– Tio Jô! – eu disse, indo até ele e o abraçando fortemente.

– Oh, oh, meu garoto, sou um homem velho, minha coluna é frágil... muito frágil! – disse ele colocando a mão na cintura e inclinando seu corpo para trás, eu pude ouvir um estralo.

– Eu pensei que...

– Pensou errado, o fato de eu ser velho não significa que eu não aguente o tranco... tenho muita energia para ser gasta ainda... – ele riu – tempo bons aqueles em que eu era apenas um velho!

Se tivesse como conjurar um enorme ponto de interrogação em cima da minha cabeça, tenha certeza, eu faria. Como ele relembra de quando ele era velho, se velho ele já é. Logo deixei esse pensamento de lado. Eu estava vivendo ao redor de bruxos, onde muita coisa era diferente. Eu deveria deixar meus pré-conceitos de lado e continuar com o que eu devia fazer.

– Tio Jô, você vai me ajudar, não? – eu perguntei.

– Infelizmente eu não poderei, pois não sou nenhum um pouco a favor do que irás fazer aqui, trazer um morto do mundo dos mortos... onde já se viu. Infeliz foi aquele que criou esse feitiço, pra mim uma maldição. Não, eu ficarei ali, afastado junto de Gaion apenas observando, e se for preciso eu estarei aqui. Isso é algo que você deve fazer, mais ninguém.

– Mas tio, eu não sei trazer um morto de volta a vida... eu nem ao menos sei o que devo dizer.

– Oras, você tem o colar, do que mais precisa? Eu vou até ali, não devemos perder tempo com indagações aos quais não nos trará nada de útil, apenas perderemos nosso tempo. Tenha cuidado, meu menino. Muito cuidado... aconselho a você, a trazer seu soldado, ele poderá lhe ajudar de alguma forma...

– Está bem! – logicamente que o traria, não passaria por aquilo sozinho.

Então o tio Jô se aproximou e ficou próximo a Gaion, que eu via apenas os olhos amarelos piscando. O castor ficou atento e sempre dava batidinhas leves na perna do velho tio Jô. Eu desviei meu olhar deles, e olhei para o chão. Tirei o colar do bolso, e o coloquei no pescoço. Fechei meus olhos e logo senti um forte calor dominar meu corpo. Ao abri-los eu o vi ali, sentado no chão, com as pernas cruzadas e apoiando a cabeça na mão, que jazia sobre uma das pernas.

– Quantos anos você pensa que tem? – eu disse. Ele apenas balançou os ombros e então se levantou – Crie mais uns três soldados e fiquem apostos. Qualquer coisa me tire daqui. Ali esta Gaion e o velho tio Jô – ele olhou para onde eu indiquei com os olhos – São nossos amigos.

Ele então fez sim com a cabeça. Eu respirei fundo e fechei novamente os olhos. Ao abri-los novamente, eu vi que meu soldado havia criado mais três soldados de fogo assim como eu havia pedido, todos me circulavam. Eu olhei para o céu.

– Vamos colar, estamos aqui... onde ela está... faça alguma coisa... – eu dizia pausadamente. Nada acontecia – Não esta acontecendo nada, tio Jô! – eu gritei.

– Concentre-se menino! – disse ele ao longe.

Eu fechei novamente meus olhos e tentei imaginar o que eu poderia fazer, e então uma leve intuição me tocou. Eu retirei o colar e levei até um pouco a frente da onde eu estava. Coloquei o colar no chão e me afastei. Os meus soldados pareceram ficar bastante ansiosos nesse momento. Olhando para todos os lados, inclusive para mim.

– Eu sei o que eu estou fazendo... eu acho pelo menos, que eu sei!

Nada acontecia, apenas um forte sensação de medo que pareceu preocupar demais meus soldados, e obviamente, logo depois a mim. Foi então que eu me deparei com algo que até então eu nunca tinha feito antes. Eu jamais usei magia sem o colar. Ele sempre estava comigo, inclusive para trazer os soldados, e no entanto, o colar estava longe de mim, fora do meu corpo, e meus soldados ainda ali fortes. Aquilo me deixou animado, enfim eu era um bruxo de verdade, e não precisava do colar para fazer qualquer coisa que um bruxo precisasse fazer. Eu sorri, mas logo em seguida meus sorrisos se transformaram em angustia, uma forte dor no estomago me fez vomitar novamente, e logo em seguida me encontrei desfalecido no chão, com a visão turva eu vi meu soldado se aproximar de mim, e entrar em pânico. Sangue saia de meus olhos, e de minha boca, eu tremia e meu coração parecia explodir. Comecei a gritar então de dor, uma dor tão forte que dominava todo o meu corpo. Eu me contorcia e me reprimia, e aquilo era horrível. Logo eu estava de joelhos, com os braços presos em meu corpo, e então cai no chão novamente.

O que estava acontecendo? Porque meus soldados não me tiraram dali? Onde estava tio Jô e Gaion, que disseram que iriam me ajudar? Em certos momentos, mesmo com a luz da lua muito fraca e minha visão distorcida, eu os via apenas olhando para mim. Aquela sensação, aquilo que estava acontecendo comigo, não era meu. Eles não viam aquilo, apenas eu.

Foi então que eu abri os olhos e vi que tudo estava normal. Eu não sentia dor alguma, e nem sentia mais o gosto de sangue em minha boca. Caminhei até o colar e me ajoelhei.

– Ana Bela Demétri, eu lhe trago a vida, para um acerto de contas, renasça então de sua tumba, e declare seus serviços a mim. – eu disse, como se já soubesse daquilo, de tão claro que saiu de minha boca.

E então uma mão saltou da terra e agarrou o colar, logo depois outra explosão, até que ali na minha frente estava uma mulher de vestido longos e negros, flutuando a uns dois metros do chão. Seu cabelos compridos e negros, contrastavam com a pele clara e semi pútrida. Aqueles olhos brancos, e sua boca que parecia estar amarrada. Foi a coisa mais horrível que eu já tinha visto em toda a minha vida.

– Acalme-se Ana Bela, pois eu sou o seu senhor, eu lhe trouxe do mundo dos mortos, e agora você me servira como escrava, por toda a minha vida. – aquilo era horrível dizer, mas de alguma forma eu sabia que era preciso.

Ela pareceu ir se acalmando, até que desceu e se ajoelhou no chão. Com a própria unha, que estava cumprida e quase enegrecida retirou a linha que estava em sua boca.

– Estou com fome, meu senhor! – disse ela calmamente, com voz enfraquecida. Mexia uma das mãos lentamente, enquanto com a outra segurava o colar.

– Não terá tempo de se alimentar, pois o que quero de você será breve.

– Me trouxe de um mundo escuro, ao qual estou há anos, e já quer se livrar de mim, meu senhor?

– Isso dependerá apenas de você!

– De mim?

– Sim.

– Então diga, meu senhor, o que deseja desse corpo sem alma?

Sem alma? Como assim sem alma? O que eu tinha feito de errado? Eu trouxera ela, no entanto ela diz que estava sem alma. Um corpo sem alma. Eu estava confuso.

– Onde está sua alma? – eu perguntei.

– Vagando, onde mais estaria, meu senhor?

– Vagando por onde?

– Eu não sei dizer, meu senhor... eu não sei onde as almas vagueiam.

– E não tem como buscar ela? Eu preciso de sua alma, não de seu corpo.

– Eu não sei meu senhor, eu não tenho coração... logo eu não tenho sentimentos... logo eu simplesmente não existo. Mas eu sinto fome, muito fome!

O que eu iria fazer? Olhei para meus soldados e eles pareceram me olhar da mesma maneira. Ao olhar para trás vi tio Jô e Gaion ali, me observando. Eu precisava pensar em algo urgentemente, mais em que?

– Poderia me devolver esse colar? – eu perguntei.

Ela virou lentamente a cabeça e fitou o colar, o avaliando.

– Mas este foi o presente que meu senhor acabou de dar, para que eu voltasse aqui, e já quer tirá-lo de mim?

– Esse colar não pertence a você, e sim a sua alma!

Ela ficou calada por um tempo, concentrada no colar, com a cabeça baixa, onde seus longos cabelos negros pareceram se transformar em um véu.

– Eu sinto isso! – disse ela – Eu sinto algo estranho ao olhar nesse colar. – ela me olhou – De quem é esse coração? De qual homem esse coração pertenceu?

Será que era isso?

– Esse colar pertenceu aquele que realmente te amou! – eu disse, calmamente. Ela ficou pensativa, e baixou novamente a cabeça.

Ao levantar eu vi que ela chorava, chorava de uma forma tão compulsiva que chegava a soluçar

– Meu Demétri... meu querido Demétri! Eu o trai ferozmente e hoje pago por esse pecado. Me perdoe, meu Demétri... – dizia ela beijando o coração no colar – Eu sinto tanto por ter feito você sofrer... por ter feito você chorar... eu amei demais você, e sempre te amei, meu Demétri... meu querido Adamastor... como eu te amei...

Era estranho demais ver aquela mulher sofrendo daquela maneira, eu não aguentava ouvir aquelas palavras. Eu o trai.... pago por esse pecado... eu amei de mais você, sempre te amei, como eu te amei. Não preciso dizer que eu comecei a chorar, pensando em Matheus. Corri até Ana e a abracei, docilmente. E ela retribuiu o abraço, um forte e caloroso abraço.

– Eu estive presa durante anos em lugar escuro... e hoje eu carrego o coração do homem que eu amei. – dizia ela, agora mais calma, ainda escorria lagrimas daqueles terríveis olhos brancos.

– Sente saudades dele? – eu perguntei.

– Sim, muitas!

– E como pode dizer que é apenas um corpo sem alma?

– Eu não sei explicar, mas eu não sinto alma nesse corpo...

– Ana Bela, veja só... você sente saudades, você chora... sua alma não saiu de seu corpo... ele ficou preso... talvez por algo que tenha feito...

– Eu o trai, e depois fui covarde ao me matar...

– Você se envenenou, não é?

– Sim!

Eu tive a sensação que aquelas dores no estômago seriam as dores dela, antes da morte.

– Ana Bela, eu vim até aqui para entregar o coração de Adamastor, no entanto eu acabei cometendo o maior erro de minha vida. Eu a trouxe de volta, e isso é pecado... eu sei que mais cedo ou mais tarde eu irei me arrepender do que fiz...

– Mas você é um garoto incrível, não fez nada de errado.

– Eu lhe trouxe a vida...

– E foi um grande favor... eu o trai com outro homem, mas o meu suicídio foi causado por desgosto... eu paguei pelos meus pecados, pois agora segurando este coração, eu sei que Adamastor me perdoa, por tanta humilhação que o fiz passar.

– Mesmo assim Ana Bela, eu a trouxe e agora você é uma escrava minha.

– Você desejou que eu viesse como sua escrava?

– Sinceramente não era o propósito.

– Então eu não sou... Porque acha que existe tantos espíritos rondando esse planeta? Alguns se fazem visíveis, outros não. Alguns podem vê-los, outros ouvi-los. Uns se escondem, e outros mostram seu poder. Muito são os mortos trazidos para serem escravizados, mas é preciso desejar mais que a própria vida para trazer um do mundo dos mortos. Por isso esse feitiço é tão arriscado. Pois para trazer a vida, um morto, você precisa de um pedaço do seu corpo...

– Um pedaço do meu corpo?

– Sim... eu confesso que não entendi quando o pedi, mas se bem me lembro umas das coisas que eu falei, era que eu estava com fome. Você disse que logo eu iria embora, e não me deu nada a comer. Se fosse sua intenção me escravizar me daria comida, no entanto, você me presenteou, e não existe um ato tão belo como esse.

– Eu agradeço... mas eu ainda estou perdido...

– Este coração era de um homem leal, fiel, de grande pureza, sabedoria. Um amante da natureza, de tudo o que sempre foi belo... no entanto, seus dias se acabaram como um simples plebeu, alguém sem muito valor. Assis era perverso e fazia tudo o que podia para conseguir as coisas. Sua idéia de mundo perfeito, era fachada, por sorte ele não teve tempo de desgraçar com a vida de muitos, seu legado foi seguido e existe até hoje. Ele fez com que todos odiassem Adamastor, para que a cidade se opusesse ao meu casamento com ele. Conseguindo isso, meus pais me entregaram a Assis, e não pude dizer não. Tive dois lindos filhos com ele,... logo não aguentei tanto angustia, devido a certas coisas que aconteceram..., e então me envenenei.

– Agora eu entendo! Você não traiu Adamastor, você foi obrigada a se casar com Assis.

– Traição ou não, eu não lutei para ficar com aquele que eu amava, mesmo depois de tantas juras de amor, um ao outro.

– Adamastor não sabia de nada?

– Nunca soube... talvez jamais saberá... mas eu sinto que tenho seu perdão. Ele era um homem bom, honesto... é de se esperar algo dessa magnitude, vindo dele.

Então ela não havia traído ele. Nada melhor do que ouvir dela mesmo, e melhor, ela segurando o colar. Talvez eu teria conseguido o que tanto queria, mas eu apenas saberia quando eu pegasse o colar em minha mãos.

Gaion e tio Jô ainda estavam lá, assim como meus soldados de fogo.

– Minha senhora, eu acho que a senhora não sabe que esta acontecendo em nosso mundo... muitas coisas mudaram desde que a senhora... bem... desde que...

– Desde que me matei?

– Sim.

– O que há?

– Este coração ao qual a senhora esta segurando, é chamado de O Colar do Parvo, e eu sou o Guardião dele. Só que existem bruxos que o querem, pois esse colar é de extremo poder.

– Átimos! – disse ela com fúria, entre os dentes.

– Existem indícios de que ele possa estar vivo...

– Não deve permitir, garoto... deve matá-lo! Destruí-lo! Imediatamente. – disse segurando em minhas mãos.

– Eu sei, mas eu não posso fazer isso sozinho... pois... eles estão a procura de outros dois artefatos. A Taça dos Eruditos, e A Espada do Soldado Derrotado.

– Nunca ouvi falar desses artefatos, confesso não poder ajudá-lo!

– Eu esperava que não pudesse, essas lendas vieram bem depois de seu tempo. No entanto o colar saberia qual a localização desses artefatos, mas há dois anos eles simplesmente não me ajuda em nada. Foi então que tivemos a ideia de trazê-lo até a senhora.

– Conseguir a confiança, não é? – disse ela.

– Sim, como sabia?

– Quando viva, eu já ouvia historias sobre tal colar...sempre soube de quem seria o coração... veja garoto... tome-o... imediatamente e vá. – ela me entregou o colar – Tenha cuidado... e... cuide-se... e... vá!

– Mas...

– Não tem mas, garoto... o colar irá te ajudar... mas deve ir agora... eu sinto algo estranho se aproximando... alguém de muito poder... alguém cruel, terrivelmente cruel.

Meus soldados se opuseram a minha frente e olharam ao céu.

– Menino, venha para cá, depressa... – gritou tio Jô

– Vá... agora! – disse Ana Bela – E agradeço por ter me liberto, sem me escravizar, sempre serei grata! – ela levantou e então voou longe. Onde estávamos sentados, surgiram rosas negras, muito lindas.

– Vamos menino... corra...

Deve correr, agora. O perigo está próximo! – disse uma voz a minhas costas.

– Quem disse isso? – eu me virei e a única coisa que eu vi, foi meu soldado de fogo – Eu ouvi você...

– Vamos, Kayo... venha rápido.

Corri então enquanto meus soldados ficaram ali. Coloquei o colar em meu pescoço, e me aproximei de tio Jô e Gaion. Fiz um gesto com a mão e os quatro soldados se unirão onde logo se dissipou e sumiram. Senti um forte puxão e depois um grito.

– MALDIÇÃO!