figura lentamente e percebi que a mesma se mexia como o reflexo na água, quando uma leve brisa a toca.

– É isso então... achamos! – eu disse ao meu soldado, que estava do meu lado.

Lentamente fui colocando a mão dentro da figura até que quando percebi eu estava, sendo sugado para dentro do livro. Não era uma sensação estranha, era como se passássemos por um portal. Do outro lado, a cor ainda era preto e branco, até que um ponto começou a revelar sua cor, e seu tamanho expandiu.

Eu realmente estava no mesmo lugar que Átimos havia, me mostrado na visão. Um grande salão dourado e vazio, apenas com suas colunas, também douradas. No centro dela, aonde eu me encontrava, eu senti algo me tocar. Algo gelado que me virar me assustou. Era Átimos, com seus olhos vermelhos, pele branca e roupas negras.

– Como está? – disse ele, e logo em seguida fez um movimento com a mão e me jogou para perto da parede, onde eu bati com a cabeça. Nesse momento meu soldado se desfez.

Eu olhei para aquela figura estranha e aterrorizante me fitando, como se tivesse preparando para me devorar vivo. Logo a figura de Edvan ajoelhado, e encostado na parede do outro lado, estava Étimos, apenas observando.

– Oras, não é o grande Guardião do Colar do Parvo? Porque deixou-se ser abatido por um velho bobo? – disse ele.

– O que quer de mim? – eu perguntei.

– São perguntas tão fáceis de serem respondidas. Eu, sinceramente, nunca entendi o porque delas serem feitas...

– Talvez seja porque queremos ganhar tempo...

Eu me levantei e fiquei com o corpo em chamas, lançando contra ele uma rajada de fogo, que parecia afetá-lo. Depois eu parei, caindo de joelhos. Étimos havia me dado um soco no estomago, enquanto eu me concentrava em Átimos. Quando o fez, saiu e lentamente, com aquele ar de supremacia, ele foi até onde estava.

Átimos sorriu ironicamente.

– Meu filho, não havia necessidade, entretanto agradeço sua ação. – disse ele, olhando para o filho, que sorriu – Sabe Kayo, eu vou lhe dizer algo que muitos bruxos nesse mundo, e até mesmo os seus santos não-mágicos não fazem. Agradecer. Nenhum deles sabe o que é acordar pela manhã e agradecer por ter o que tem. Por ser o que. Então eles simplesmente aceitam o que é dito por outros, e perdem sua capacidade de lutar, perdem sua essência, perdem quem realmente são.

“E isso é realmente uma pena, pois quando não se é o que se é, você simplesmente se torna nada. E o que fazemos com o nada? Nós, o moldamos para que seja como nós queremos. Tem sido assim por tantas eras, e assim continuara sendo enquanto existirem pessoas que querem fazer com que você não seja você.

Algo muito parecido o que acontece agora. Pobre Edvan... um garoto que precisou esquecer o que era para ser aceito, e no entanto foi morto, por meras desconfianças, todas infundadas. Casou-se cedo com uma bela senhorita, no entanto amava um homem. Envenenado pela própria mulher por apenas acreditar no que os outros haviam dito.”

Ele ficou pensativo nesse momento, enquanto alisava os cabelos de Edvan. Aquele silencio foi muito revelador a mim.

– Você foi a paixão de Edvan?

Átimos me olhou, com lagrimas aos olhos.

– Quem sabe, talvez eu não seja? No entanto o que vale isso, se ele esta morto, e se eu também morri. Do que adianta acreditar que o amor pode superar tudo. Do que adiante ver todos vocês felizes. Ele foi tirado de mim, por conta do que os outros diziam, por conta do que acreditaram ser real, e então, quando morto e sepultado eu os matei. Infelizmente minha luta para encontrar a assassina de meu amado fora levada para um lugar tão distante, quanto o próprio inferno.

Estava explicado então. Há dois anos atrás nos perguntamos como teriam achado meu bisavô. Não tínhamos resposta alguma, apenas o pessoal do Os Vigilantes, supostamente sabia onde ele estava. O homem que minha mãe via em seus sonhos, talvez fosse Átimos, buscando por seu amor. Ele sabia onde estava Edvan, pois estava presente quando isso aconteceu. Ele tinha sido trazido antes por Étimos, e depois buscou pelo corpo de Edvan. Agora eu entendi o motivo pelo qual os bruxos traziam os mortos a vida. Traziam por amor, mais não sabiam, ou não se davam conta, ou até não se preocupavam em saber que o corpo ali, era apenas um corpo. Um corpo sem alma. Diferente de Ana Bela, que havia cometido suicídio, e sua alma estava presa no corpo, mas caiu no esquecimento, e ela mesma não havia se dado conta disso.

Átimos chorava, nesse momento, enquanto eu tentava entender as coisas. Encaixá-las para completar as lacunas.

– Antes de morrer, Edvan me contou sobre o Colar do Parvo, e que sua família o guardava, no entanto, antes de fechar os olhos ele não me disse aonde estava. Foram anos em busca do mesmo, eu precisava da minha vingança. Precisava matar a esposa de Edvan por ter destruído a minha vida.

– Mas ele nunca teve algo com você...

– Nunca... no entanto nós nos amávamos, e sempre estávamos juntos... mas tudo foi desfeito. Minha vida acabou... minha vida tinha que ter um propósito e então e corri, busquei e consegui o que queria.

A historia que Átimos estava contando, até poderia ser mentira, mais fazia sentido. O seu desejo por ser o maior bruxo do mundo, nem era motivado pela tal lei dos Ancestrais, e sim porque ele queria que as coisas mudassem. Ele queria apenas amar, e isso foi roubado dele. Logicamente que saber que perderia seus poderes e que não poderia fazer nada, sem ele, e sabendo da existência de um colar que lhe daria todo o poder que precisa-se, seria a grande questão de sua vida.

– O que tem nesse Salão Dourado? Porque me trouxe até aqui? – eu perguntei.

– Esse lugar é meu refúgio. É o meu santuário. É a minha morada, quando eu preciso simplesmente deixar de ser o que sou, para buscar forças... – Átimos olhou para cima, ainda alisando os cabelos de Edvan que permanecia imóvel, no centro do circulo, de joelhos – Eu o criei, e quando eu o consegui, eu o destruí.

– Conseguiu o que? – eu não acreditava que iria ouvir aquilo.

– A Taça do Erudito! – disse ele, me olhando, atentamente – Levante! – disse ele dando um leve tapa na cabeça de Edvan, que se levantou e saiu do circulo, se ajoelhando novamente.

Átimos fez um movimento com a mão, e com a outra retirou um punhal, onde cortou a palma da mão e fez pingar sangue no centro do circulo. Foram poucos os pingos, mais o suficiente para algo estranho acontecer.

Os pingos se tornaram poças de sangue, até cobrir o grande circulo, onde Átimos agora já estava do lado de fora. Daquela poça de sangue vivo, surgia então, completamente limpa uma singela taça de ouro, com rubis.

– Impossível! – eu sussurrei. Átimos deu uma medonha gargalhada.

– Realmente irônico não é? Você luta para saber onde estava a Taça do Erudito, e no entanto ela sempre esteve na mão de seu maior inimigo.

Como aquilo era possível? Como estava com a Taça antes de mim? Eu tinha o Colar do Parvo, eu é que deveria saber onde a Taça estava. Me senti terrivelmente culpado naquele momento, como se eu tivesse falhado.

– Como? – eu perguntei.

– Eu matei o rico da lenda, e peguei a Taça para mim. Talvez, por extrema coincidência eu estava no vilarejo onde eles se encontraram, e vi tudo o que aconteceu. Naquela época eu já buscava pelo Colar, e me aguçou saber que a sabedoria dos dois iriam ser postas a riscas. Felizmente eu não precisei pensar muito, pois o rico conseguiu fugir com ela, no entanto ele teve o desprazer de encontrar comigo. Foi quando o matei, e peguei a taça, e trouxe ate o Salão Dourado e o deixei aqui, guardado, apenas me esperando.

– Mas o Colar do Parvo tem a ligação com a Taça do Erudito... Adamastor era...

– O pai dos eruditos, sim eu sei!

– Pai? Não... ele não era o pai...

– Não deve conhecer tão bem a historia como ela realmente é.