O Colar do Parvo

A poção da Revelação


Marcelo abriu um portal e logo passamos por ele. Surgimos numa cidade quase que abandonada, cheio de prédios pinchados e ruas esburacadas. O céu estava nublado e fazia frio, que deixava todo aquele ambiente mais amedrontador ainda.

– Fique atento! – disse ele.

– A Taça esta aqui? – eu perguntei.

– Lógico que não! Acha mesmo que eu deixaria algo de tanto valor num lugar como esse?

– Onde estamos?

– Essa cidade abriga bruxos loucos, antigos feiticeiros fadados ao sofrimento, ate a hora de suas mortes.

– E por quê?

– Trouxeram mortos-vivos, e foram condenados.

– Eles andam com os mortos-vivos pela cidade?

– Não, a Corte os separou, por isso estão loucos.

Conforme íamos andando, começamos a nos deparar com alguns bruxos andando pelas ruas. Homens e mulheres que parecia estar em seus próprios mundos, nada falavam, apenas com os olhares perdidos.

– Eles lembram vagamente de seus passados, e o que lembram é o lado negro de suas vidas.

– Se a corte souber que eu trouxe Bela...

– Provavelmente você será condenado a viver aqui.

– Mas como eu viverei aqui, se eu não vivo grudado a Bela? Estou louco e não sei?

– O seu caso é diferente, mas eles não avaliariam dessa forma. Obvio que existem bruxos aqui que não são tão loucos, alguns pegaram as loucura de outros, que se encaixavam exatamente em sua situação.

– Mas Marcelo, o que estamos fazendo aqui. Eu pensei que iríamos ate a Taça.

– E vamos, mas eu precisava vir aqui antes, eu preciso ver um amigo muito estimado.

Realmente, o fato de estarmos ali não significaria absolutamente nada para mim, muito menos para ir ate onde a Taça estava. No entanto eu tinha que ter paciência.

Ainda andando pelas ruelas escuras e tortas daquela cidade estranha e fúnebre, chegamos a frente de um bar. Eu só soube também que o era, por que um homem de vestes negras saiu torto de tão bêbado que estava, segurando uma garrafa vazia.

Ao entrar eu vi que o lugar era sujo, e o cheiro causava náuseas. Havia alguns homens e algumas mulheres ali, todos bêbados, claro. Mas nada diziam, apenas bebiam e mesmo sentados na cadeira, iam de um lado a outro. Nada comparado a taberna de Alim, vulga Camila. Eu senti saudades dela, naquele momento.

Atrás do balcão sujo, e com uma enorme coruja empalhada com asas abertas, surgiu um homem já velho, de barba e bigode sujos. Seus olhos eram fundos e opacos. Bizarro.

– Meu caro, quanto tempo não o vejo! – disse Marcelo.

– Marcelo, é você? Faz tempo mesmo que não o vejo, quanto tempo?

– Uns três a quatro dias, talvez...

– Sim, realmente esses anos foram longos... – eu dei ruma risada muito disfarçada. Marcelo me olhou de esguelha, me reprovando.

– Então Mariano, eu preciso de sua ajuda.

– Mas sempre que puder eu aceito.

– Não, sou eu que preciso.

– Claro, pode pedir que se der eu aceito.

– Não Mariano... esqueça. Eu preciso que você me venda aquela poção.

– Aquela poção, você me vende? – disse o velhote, feliz.

– Fale baixo, homem. – disse Marcelo, ao canto da boca – Kayo, vá ate ali, por favor!

Sem fazer perguntas, eu me afastei do balcão, e Marcelo e Mariano conversavam ao pé de ouvido.

Havia ali no canto um piano quebrado, e um aquário sujo, cheio de musgo. Eu preferi nem chegar perto, vai saber o que poderia ter ali.

Aquele mesmo homem que havia saído do bar quando entramos, voltou, agora segurando uma garrafa de pinga.

– Mariano seu imundo, me vendeu uma garrafa vazia. Eu quero uma cheia.

– Sim, venha ate aqui! – disse o velho.

O homem foi ate o balcão, pareceu cumprimentar timidamente Marcelo, enquanto isso, Mariano virou-se para a prateleira de bebidas e deu outra garrafa ao homem, também vazia.

– Agora sim, estamos falando a mesma língua. Uma garrafa cheia. Muito agradecido! - e o homem saiu todo contente.

Logo Marcelo retornou, e próximo a mim colocou um frasquinho escuro no bolso.

– Jamais diga a ninguém que esteve aqui.

– Tenha certeza de que não direi.

Ao sair do bar aquele homem da garrafa vazia estava parado olhando o chão, e quando nos passamos por ele, ele esbravejou.

– Maldito velho, me vendeu uma garrafa vazia!

Mais uma vez eu soltei um leve sorriso.

– Kayo, rir da desgraça alheia não é algo que lhe trará benefícios.

– Que tipo de benefícios eu iria precisar?

– Você mudou desde quando o conheci.

– Pessoas sempre mudam Marcelo.

– Eu concordo com você. No entanto sua atitude hoje na casa de praia, foi algo realmente constrangedor. Não para quem estava la, e sim para você.

– Eu sei que eu exagerei um pouco, eu podia ter ficado mais tempo, no entanto imagine o tanto de tempo que iríamos perder?

– Kayo, eu fui fraco e insensível ao não correr atrás de Kauvirno, e me arrependo arduamente por ter sido através de você que eu esteja aqui.

– Sabe qual o problemas de vocês, sinceramente?

– Diga!

– Vocês empacam muito e não resolvem nada.

– Somos velhos, somos precavidos. É fácil um adolescente tomar atitudes impensadas, e depois culpar os mais velhos por nos não termos os alertado. Esse tipo de atitude sua, tem mudado a forma como todos tem visto você, veja por exemplo, Carla sofria de câncer e você não sabia, porque nem mesmo Matheus quis comentar, por medo de você achar que fosse alguma tramóia dela. O seu ódio se faz entendível, mas sua falta de compaixão mediante a morte é algo terrivelmente assustador.

– Marcelo, cinqüenta pessoas morreram por mim causa. Junior meu melhor amigo morreu por minha causa, outros também morreram...

– E muitos outros ainda morrerão. A vida é algo inevitável, você não pode simplesmente se fechar e acreditar que, por dizerem que a culpa é sua, ela realmente o é. Eu não repudio sua atitude de não ficar e vir buscar por kau, é algo que tem que ser feito. Carla era próxima de nos, uma grande pessoa, mas era do jeito que era porque sentia a sua desfeita. O que fez para ela mudar a opinião que tinha de você? Eu receio que não tenha feito absolutamente nada, sempre com facas na mão, para agir de acordo como ela agia. Se você tivesse parado um pouco e mudado suas atitudes, talvez ela teria ate mesmo, partido em paz.

– Deve ter sido dolorido, eu sei... eu não sou uma pedra, eu tenho sentimentos.

– Não foi o que pareceu. Kayo, ser um bruxo é ter em mãos decisões difíceis. Às vezes nem chegamos a ter noção do que é certo ou errado, no entanto, temos que fazê-las. É lamentável a perda de Carla, mais lamentável ainda a sua atitude naquela sala, no entanto é passível de compreensão. Muitas outras vidas podem se perder, enquanto apenas choramos por uma.

– Marcelo, eu sei que foi errado. Você me dizendo isso, dessa maneira, eu consigo entender que realmente eu errei. Mas são todas as coisas que me afetaram. Eu não sou um anjo, eu tentei mudar, tentei ver coisas diferentes, tentei entende-las, mas eu percebo que muitas vezes eu vi apenas a mim. Um dia, eu prestei um depoimento na policia, foi quando Junior apareceu à primeira vez, eu fiquei mal, e Matheus foi ate o quarto em que eu estava. Naquele dia ele disse que a mãe dele estava doente, mas eu não dei tanta importância. Eu sei que eu sou burro... eu confesso.

– Não existe burrice, e sim um pingo de prepotência. Você acha que por ser o guardião de um colar poderoso, você pode tratar as pessoas como as trata? O colar não faz de você uma pessoa melhor ou pior. No final, você iria acabar se transformando como ele, como Átimos, e nem dar-se-ia conta disso.

Aquelas palavras de Marcelo, mexeram comigo. Eu estava realmente muito mudado, e minhas atitudes infantis causaram muito de meu sofrimento hoje.

Eu sei que Matheus entendia o fato de eu não estar com ele, sendo que o que eu mais queria era estar ao lado dele, mesmo na perda de sua mãe. Eu a odiava sim, eu jamais mentiria isso para ninguém, como eu nunca fiz, no entanto era a mãe dele, a mãe do homem que eu amava.

Mas era tarde, como eu sempre falava mais do que devia, deixava meus pensamentos voarem pela minha boca sem dar importância com o que achariam, era tarde. Estava dito, e se me odiassem, que me odeiem então. Eu não queria ser um Átimos em minha vida, eu apenas queria que tudo aquilo acabasse.

Chegamos a uma praça redonda, com arvores mortas e bancos quebrados. Havia mais bruxos ali e acolá, perambulando sem destino com seus olhares perdidos.

Marcelo olhou para um lado e para outro certificando-se de alguma coisa, e então abriu um portal.

– Vamos passe por ele, rápido! – disse Marcelo apressadamente.

Assim eu fiz, e logo atrás de mim ele. Estávamos agora numa floresta, escura e cheia de arvores.

– E agora, onde estamos?

– Logo chegaremos ate onde a Taça esta. Vamos!

Caminhando com extrema cautela pela floresta e calados, chegamos ate uma cachoeira, de mais ou menos uns vinte metros de altura. Havia pedras enormes por todos os lados e a água aos nossos pés estava calma. Sem o volume de arvores atrás de nos, um esplendoroso arco Iris se criou na queda d’água.

Marcelo retirou aquele frasquinho escuro do bolso, e o abriu, jogando um liquido verde naquela límpida água.

– Essa é a poção da revelação. No entanto só revela algumas coisas. Marianno é capaz de ultrapassar seus limites, se não fosse pela morte de sua filha e por ter a trazido de volta, ele seria o mestre de poções mais famoso de todo o mundo. Ele ainda o fabrica, mas sempre joga fora, no final ele acredita que a poção da revelação não passar de creme para verrugas. – disse ele sorrindo.

A água de límpida ficou verde, mas de um tom sublime. Logo, no centro, um redemoinho se formou e então uma pequena explosão na água. Dessa explosão uma espécie de porta se criou. A água da lagoa secou, transformando naquela imensa porta.

– Vamos! – disse Marcelo.

Estávamos caminhando agora, onde tudo era água. Descendo uma rampa com extrema dificuldade, por conta de pedras pontiagudas e por estarem molhadas. Mais perto da porta de água Marcelo disse para eu ter cuidado, pois o que viria a seguir poderia assustar um pouco.

– Não tenha medo. O segredo é não ter medo. – disse ele quase gritando, por conta do barulho da água, e da cachoeira que ia direto para a porta, aumentando cada vez mais seu tamanho.

Então eu olhei para o alto e vi a ponta daquela imensa porta, que agora mais parecia um paredão. A água começou a molhar meus pés, e aquilo começou, realmente a me assustar.

– Marcelo, o que esta havendo? – eu gritei a ele.

– Não tenha medo Kayo, confie em mim.

– Da próxima vez me fale, que eu não venho! – eu disse em desespero.

– Confie e não tenha medo!

A água estava quase no meu joelho agora e então aquele paredão de água desabou sobre nos. Eu me abaixei e então toda a água já nos cobria, eu então eu fechei os olhos e pedi para que o pior não acontecesse.