O Colar do Parvo

No túmulo de Átimos


Para eles eu estava desmaiado, mais na verdade eu sabia o que estava acontecendo. Eu fui levado para algum lugar, mais eu sabia que ainda estava na mansão dos Taurinos.

Era um lugar escuro, com alguns archotes acesos nas paredes. A dedilhei e vi que era rochosa.

– Estou numa caverna! – eu disse a mim mesmo.

Eu não sentia brisa alguma, e não sentia a presença de ninguém. A sensação era de que eu estava sozinho ali. Até que eu ouvi um som, de correntes sendo arrastadas e logo em seguida um ranger, talvez uma porta. Continuei com os dedos seguindo as rochas, mesmo com dificuldade para enxergar com aquele fogo que trepidava nos archotes, cheguei próximo a um e tentei tirar do lugar. Não sabia se encontraria outro mais a frente, então com dificuldade consegui arrancar. Eu estava pisando numa terra estranha, sentia musgo, ou algo gelado entrando no meu tênis. Fui seguindo por um corredor, ainda ouvindo o ranger e as correntes até que mais a frente eu vi um ponto luminoso. E pensei, que aquilo pudesse ser uma visão, de alguma coisa que provavelmente fosse me ajudar a entender mais alguma coisa. Decidi seguir em frente.

Mais a frente, já com o ponto mais nítido, vi que cheguei a um hall, ou alguma coisa do tipo, havia uma porta escura que estava aberta, enorme e negra como o chumbo, do lado havia duas estátuas, homens com asas, olhos vendados e segurando cada um uma imensa lança, o qual era prateada. Passei por eles com medo de que fossem me atacar. Eu não sabia onde eu estava indo, mais algo dizia para continuar.

No corredor havia mais alguns homens como os da entrada, só que em posições diferentes, e ainda todos segurando as lanças. Aquela sala era mais iluminada, mesmo assim eu apenas enxergava o que estava a minha frente. As paredes ainda continuavam um segredo.

Eu pude ver ali na frente um trono, pelo menos algo semelhante a um. Ele era imenso e tinha outras lanças saindo dele, e mais dois homens iguais aos outros, um de cada lado. Eu já estava mais próximo quando ouvi um urro e logo depois algo voando passou pela minha cabeça. Joguei-me no chão e fiquei ali olhando. Era algo parecido com uma águia, só que terrivelmente grande e depenada, no seu dorso havia um homem de capuz e capa. Este desceu e ficou de frente ao trono, segurava um cajado feito de ossos humanos. O homem então tirou a capa e se mostrou um belo rapaz. Cabelos loiros e pele branca, um roupão comprido como um vestido, mas muito alinhado. A águia deitou do lado do trono e o homem apenas olhava a sua frente.

Então ele deu três batidas no chão com o cajado. O barulho era ensurdecedor, mais pareceu apenas a mim. Cheguei a tampar os ouvidos. Ali ainda, o homem ergueu os braços e depois reverenciou o trono.

– Salve Senhor Átimos, antes jogado ao relento, hoje mestre e poderoso. Acorde, ó senhor. Volte e nos salve do que nos foi ordenado.

Eu ouvi algumas batidas vindo debaixo do trono.

– Acorde ó poderoso senhor. Levante de sua tumba!

Logo pensei que eu estava vendo o dia que algum bruxo, acordou Átimos. Mais pensei em que Kauvirno havia dito, se um bruxo morto, for acordado ele se tornará um escravo. Mais as coisas que estavam acontecendo diziam o oposto.

– ACORDE! – gritou o homem. Aquele grito ecoou por todo o salão.

Pude ver então o que tinha nas paredes, quando várias tochas foram ascendendo e aqueles homens, as estátuas, ganharam vida e começaram a caminhar em direção ao trono. Eles passaram por mim, sem perceber que eu estava lá. As paredes eram feitas com ossos e crânios humanos.

– ACORDE Ó PODEROSO ÁTIMOS, ACORDE! – ainda gritava o homem.

As estátuas agora com vida batiam com as lanças no peito e batiam suas asas ao mesmo tempo. Ouve um tremor e então o trono explodiu. A grande águia então levantou assustada e se afastou. O homem ainda permanecia ali, rindo alto e louvando o seu senhor.

Após a explosão, eu ainda ali deitado, vi surgir um homem em meio aquela fumaça que fora sugada por seu corpo, e dela criou-se uma roupa negra e longa. Era Átimos, em estado pútrido, com buracos ali e aqui em seu rosto envelhecido, faltava-lhe um dos olhos e sua boca era terrivelmente grande.

– Quem é você? – disse ele com uma voz rouca e poderosa.

– Sou seu mais novo servo, ó senhor! – disse o homem loiro.

– Seu nome! – disse Átimos.

Os homens que batiam as lanças nos peitos pararam.

– Sou Étimos, senhor. Sou seu filho.

Átimos ficou ali parado o estudando por alguns segundos e então saltou da onde estava e foi até o homem.

– Quem garante?

– Meu sangue não nega a minha origem.

– Prove!

O homem então tirou algo parecido como uma adaga e cortou a palma da mão.

– Prove de meu sangue e saberá.

Átimos ainda o estudava quando subitamente agarrou a mão de Étimos e provou de seu sangue. O homem caiu de joelhos e começou a gritar de dor. O bruxo então parou de sugar o sangue do rapaz e algo aconteceu, seu rosto tomou forma, levemente. O olho que faltava pareceu se criar e seu rosto ficou mais humano.

– Meu filho! O primeiro de cinco. Aonde estão os outros?

– Estão mortos, meu pai!

– Mortos?

– Sim, ó senhor.

Átimos ficou olhando para o nada por algum tempo, como se algo viesse a sua cabeça. Depois olhou para Étimos, ajoelhado a sua frente.

– O que deseja, filho?

– Que restaure a ordem natural das coisas. Nós bruxos é que devemos mandar, não os mortais.

– Para isso eu preciso do colar. – Átimos ficou quieto por um momento e depois colocou a mão no peito – Aonde está o meu colar?

– Estão com eles!

– Ache-os, mate-os e o traga a mim!

– Estamos à procura deles, senhor. Não tem sido fácil...

– Então será, mais sem o meu doce colar eu não posso fazer muita coisa. Nem mesmo humano eu sou ainda. Apenas com meu colar.

– Eu sei, senhor! Peço gentilmente que nos ajude.

– Isso será uma honra! Se é guerra que querem, assim eles terão.

Então um filho de Átimos ainda estava vivo. Étimos era seu nome. Bem anormal pra minha época, normal para a deles. Nomes ridículos. Fiquei ali ainda parado e deitado.

– Atenção meus caros soldados, ganham a liberdade assim que ganho a minha. Busquem pelo Colar do Parvo e me tragam seu guardião. Seu sangue puro me dará a força necessária para libertar o poder do colar. Voem meus amigos, e busquem pelo guardião. VOEM! – gritou Átimos com os braços levantados.

Os homens então gritaram e bateram suas asas e voaram dali, lançando raio contra o teto da caverna, onde se podia ver a luz da lua e passaram por ela.

Tudo começou a ficar confuso depois disso. Tudo começou a ficar distorcido novamente. Eu olhei para Átimos e eu tive a certeza de que ele fez o mesmo e começou a vir em minha direção. Étimos olhou para mim também assim como a águia. Mas antes que chegasse perto de mim eu senti um puxão e minha visão ficou clara. No entanto eu não vi Matheus, meus pais, minha tia, Tereza ou os gêmeos, eu me vi novamente no ônibus, no dia do acidente.

Eu pude me ver de pé dentro do ônibus, olhei a minha volta e revi cada rostinho que estava lá, meus amigos e Júnior discutindo com a professora. No fundo, eu me vi com a cabeça encostada na janela, ouvindo música no celular, exatamente como aquele dia. Eu pude ver com clareza aquele outro eu mexendo a cabeça e procurando algo do lado de fora. Aquele teria sido o momento em que eu havia visto a ambulância. Vi-me perguntando a Andréia se ela tinha visto algo, e ela dizendo que não. Foi então que segundos depois o ônibus começou a balançar e eu vi vultos negros passando pelas janelas do ônibus e então todos começaram a gritar. O meu outro eu nem sequer se mexia, estava imóvel.

Em certo momento uma daquelas estátuas materializou-se dentro do ônibus, próximo ao meu outro eu, que estava desacordado, e me olhou com ódio, ergueu sua lança e tentou me matar, não conseguindo, pois uma espécie de escudo acabou me protegendo. Com raiva a estátua meio homem e pássaro bateu fortemente suas asas. Todos dentro do ônibus assistiam a tudo, sempre gritando e pedindo socorro, tentando se afastar daquela criatura maligna.

As asas dela causaram um tremor dentro do ônibus e a estátua lançou sua lança diretamente no motorista, que acelerou o ônibus e logo tombou, e atrás vinha um caminhão e carros.

Era explosão atrás de explosão, gritos de dor e meus amigos queimando nas chamas causadas pelo acidente.

Vi então, segundos após o acidente, alguém dentro do ônibus se aproximando de meu corpo, ainda protegido por aquele escudo invisível. Era ele. Júnior.

– Kayo... Kayo você está bem? – disse ele, entre os metais retorcidos esticando seu braço até mim.

Em volta, havia corpos queimando, e ainda pessoas gritando de dor, e mais explosões. A estátua surgiu e Júnior a olhou.

– Não faça nada contra ele, por favor... não com o Kayo...

E então a estátua fincou sua lança nas costas de Júnior, que agonizou por breves segundos, ainda tentando me alcançar. E eu ali, imóvel, desacordado.

E então eu estava novamente na sala da mansão dos Taurinos, com todos me cercando. Eu lembro apenas de ter visto minha mãe ao fundo chorando, abraçada com meu pai, e Matheus me abraçando.

O colar estava no meu pescoço.