Enquanto Conselheiro do Rei Henselt de Kaedwen, Dethmold esteve poucas vezes em Vízima. Pouquíssimas, na verdade. Teméria e Kaedwen costumavam ser aliadas nos tempos de Foltest, mas como acontecia em todos os demais Reinos do Norte, aliados “com reticências”. O histórico de guerras entre os Reinos era extenso, e só diminuiu nas últimas décadas com as crescentes investidas de Nilfgaard. Diante de um inimigo rico e que não parava de crescer, engolindo reinos pequenos em sua fome por poder e conquista, apenas os Reinos mais relevantes conseguiram resistir ao ímpeto nilfgaardiano. E em tempos assim, a paz entre os outrora espinhentos Reinos do Norte era necessária. Afinal, todos agora tinham um inimigo comum: Nilfgaard e seus temidos Cavaleiros Negros.

Agora, caminhando livremente pelo Palácio Real de Vízima, como jamais esteve nos tempos de paz, Dethmold contemplava os vitrais. Uma boa parte deles era diferente dos tempos de Foltest, pois substituíram os vitrais quebrados durante a tomada de Vízima. Diziam as más línguas que praticamente tudo que remetia ao falecido monarca da Teméria foi destruído. Pinturas, vitrais, bustos... Pouquíssima coisa de Foltest sobreviveu aos pontapés dos Cavaleiros Negros. Mas ainda havia alguns vitrais temerianos, ainda com os lírios. Um deles curiosamente parece ter passado despercebido na destruição: o vitral construído para lembrar a inesquecível Batalha de Brenna. Talvez os nilfgaardianos não fizessem a menor idéia de que o vitral do corredor esquerdo era, na verdade, não a ilustração de uma mera batalha, mas um registro sobre a maior derrota militar da história de Nilfgaard. Que ironia.

Mordendo uma maçã, Dethmold contemplava o vitral, iluminado pelos raios de sol daquela manhã. Um Cavaleiro Negro montado em uma pesada armadura passou perto de si. Era um dos dezenas de guardas do Castelo. O feiticeiro pensou que o guarda estava apenas fazendo a vigilância, mas logo se surpreendeu ao vê-lo parado ao seu lado.

—Sua Majestade deseja vê-lo na Biblioteca. – disse o homem, no alto de seus dois metros de altura, com forte sotaque nilfgaardiano.

Dethmold deu mais uma mordida em sua maçã. Ainda com a boca cheia, o feiticeiro lhe respondeu que estava a caminho.

—Não pode comparecer à Biblioteca portando alimentos. – avisou o guarda, com semblante de poucos amigos. O feiticeiro deu mais uma mordida na maçã.

—Então coma você esta maçã! – disse Dethmold, falando enquanto mastigava e entregando ao soldado sua maçã praticamente comida. O feiticeiro quase se engasgou de rir ao notar a total repugnância do Cavaleiro Negro com suas maneiras. Antes de adentrar à biblioteca, ainda pôde ouvir o Cavaleiro Negro exclamar algo como “nortenhos selvagens!”, em seu idioma natal.

—Dethmold, bem em hora! – exclamou Voorhis, assim que a pesada porta de mogno da biblioteca se abriu, revelando a presença do feiticeiro em sua Biblioteca.

O feiticeiro imediatamente notou tranquilidade estampada no monarca, algo bem diferente dos últimos dias. Em sua mesa, Dethmold notou várias cartas, decerto frutos da invejável rede de espiões de Morvran Voorhis, que cobria Nilfgaard em quase sua totalidade. Dado o humor do monarca, sem dúvida boas notícias chegaram aos seus ouvidos.

—Em que posso servi-lo, Sua Majestade? – perguntou o feiticeiro, fazendo uma leve reverência. Voorhis acenou para que ele se sentasse, sendo prontamente obedecido.

—Seu plano tem funcionado. Meus espiões têm alertado para retaliações a acampamentos clandestinos dos Filhos da Teméria, acampamentos estes que sequer sabíamos a localização. Os inumanos estão deixando Mahakam para atacar os rebeldes.

—Como eu presumi, Sua Majestade. Mas devo avisá-lo que esta não é a única boa notícia que receberá esta manhã. Recebi uma mensagem de um de meus espiões sobre Anais La Valette...

Voorhis bufou, impaciente.

—Você e essa sua crença de que a menina está realmente viva...

—Escute-me, Sua Majestade. – pediu Dethmold. – Desta vez, recebi evidências fortíssimas de que um de meus espiões realmente encontrou a menina. Ela vive em Lathlake e...

—Lathlake? Mas que diabos de lugar é este?

—Natural que desconheça. Lathlake nada mais é que um vilarejo minúsculo, perto de Velen. Uma terra pobre e de baixa rentabilidade. Enfim, meu espião me contou sibre uma menina com a mesma idade e que ninguém sabe sobre suas origens.

—Isso é muito fraco, Dethmold. A Teméria passou por uma guerra recentemente e há milhares de meninas que poderiam estar nessa situação.

O feiticeiro retirou do bolso alguns papéis dobrados. Depois de desdobrá-los, estendeu uma das folhas de papel na mesa. Voorhis direcionou seus olhos e percebeu se tratar de uma espécie de rabisco. Olhando atentamente, percebeu se tratar de lírios temerianos, com alguns detalhes.

—O que é isto?

—Meu espião disse que a menina possui uma espada com estes símbolos gravados.

—São lírios temerianos. Não sou temeriano, mas sei que este símbolo é absurdamente comum. Qualquer soldado poderia ter uma espada com lírios temerianos gravados nela.

Dethmold negativou, levando seus dedos à folha de papel.

—Percebe isso?

—Estas... Linhas?

—Não são propriamente linhas, Sua Majestade. São faixas. Houve apenas uma instituição em toda a Teméria que possuiu faixas em seu emblema: o Comando dos Listras Azuis.

No mesmo instante, o semblante de Voorhis tornou-se sério.

—Aquele Vernon Roche.. Era Comandante dos Listra Azuis, não?

—Exatamente, Sua Majestade.

—Droga... – cedeu Voorhis, fechando os punhos. – Não pode ser apenas coincidência. Se essa menina tiver a mesma idade, mesma característica física, origens desconhecidas e carregar uma espada dos Listras Azuis... Só pode ser ela.

—É o que acredito, Sua Majestade.

—Por que Roche não a revelou, então? No dia em que ele entregou a cabeça de Radovid?

—Por que ela era jovem demais para assumir o Trono. Pelas Leis Temerianas, o Trono só pode ser assumido por alguém que atingir a maioridade, ou seja, dezesseis anos. Se Anais assumisse o Trono naquela época, seria necessário um Regente. Possivelmente nilfgaardiano, já que o único com credenciais para o posto está morto.

—Entendi. O bastardo a guardou para o momento certo.

—Que, devo lembra-lo, já chegou. Anais já possui dezesseis anos.

—Sim, eu sei... – inalou Voorhis. – Saberia me dizer quem é este espião? Precisamos entrar em contato imediatamente com ele... O que foi, Dethmold? – questionou Morvran, ao perceber o desagrado do feiticeiro.

—Perdemos a comunicação com ele. Mandei alguns de meus espiões para checar e eles confirmaram ontem que ele está morto. O acampamento em que ele estava foi atacado pelos inumanos, como era de nosso querer. Não houve sobreviventes. Por ser de Lathlake, ele foi enterrado lá.

Para pasmo de Dethmold, a notícia foi tão ruim aos ouvidos do sempre educado Morvran Voorhis que o nilfgaardiano deixou escapar um palavrão em seu idioma natal. Sabendo que estava diante de um Rei, Dethmold fingiu não ter visto a falta de compostura do monarca.

—Estamos de volta à estaca zero, então? Pois só o que sabemos é que essa menina possui uma espada dos Listras Azuis. Se forçarmos todos os camponeses a mostrar suas espadas, uma por uma, ela irá perceber e fugirá. Preciso de informações mais precisas. O nome falso dela, por exemplo. Possivelmente, ela está usando outro nome, para se esconder e viver de modo incógnito.

Dethmold parecia ponderar.

—Talvez haja um modo de revertermos esse pormenor. Magia Negra.

O semblante de Morvran tomou-se de horror.

—Pelo Grande Sol, se está propondo que...!

—Não se preocupe, Sua Majestade. – interveio Dethmold. – Serei eu, e apenas eu, o homem que sujará as mãos com este tipo de Magia. Creio que o senhor não gostará de saber dos detalhes, mas saiba que há formas de se obter informações dos mortos. Como, por exemplo, o nome falso de Anais. Enfim, acho que já falei o bastante. Pode deixar todo o resto comigo.

O feiticeiro estendeu seus braços, fazendo se formar, naquela sala, um portal. Portais, pensava Morvran Voorhis. Algo extremamente incomum de se ver em Nilfgaard, mas no Norte, os feiticeiros usavam tal ferramenta de transporte por qualquer coisa. Mas Morvran precisava dar o braço a torcer. A ideia de se transportar para qualquer lugar, em questão de segundos, tinha lá seu apelo.

—Sua Majestade, perdoe-me a pressa, mas terei de fazer isto o quanto antes. Quanto mais rápido, melhor.

—Está bem, pode ir. Irei resolver outros assuntos pendentes. – deu de ombros Morvran. “Que o Grande Sol olhe com remissão a minha tolerância a artifícios imundos deste reino pagão”, pensava o monarca, enquanto o feiticeiro desaparecia em meio à luz do portal.

§§§§§§§

Grilos. Folhas batendo, movimentadas pelo vento que anunciava a chegada de chuva, mais uma chuva para abençoar as plantações de Lathlake. Estava tudo escuro naquele bosque, para onde Dethmold se teletransportou. Seus sapatos de alta costura, construídos unicamente para ele, infelizmente mergulharam na lama logo que o feiticeiro pôs os pés em solo firme, fazendo-o praguejar. Dificilmente os teria de volta, arrasados daquela maneira.

“Pois é, menino Lucius Júnior. Espero que o que você tenha a me dizer valha os meus sapatos arruinados”.

Apesar do acidente, o feiticeiro Dethmold prosseguiu bosque adentro, tentando ignorar o ranger da sola encharcada de lama dos seus sapatos. O feiticeiro lamentou o erro de cálculo, que lhe deixou a uns bons metros longe do cemitério, muito embora fosse o mais prudente. Mas não demorou até que estivesse no cemitério. Mais som de grilos, sinal de que não havia nenhum carniçal a perturbar a natureza.

Dethmold procurou com paciência túmulo por túmulo, até encontrar o correto, escrita sobre caligrafia vulgar em uma pedra grosseira de granito-de-terra. “Lucius Junior, filho de Lucius e neto de Lucius, cujo pai também era Lucius”. Que tocante, pensou o feiticeiro. Camponeses e seu senso de dignidade, tentando se equiparar a nobres, pelo menos na hora da morte. Como se alguém se importasse com lápides de gente que nada mais fez na vida que fornicar e colher trigo.

O feiticeiro encarou aquele monte de terra. Sabia que o menino Lucius estava morto há alguns dias, mas aquela terra, aparentemente, tinha sido recentemente movida. “Será que alguém chegou antes de mim?”, Dethmold não pôde deixar de se perguntar. Sua preguiça o impedia de desenterrar o rapaz com suas delicadas mãos, mas isso estava longe de atrapalhá-lo em seu objetivo. Com um estalar de dedos, duas pás recostadas ao muro do cemitério adquiriram vida e começaram a fazer todo o trabalho pesado por ele.

Quando a tampa do caixão finalmente veio à tona, o feiticeiro conjurou mais um feitiço, que fez o caixão se levantar e levitar pelo ar, até aterrissar desengonçadamente sobre o chão. Dethmold chegou a ouvir o estalo da madeira a se partir com a queda, mas ignorou.

Um pouco antes de abrir o caixão, o feiticeiro sabia o que lhe aguardava. Putrefação. O azedo cheiro da morte. Muitos alunos da Escola de Ban Ard passavam mal diante do cheiro de cadáver em estado de decomposição, mas Dethmold até o achava agradável. Sempre foi mal compreendido por isso, muito embora esse fato peculiar e excêntrico sobre si não tenha atrapalhado sua vida como feiticeiro.

Mas não foi bem o “agradável” cheiro de putrefação que penetrou nas narinas de Dethmold, logo que o caixão foi aberto. Na verdade, nem mesmo o cadáver de Lucius Júnior atingiu as expectativas de Dethmold. Esperava encontrar um corpo já podre e fedido, mas tudo que o feiticeiro viu foi o bem conservado corpo do jovem espião, exalando um forte cheiro químico de algo que o feiticeiro suspeitava ser formaldeído.

—Mas que curioso... – foi só o que pôde deixar escapar o feiticeiro, diante do fato peculiar.

Deixando um pouco de lado a surpresa, Dethmold arrastou o caixão para o centro do cemitério. Com um giz, o feiticeiro desenhou um pentagrama, estando o corpo de Lucius Júnior bem no centro. Proferiu algumas palavras e logo uma áurea negra formou-se ao seu redor do corpo, até que o cadáver contorceu-se, como se estivesse tomando vida outra vez. Entretanto, para surpresa de Dethmold, a névoa imediatamente se dissipou e o corpo contorcido de Lucius Júnior aterrissou sobre o chão, como um saco de batata. Pasmo com a interrupção de seu feitiço, Dethmold tentou entender o que afinal havia acontecido. Por que sua Magia de Necromancia falhou, se ele havia seguido tudo exatamente à risca?

Examinando o cadáver, Dethmold pôde concluiu, com decepção, a causa disso.

—Profanaram o corpo. – disse o feiticeiro, ao levantar a camisa do jovem e constatar uma ferida vertical e bem-costurada cortar praticamente todo o seu tórax. – Bem o que eu precisava! Merda, merda, merda...!

Com grande nojo, o feiticeiro passou sua atenção aos pertences de Lucius Júnior. Revirando as roupas do cadáver com as pontas dos dedos, o feiticeiro percebeu que não havia nada de interessante ali. Bolsa, papéis, nada. Decerto já usaram seus papéis para queimar como lenha. Bem típico de camponeses ignorantes.

Respirando fundo e contando até dez, Dethmold procurou manter a calma. Uma menina estava em Lathlake, com idade o bastante para ser a jovem, e carregava uma espada com o emblema dos Listras Azuis. Não poderia ser apenas coincidência. Por sinal, a presença da jovem em um vilarejo como aquele, no meio do nada, consistia em uma boa explicação para o desaparecimento dela por tanto tempo. Vernon Roche a escondeu muito bem, ele precisava admitir.

Olhando mais uma vez para o cadáver, Dethmold não teve dúvidas. Alguém com bons conhecimentos em Ciência, especialmente Anatomia, andou mexendo naquele corpo. E Lathlake era um vilarejo pequeno e medíocre demais para abrigar um estudioso ou versado em Ciências que só habitavam as instalações da Academia de Oxenfurt. Tal prática era vista como profana aos deuses, tendo lá seu fundo de razão. Um cadáver aberto era péssimo para encantamentos, até mesmo ao mais profano deles.

“Tudo bem”, pensou o feiticeiro. “Lucius Júnior pode não ter dito o nome dela, como eu planejava, mas já tenho evidências o bastante de que ela vive por aqui. Agora, só o que precisamos fazer é encontra-la, e com sutileza e cautela”.

Estando o corpo já devolvido ao caixão e enterrado do mesmo modo em que estava, Dethmold abriu o portal mais uma vez.

§§§§§§

Carregamento atacado e saqueado pelos Filhos da Teméria. Carta de Kovir a respeito do reajuste dos juros de um empréstimo. Nilfgaard cobrando explicações sobre os péssimos resultados da Teméria. A quinquagésima carta de sua prima distante perguntando se havia algum nobre temeriano interessante e rico o bastante para um casamento... Os remetentes já diziam seu assunto, sem que Morvran abrisse aqueles envelopes. Para o monarca nilfgaardiano, tais notícias fechavam aquele dia com ares de péssimo, ele pensava.

“Só espero que Dethmold apareça aqui com boas notícias.”

Como se adivinhasse seus pensamentos, uma áurea roxa apareceu repentinamente, fazendo surgir outra vez o feiticeiro. Uma boa notícia, julgou o monarca nilfgaardiano ao ver um sorriso vitorioso estampado no feiticeiro.

—Infelizmente, tenho más notícias, Sua Majestade. – disse Dethmold, com o semblante pesaroso. – Não consegui obter nada de Lucius Júnior porque o corpo dele foi profanado.

Os olhos do nilfgaardiano se arregalaram. Nortenhos, selvagens que não respeitavam nem os mortos. Como ele desejava partir desta terra imunda...

—Infelizmente, a espada é a única evidência concreta que possuímos.

—Um ponto de partida muito pobre para procurarmos. Precisava de maior exatidão. Esse tal Lucius Júnior não deixou nenhuma outra pista? Cartas, documentos, nada?

—Nada, Sua Majestade. Possivelmente os camponeses surrupiaram suas posses.

—O que faremos, então? Pois não posso simplesmente matar todas as mulheres de Lathlake, por mais que me seduza a idéia.

Dethmold tornou-se pensativo.

—Creio que há uma alternativa. Um sacrilégio, utilizado nas proximidades da Conjunção das Esferas, que é capaz de identificar sangue nobre.

—Um feitiço?

—Sim. Pertence à categoria “Magia de Sangue”, algo extremamente proibido de se praticar, condenado pelas Escolas de Magia por todo o Continente. Este sacrilégio é considerado Magia Negra, banido dos ensinamentos a feiticeiros, sendo acessível apenas de modo clandestino por meio de livros censurados. Mas, como bem sabe, regras não me detém.

—No que consiste esse feitiço?

—Antes de explica-lo, primeiro eu preciso te contar um pouco de minha história. Como é do conhecimento de Sua Majestade, fui Conselheiro do Rei Henselt de Kaedwen por anos. Pois bem, digamos que o Rei Henselt era um pouco... Promíscuo.

—Típico dos Reinos do Norte. Temos Foltest, um incestuoso, Radovid, um lunático, e agora Henselt, o promíscuo... Não à toa o Norte se fez em frangalhos, como uma punição do Grande Sol por suas iniquidades. Mas continue.

—Essa “promiscuidade” do Rei Henselt não tardou a dar seus efeitos. Mulheres grávidas apareciam no Palácio, dizendo que carregavam um filho bastardo do Rei. Crianças e jovens também batiam à porta, exigindo reconhecimento. Certa vez, cinco bastardos apareceram de uma só vez no Palácio de Kaedwen. Muitos reis poderiam simplesmente ignorar o fato, mas não o Rei Henselt, cujo único herdeiro havia falecido ainda jovem e que precisava de um o quanto antes. Foi quando o Rei Henselt pediu minha ajuda para resolver o problema.

—Usando esta “Magia de Sangue”?

—Sim, exatamente. Recolhi uma amostra do sangue de Henselt, adicionei alguns ingredientes alquímicos e depois, injetei o composto no corpo do proclamador.

—E? – insistiu Morvran.

—Todos impostores. Mais uma prova para a minha suspeita de que o Rei Henselt era estéril. Mas como pode imaginar, ele era resoluto em acreditar nisso. Seu orgulho não o permitia admitir que o problema estava nele.

—Se não houve resultados positivos, como pode afirmar que este feitiço funciona?

—Acredite, embora esse feitiço seja banido, outros feiticeiros antes de mim já o utilizaram, ainda que secretamente. Boa parte dos bastardos de monarcas na história dos Reinos do Norte foi reconhecida por intermédio deste sacrilégio.

—Mas há um problema. Foltest está morto, portanto não temos uma gota sequer de seu sangue.

—De Foltest, realmente não. Mas há de sua filha, a Rainha Adda da Redânia.

Sim, é claro, pensou Morvran. Adda, A Branca. A única filha “oficial” do Rei Foltest. E “oficial” em termos, pois a mulher, em tese, também é uma bastarda, fruto da relação incestuosa de Foltest com a irmã. Mas sempre foi fato incontestável de que a jovem é filha dele, escondida por muitos anos no Castelo de Vízima por ter nascido amaldiçoada como uma estrige. Sua presença em forma de estrige no Castelo causava tantas mortes e transtornos que acabou por forçar Foltest a construir outro castelo, ainda em Vízima, para que pudesse isola-la. E por muitos anos a estrige habitou o antigo Castelo de Vízima, até ser libertada de sua maldição graças aos esforços de Geralt de Rívia, que deixou o bruxo em alto estima perante o então Rei da Teméria. Enquanto casada com Radovid, Adda raramente aparecia em público, reforçando os boatos a respeito de seus problemas mentais. Mas logo que a Coroa Redaniana passou à sua cabeça, Adda provou que nada tinha de demente. Um erro que custou caro à Nilfgaard, que calculou à época que apenas a morte de Radovid seria o suficiente para derrubar a Redânia e dominá-la completamente.

—Bem observado. – admitiu Voorhis.

—Uma sorte que eu seja bastante amigo do Conselheiro dela, um feiticeiro dos meus tempos de Adepto de Ban Ard... Jamais foi um feiticeiro dos mais talentosos, mas tinha certos atributos que...

—Direto ao ponto, Dethmold. – pediu Morvran, claramente sem paciência para saber detalhes da vida íntima do feiticeiro.

—Como desejar, Sua Majestade. O fato é que esse meu amigo me concedeu amostras de sangue dela.

—E por que não me contou isso antes? – resmungou Voorhis.

—São poucas amostras, infelizmente. E custaram caríssimo, como deve imaginar. Além do fato de que não posso demandar muito, ou levantaria suspeitas desnecessárias na própria Adda.

—Entendo... – analisou Morvran. – No momento, a última coisa que preciso é arranjar problemas desnecessários com a Redânia. Agora, há outro pormenor que precisamos nos preocupar. Lathlake. Essa cidade é minúscula. Não há como levar todas as jovens desse vilarejo para Vízima sem levantar suspeitas. Se tivermos de agir, terá de ser por lá.

—Sua Majestade, se quiser eu posso me encarregar disso sozinho.

—Fora de questão, Dethmold. Quero me certificar com meus próprios olhos de que encontramos a verdadeira Anais.

—O senhor tem planos para ela?

—Não interessa os meus planos. O que me importa é acha-la. Os Filhos da Teméria estão crescendo e se tornando mais audaciosos. Os camponeses, os maiores apoiadores dos Filhos da Teméria, falam de Anais com devoção, enxergando-a como uma “redentora”, alguém que aparecerá na hora certa para salvar o reino. Os nobres estão começando a ficar insatisfeitos em ver um nilfgaardiano no Trono. Só não dão um golpe porque não decidiram ainda quem irão colocar no lugar. Do meu ponto de vista, essa criança...

—Jovem, na verdade. Ela já teria dezesseis anos, de acordo com os meus cálculos.

—Que seja. Anais é a única candidata ao Trono que me parece ser capaz de unir camponeses e nobres. E isso... Nem preciso dizer que uma guerra civil seria péssima para meu reinado, e também para Nilfgaard. Mas não devemos nos lamentar quanto ao que o futuro tem a nos oferecer, não quando precisamos agir. Preciso arranjar um pretexto para usar esse teste nas jovens de Lathlake...

Estando Morvran pensativo, Dethmold começou a se locomover pela Sala Real. O altar chamou a atenção do feiticeiro. Nele, estava a estátua de Melitele. As velas, apagadas. Nenhuma oferenda ali. Uma negligência que ninguém do Norte deixaria acontecer.

—Sua Majestade... – balbuciou o feiticeiro, aparentemente animado. – Creio ter encontrado a solução ideal!

—O que é?

—A Festa das Primícias para Melitele acontece em todas as cidades e vilas, desde as mais importantes até as medíocres. Melitele é a deusa mais popular da Teméria e Lathlake não deve ser exceção. Nobres e camponeses usam esta festividade para prestar oferendas e homenagens, numa forma de agradecer a colheita e...

—Sim, mas eu não vejo de que forma essa deusa Melitele poderia me ajudar. Como bem sabe, Dethmold, eu não acredito nos deuses nortenhos, em nenhum deles. Eu sirvo ao Grande Sol.

O Grande Sol, conhecia o feiticeiro Dethmold. Por muito tempo, uma dentre as inúmeras religiões descentralizadas praticadas em Nilfgaard, até ser decretado, por meio do Imperador Fergus, como a religião oficial do Império Nilfgaardiano, levando a população inteira a também cultuar o Grande Sol, ou Ard Feainn, na Linguagem Ancestral. Sendo nilfgaardianos orgulhosos descendentes de elfos, o Culto ao Grande Sol era apenas mais um aspecto cultural herdado pelos seus ancestrais. O Sol, centro da religião, era fonte de calor e vida, protetor da humanidade, mas também capaz de ser cruel e destrutivo.

—Sim, eu sei disso. – disse Dethmold. – O Culto ao Grande Sol é a religião oficial de Nilfgaard, e como bom nilfgaardiano, Sua Majestade não escapa à regra. Mas como bem sabes, a sua fé tem sido uma das principais causas para os temerianos não se agradarem com Sua Majestade.

Morvran parecia inconformado.

—O Grande Sol pune os infiéis.

—É admirável sua lealdade para com sua fé, mas creio que está em tempo de Sua Majestade abrir uma leve concessão e...

—Não vou cultuar imagens de barro.

Dethmold riu levemente.

—Ninguém está falando em cultuar, Sua Majestade. Apenas dê aos nobres e camponeses o que eles querem: demonstração de respeito à fé deles.

—Eu já faço doações vultosas aos templos. O que mais querem de mim? Que eu me ajoelhe, ore, beije os pés dessas estátuas de barro?

—Aprovo os seus esforços de adquirir confiança e popularidade, mas eles serão insuficientes enquanto Sua Majestade permanecer a ignorar os deuses nortenhos.

—Sei que este é um problema que tenho enfrentado desde que me sentei ao Trono Temeriano, mas ainda assim... – tornou-se pensativo Morvran. – Como o meu plano de descobrir se Anais está mesmo em Lathlake se encaixa nisto? Pois até agora você falou, falou e não chegou a lugar algum...

—Tudo ao seu tempo, Sua Majestade. – insistiu Dethmold. – Este é o mês de Culto à Melitele e muitos vilarejos fazem homenagens a ela. Por que não aproveita alguma festividade para se fazer presente em Lathlake?

Movran passou a analisar a proposta do feiticeiro.

—Vou consultar se o nobre governante daquelas terras irá preparar alguma festividade à Melitele ainda este mês. Caso a resposta dele seja “sim”, irei confirmar minha presença.

—Ótima ideia, Sua Majestade. Assim, estará matando dois coelhos com uma só cajadada. Os nobres considerarão a sua presença ali como sinal de respeito às tradições e costumes temerianas, e minha presença ao seu lado não será vista de como suspeita. Teremos liberdade o bastante para investigar e...

Dethmold interrompeu-se, logo que viu a porta se abrir. Era a Baronesa La Valette, a pessoa que, nas idéias do feiticeiro, deveria ser a última pessoa do Continente a saber do plano funesto de Morvran Voorhis. Pois embora o Rei nilfgaardiano estivesse sendo reticente em revelar sobre seus planos quanto à Anais, era óbvio para o feiticeiro que o Rei estava planejando algo nada amistoso para a jovem filha de Foltest.

—Morvran... Não sabia que estava em reunião. – disse a nobre temeriana, tendo em seu rosto estampado uma expressão de surpresa que o feiticeiro duvidava que fosse genuína. Afinal, Maria Louisa La Valette tinha a mais meiga e suave das feições, mas sabia ser peçonhenta como uma víbora, quando a ocasião necessitava. E Dethmold sabia de seu ódio por ele, afinal, ele sequestrou Anais.

—Não está em minha agenda. – disse o nilfgaardiano, sem entrar em detalhes.

—Entendo. O Embaixador de Kovir está esperando por você. – ela disse, fechando a porta. Não sem antes lançar contra Dethmold um olhar fatal, que amedrontaria muitos homens. Morvran deu um breve suspiro.

-Bom, o dever me chama. – disse o Rei, levantando-se e deixando Dethmold ainda na mesa. – Dê continuidade ao plano.

-O manterei informado de meus progressos. – respondeu Dethmold, recebendo o bater da porta como resposta. Voltando sua atenção aos livros nas estantes da biblioteca, o feiticeiro acabou surpreendido com a porta se abrindo novamente. Entretanto, não era o Rei Morvran, mas a Baronesa La Valette.

-Em que posso ajuda-la, Baronesa?

-Desaparecendo das minhas vistas já seria um bom começo.

Dethmold riu debochadamente. – Se não estou enganado, foi a senhora quem me procurou aqui, neste momento.

-Você entendeu muito bem o que eu te disse, não se faça de desentendido. – retrucou a Baronesa. – Não preciso te explicar os motivos que me fazem te odiar, seu verme asqueroso. Pode negar veementemente, mas eu sei que foi você quem sequestrou minha filha Anais.

-As palavras de um Regicida não deveriam ter qualquer crédito. Vernon Roche simplesmente me achou o bode expiatório ideal para o papel de vilão e criou toda uma história infame para te convencer, e pelo visto, conseguiu com primor. Mas não posso culpar uma mãe desesperada por nomear um culpado pelo lamentável destino de seus filhos, posso?

Dando passos intimidantes, a Baronesa se aproximou de Dethmold.

-Não sou tola. Eu sei que Morvran está pedindo sua ajuda para resolver a questão com Emhyr em Nilfgaard. O problema é que não há lugar para um Conselheiro em Nilfgaard e mesmo se houvesse, dificilmente seria concedido a um feiticeiro. A Magia no Sul não é vista com os mesmos olhos que aqui.

-Está me acusando de conspiração? Contra Nilfgaard? Oh, Baronesa, eu não iria tão longe assim. Gosto de ter a minha cabeça exatamente no lugar onde ela está. Agora, quanto à Morvran Voorhis... Diria que ele entende dos riscos. Mais ainda, da recompensa.

Por fim, o feiticeiro riu.

-Falando em espaço... Também não há lugar para uma temeriana no posto de esposa do Imperador, sabia? Não quando há tantas pretendentes nilfgaardianas de boa família para tal. Sim... Acho que agora entendo seu desespero em me dissuadir da ideia de ajudar Morvran Voorhis a dar o golpe em Emhyr... Afinal, todos os anos “investidos” em Voorhis irão por água abaixo, e convenhamos, a senhora já não está mais na idade de almejar um pretendente importante... Aliás, quantos anos a senhora já tem? Quarenta?

-Vá se foder, seu mago de merda.

Dethmold riu debochadamente.

-Passei bem perto, não? Foi o que pensei. Mas não se preocupe com o futuro. Tenho certeza de que ainda encontrará algum nobre temeriano com o pé na cova disposto a se casar com você e... Baronesa?!

A porta bateu com violência. Após breves segundos de silêncio, o feiticeiro riu.

-Parece que acabei rindo por último. Tolinha.