A notícia chegou ao escritório de Eboni junto da nuvem negra e aterrorizante que era a presença daquele homem. E negra não apenas em sua tez, mas em sua aura: tudo nele inspirava ao terror e ao medo. A maneira de ele andar, de falar, de gesticular. Até seu cheiro continha pitadas de pesadelo, com aquela fragrância de limão que impregnava todo o ar quando ele entrava. Tyrone tinha as trevas em suas entranhas. Era impossível estar em sua presença sem sentir-se, mesmo que minimamente, ameaçado. Mesmo Eboni, que sabia que ele jamais faria algum mal a ela, sentia-se vulnerável e fragilizada. Ser ele o anjo negro que carregava as notícias e presságios do fim só tornava as coisas ainda piores.

— Coelhinha... – Tyrone disse, num sussurro. A maneira dele falar era sempre assim, sussurrada. Sua voz era um suspiro, e as frases que ele soltava, grandes profecias macabras. Eboni não se lembrava de ter alguma vez visto os dentes dele. Ela já os sentira próximos da língua, em seus próprios lábios, mas jamais vira. Julgava serem tão brancos quanto os brincos de diamante que ele tinha nos lóbulos. Brincos grandes, maiores que os dela. Em suas mãos as unhas estavam pintadas de vermelho sangue, e aquela extravagância excitava a doutora Eboni Waterson. Tyrone era sensualmente ameaçador.

— Você não deveria estar aqui. A doutora Barbara te mandou embora. Para sempre!

Tyrone abriu um sorriso malicioso, e Eboni viu seus dentes de relance. Não por tempo suficiente, porque o anjo da morte não tinha o direito de sorrir. Ele aproximou-se da mesa dela e reclinou-se. Usava um terno negro e brilhante, com uma camisa branca como seus dentes e repleta de strass prateados no colarinho. A parte de cima era completada por uma gravata vermelha, que combinava com a cor de suas unhas.

— Eu não ligo para o que a doutora Barbara mandou. Eu jamais a respeitei, e jamais a respeitarei. Você sabe tão bem quanto eu que esse cargo deveria ser da Norina.

Eboni virou o rosto, e subitamente viu sua face refletida no metal da parede atrás de si. Ela estava abatida. Sua pele de chocolate estava pálida em comparação com o café da cútis de Tyrone. Seus olhos negros não tinham a habitual e pesada maquiagem, pelo contrário, estavam limpos. Nem suas bochechas ou boca tinham qualquer tipo de pintura. Os lábios possuíam apenas um leve brilho do protetor labial, nada mais. Os cabelos iam até a altura do queixo, alisados e cortados de moto reto, o que dava a ela certa aparência egípcia. O fantasma de Cleópatra, talvez? A franja não deixava visíveis suas sobrancelhas, e estava tão milimetricamente cortada quanto brilhante. Eboni era uma incógnita.

— E o que nós podemos fazer em relação a isso? Melhor: no que isso nos prejudica ou beneficia? A Norina nos trataria como lixo da mesma maneira que Barbara nos trata. Seria como trocar um tigre por um leão.

— Pois então eu sei lidar com leões. Com tigres, não.

Eboni não entendia o sentido daquelas palavras.

— O que você quer dizer com isso?

O anjo da morte finalmente resolveu sentar na cadeira à frente da mesa da doutora. Disse:

— Quero dizer que Norina sabe valorizar lealdade. Se nós apoiássemos a reclamação dela contra Barbara e o filhote que ela tem no tubo...

— CHEGA Tyrone! – A voz de Eboni explodiu num rompante. O anjo negro não exibiu qualquer reflexo pelo grito ensurdecedor dela. — Eu não vou apoiar esse boicote à Barbara. É sem precedentes e...

— E se eu disser que existem precedentes?

A doutora Waterson não esperava por aqui. Haveria motivos concretos para que eles depusessem Barbara?

— Você está blefando.

— Não estou. Te juro.

As juras de Tyrone não tinham espaço na cabeça e no coração de Eboni. Ele não jurara que iria ficar com ela apesar de tudo? Não jurara que iria abandonar o vício, que iria procurar ajuda...? No fim das contas à demissão dele por parte de Barbara fora mais do que justa. Várias pequenas catástrofes, desastres em miniatura, que foram se acumulando com o decorrer dos meses. Tudo culminou no dia em que ele trocou as doses de T e G-Vírus e quase causou uma falha irreparável em um dos experimentos de Barbara Goodway. Aquele incidente fora o último. Barbara ordenou que ele entregasse qualquer identificação que pudesse ter da Colmeia, e desaparecesse dali. Eboni sabia bem que ninguém era realmente demitido da ANUBIS: o único meio de ser permanentemente desligado da empresa, era a morte. Se Tyrone saísse da Colmeia, de certo arranjariam um trabalho para ele na Ilha, onde poderia ser constantemente vigiado pelos homens de Alois. Talvez como garçom, ou motorista. Na Ilha não havia segredos: tudo estava ao alcance dos olhos do príncipe.

— Eu não quero saber o que Barbara fez.

— Fará. – Tyrone corrigiu.

— Pois que seja. — Eboni estava voltando a irritar-se, e podia sentir em suas entranhas a fúria chegando. — Eu não quero saber o que ela fará. Eu preciso que você... Saia. Se os homens da Força te encontrarem aqui, você é um homem morto.

Tyrone esboçou o mais leve dos sorrisos, e dessa vez Eboni não viu seus dentes. Cruzou os dedos com as unhas vermelhas e encostou os cotovelos em sua mesa.

— Se eu sou tão indesejado assim, então como consegui entrar aqui?

— Essa é a pergunta de um milhão de dólares.

— Deveras. Mas acho que você não gostaria de saber qual parte do meu corpo tive de usar para conseguir com que permitissem minha entrada.

— Pelo amor de Deus, Tyrone. Poupe-me.

— Digamos apenas que alguém soube valorizar o que você teve e desdenhou.

O tom sussurrante e murmurado com que o anjo negro dissera aquilo enfureceu Eboni. Ela levantou-se da cadeira e deu um tapa forte no rosto dele. Houve alguns segundos de silêncio, e a doutora viu um sinal quase imperceptível de vermelhidão na bochecha negra dele. Não havia alma capaz de ser atingida por golpes que nada mais eram do que frustrações por ele estar dizendo a inevitável e insuportável verdade.

— Eu estava com saudades dos seus tapas.

A doutora então esbofeteou a outra bochecha.

— Seu pedido é uma ordem.

— E seu pedisse pra você se deitar aqui em cima da mesa? Será que eu seria atendido?

Um terceiro tapa, esse mais forte e audível que os dois últimos.

— Por que isso te enfurece tanto? Não seria a primeira vez.

Eboni ergueu o braço para desferir o quarto golpe, quando o anjo da morte segurou seu pulso com firmeza. Não doía, mas seus membros superiores estavam completamente incapacitados diante da algema negra e vermelha que eram seus dedos. Tyrone olhou-a profundamente. A doutora sentiu lentamente sua raiva dissolver-se diante do oceano de piche que era os olhos dele. O hálito quente que saía por entre os lábios entreabertos dele, o cheiro de limão que impregnava o ar. Ele. O demônio que conseguia ter a respeitável doutora Eboni Waterson na palma de suas mãos com um simples gesto ou olhar. Ela odiava-se em momentos como aquele, em que estava à mercê dos encantos do anjo da morte. Sua mente sussurrava “não”, mas seu corpo berrava “sim”. E quando se deu conta já tinha feito.

Tyrone empurrou todos os objetos da mesa, jogando-os ao chão sem critério. Telefone, papeis, canetas, o tablet da doutora. Puxou-a para si e colocou-a em cima da mesa, entre beijos, sussurros e gemidos abafados. Suas mãos percorriam as coxas dela com a rapidez de uma pantera, e Eboni desfazia-se em pequenas exclamações e suspiros. Sentiu a pele dele queimando em contato com a sua própria, e odiou-se mais do que todas as outras vezes. Ainda estava de olhos fechados e expressão extasiada quando ouviu o mais leve dos ruídos. E então viu. O anjo da morte estava em frente e dentro dela, mas a doutora conseguiu ver sobre seus ombros quando a porta abriu e um visitante inesperado entrou.

Na verdade uma visitante.

A secretária. A maldita secretária. Eboni sentiu que tudo acontecia em câmera lenta. Desireé estava com uma pasta carmesim em mãos, segurando-a como se fosse o objeto mais valioso do mundo. Usava um vestido cinza de mangas curtas, e os cabelos castanhos arruivados caíam em ondulações sobre seu ombro até o quadril. Seus olhos eram grandes e de um azul puríssimo. A expressão que ela fez quando os viu foi de pura surpresa e ingenuidade. Eboni tinha certeza que a menina ainda não tinha completado sequer vinte e três invernos. Em seus dedos visualizou um anel de compromisso. Nele havia uma pedra com o símbolo dos quatro naipes de um baralho. Paus, copas, espadas e ouros. Seria ela noiva? Talvez, mas era difícil ter certeza. Os batimentos se aceleraram e de repente Tyrone notou a mudança na expressão facial de Eboni. Instintivamente virou-se para ver o que causava surpresa e repulsa da doutora.

— Puta que pariu! – Tyrone sussurrou, num impulso.

Desireé fez menção a sair da sala, envergonhada. Mas quando ela colocou a mão na maçaneta, ouviu um clique. Virou-se. Eboni estava com a mão na boca, espantada e horrorizada. De onde Tyrone havia tirado aquela arma?

— Não se mexa! – Ele ordenou.

— Tyrone, abaixa isso! Os seguranças! A Força!

— Dane-se a Força! Ela viu a gente! Ela sabe que eu estou aqui!

A garota estava completamente pálida. Soltou a pasta num rompante, tremendo. O brilho de seu anel de naipes se intensificou subitamente. O preto cintilou, o vermelho refletiu. Gaguejou:

— E-e-e-eu... Não conto a ninguém! Eu ju-ju-juro! — E instintivamente levou as mãos à frente do corpo, como se pudesse com elas parar a bala que sairia da arma do anjo da morte. Ninguém poderia pará-lo, nem mesmo a doutora Waterson.

— E como eu posso acreditar na sua promessa, docinho? Você é uma cadelinha da Barbara, como todos os outros!

Desireé engoliu em seco. Uma lágrima de pavor escorria do seu rosto. Eboni aproximou-se de sua mesa, discreta e silenciosamente. Se Tyrone percebesse o movimento dela, estava tudo acabado. Esticou o braço em direção ao abajur que estava no chão. Era pesado, incrustado de diversas bijuterias diferentes e feito de ferro maciço. Bastaria um golpe e o anjo negro cairia desfalecido no chão. Ela só precisava ser... Rápida. Pronto. Havia conseguido pegar o abajur. Só não esperava que a própria algoz de Tyrone fosse denunciar sua salvadora.

A secretária olhou para Eboni, por sobre os ombros de Tyrone. A garota fez uma expressão surpresa ao vê-la com o abajur em mãos, e isso foi o suficiente para atrair a atenção do anjo da morte. Ele virou-se e desferiu um soco certeiro no queixo de Eboni. A doutora caiu no chão com força, quebrando o abajur em seu próprio braço. Muito sangue respingou nos papeis e objetos caídos no chão. Ela sentiu que dois de seus dentes desprenderam-se de sua gengiva.

— Não! – Foi só o que Eboni conseguiu gritar, e ainda sim a voz não saiu no tom que deveria. Muito baixo. Ninguém a ouviria.

Um tiro. Um barulho ensurdecedor. Desireé ainda olhava arregalada para Tyrone, com seus brilhantes e enormes olhos azuis. Uma mancha vermelha em seu peito formou-se com rapidez, sujando o vestido cinza de vermelho rubro. Houve poucos segundos entre o disparo e a queda da secretária. Ela caiu de joelhos, ainda com os olhos completamente abertos. Depois caiu por inteiro, desfalecendo no chão. Cuspiu algum sangue, e Eboni ouviu a garota inspirar o mais alto e forte que pôde. Ela engasgou-se com o líquido vermelho e ferroso que saía de sua boca e emitiu um último ruído. As pálpebras fecharam-se no mesmo exato segundo, escondendo para sempre os grandes e brilhantes olhos azuis de Desireé. Seu anel ainda brilhava intensamente, com o naipe de copas assustadoramente distinguível.

Eboni continuava caída sobre os papeis e os cacos do abajur. Seu queixo havia sido cortado em dois lugares, onde os anéis do dedo de Tyrone o encontraram. Saía muito sangue dos ferimentos, e logo a doutora cuspiu um dente. Em sua boca sentia o gosto do ferro, o amargo do próprio sangue.

— O que... Você... Fez...?

Tyrone abaixou-se e ergueu Eboni puxando-a pelos cabelos. Ela gritou e começou a coicear o ar, tentando afastar os pesados braços dele de sua face. Mas o homem logo apontou a arma para sua cabeça. A doutora sentiu o metal frio contra sua têmpora, e engoliu em seco. Parou de se mover instantaneamente.

— Escuta aqui coelhinha, você vai me ajudar a escapar, tá entendendo? Eu sei que vocês ratos da Barbara conhecem passagens secretas pra fora daqui. Antes de eu ser demitido eu conheci alguns caminhos, mas com certeza não é nem metade do que você conhece.

— Não vai adiantar, o tiro foi alto. Os homens da Força estarão aqui em segundos.

— Então você vai arranjar uma maneira de me ajudar a escapar em segundos, ou então os filhos da puta vão ter que arranjar dois caixões, e eu vou garantir que o seu corpo torne-se irreconhecível com uma bala na sua cabeça. A Barbara vai ter que ficar catando seus miolos até ficar velha. Tá me entendendo? — O hálito do demônio estava bem perto de seu ouvido. Ele sussurrava, sempre. Mesmo agora, enquanto a ameaçava e prometia fazer coisas absurdas com ela, não conseguia elevar o tom de voz. E isso a aterrorizava ainda mais.

— Tem, uma... Saída. – Eboni disse, arfando. Sua respiração se tornou pesada, e subitamente o corset azul marinho com detalhes em prateado, que minutos atrás achava elegante, agora considerava como um espartilho de ferro. Suas calças jeans azuis também eram apertadas, assim como as botas. Com a adição da arma de Tyrone contra sua cabeça, era difícil conseguir realizar qualquer movimento.

— Então me leva até lá. – Ele disse.

Eboni pediu que ele a soltasse e caminhou até uma estante apinhada de livros que tinha no fundo da sala. Ela trocou uns cinco livros de lugar e então se abaixou para debaixo de sua mesa. Tyrone assustou-se, achando que ela fosse sacar uma arma, mas a mulher voltou sem nada. Ela havia apertado um botão. Ouve alguns segundos de mortal silêncio e então um barulho de apito seguido de um clique. A doutora voltou a caminhar até a estante e puxou um livro. Tyrone conseguiu vê-lo claramente, era um livro sobre genética, com a capa azul celeste. Subitamente o móvel de carvalho deslocou-se para a direita, revelando uma passagem secreta. Ali havia uma porta de metal por onde um vento gelado entrava pela fresta. Não importava para qual lugar aquela porta daria, uma coisa era certa: era para fora. Eles estavam num dos andares mais superiores da Colmeia, mas ainda sim aquilo era subterrâneo, e se havia corrente de ar, havia a superfície.

— Vem. – Ela pediu. Ele a seguiu, com a arma apontada para a cabeça da doutora Waterson. A mulher já havia aberto a porta, e revelara um estreito caminho cercado por rochas úmidas e cheias de musgo.

— Qual seu plano, Eboni? Se eu não te matar, os homens da Força te matam quando souberem que me ajudou. Acabou pra você, pra quê prolongar o sofrimento? Pretende fugir comigo?

A doutora Eboni Waterson permitiu-se um risinho rouco, era uma estranha maneira com que ela reagia quando estava encurralada. Enquanto caminhava pela estrada de pedra úmida e cheia de musgo e limo, disse:

— Pretendo fingir-me de vítima, o que sou não é verdade? Eles sabem que só você seria imprudente a ponto de matar uma secretária. Vou dizer que me obrigou a fazer tudo isso. Quero que, antes de fugir, me acerte com um poderoso golpe. Algo que faça minha cabeça sangrar. Com sorte Barbara se apiedará de mim e conseguirei um belo lugar como recepcionista da Biblioteca Central da Ilha.

— Isso ou a morte. – Tyrone completou.

— Isso ou a morte. — Eboni confirmou.

Ela seguia na frente do homem, tomando todo o cuidado para não escorregar e cair. Suas botas negras deslizavam pelo chão de pedra, tornando a caminhada muito desgastante. Além disso, havia a arma de Tyrone atrás de si, obrigando-a a ir mais rapidamente. Maldita hora que permitiu que ele entrasse em sua sala! Maldita hora que permitiu que ele entrasse em sua vida! Maldita! Ele conseguira em poucos minutos arruinar tudo o que ela tinha planejado fazer e feito durante meses, anos. Restava que a doutora Barbara Goodway a perdoasse por isso. Eboni era uma cientista bastante competente e leal, porque Barbara haveria de querer sacrificá-lo por conta de um pobre demônio como Tyrone? Ele não tinha escapatória, os homens da Força iriam até o fim do mundo para encontrá-lo, se fosse necessário. Ninguém jamais havia conseguido escapar da ANUBIS, da Colmeia, de Barbara ou Alois. Ninguém. Dificilmente o anjo da morte seria o primeiro, com suas unhas vermelhas e seu hálito de limão.

— Aqui. – Eboni abriu uma porta de metal usando seu crachá e suas impressões digitais. Ouviu-se um barulho semelhante ao da outra porta, com o apito e o clique. Ela entrou, seguida de Tyrone. E então ele percebeu de onde vinha a corrente de ar: não era o vento do andar superior. Era o gélido vento de refrigeradores e ar condicionado.

Os dois estavam numa ampla sala toda feita de aço. Havia várias geladeiras e refrigeradores ali, bem como mesas com utensílios de aço brilhantes.

— Eu já vim aqui. É a sala da colheita. — Tyrone afirmou com pesar. — Essa sala dá diretamente no corredor mais apinhado de gente que existe nesse complexo. Sua maldita! Você está me levando para uma armadilha! — Tyrone jogou Eboni contra um freezer e apontou a arma para o pescoço dela. — Sabe o que eu deveria fazer? Estourar sua cabeça, aqui e agora.

— E por que não faz isso? – Eboni disse, arfando.

— Porque eu te amo sua filha da puta. — Foi tudo o que o anjo negro conseguiu dizer. Ele retirou a arma do pescoço dela e deixou que a mulher levantasse. Eboni estava abismada, embora descrente. Tyrone não sabia amar ninguém a não ser ele mesmo. Não era por isso que ele usava os brincos maiores que os dela, pintava as unhas, vestia-se como um mafioso? Não fazia tudo parte de seu egocentrismo doentio, do seu desejo de ser adorado e temido? Subitamente, todos esses aspectos da personalidade do anjo negro convergiram para um ponto chave: ela.

Lembrou-se de uma ocasião em que disse que achava besteira que homens tivessem medo de se vestir como gostariam, com medo do julgamento alheio. Que achava sensuais os brincos, as unhas, a personalidade. Que ficava excitada quando ele falava com ela entre sussurros, quando usava o perfume com fragrância de limão. Lembrou-se de dizer que ela o amava ainda mais quando o temia. Então tudo estava claro: Eboni Waterson fizera de Tyrone Eddowes o que ele era. Em cada uma das dez unhas vermelhas de suas mãos havia o toque dela inscrito. Ela podia abandoná-lo, mas ele jamais a abandonaria, porque uma parte de sua alma e de seu coração havia cedido, irremediavelmente, espaço para ela. No fim das contas ela também era o anjo da morte.

— Eu... Fui eu... – Ela sussurrou, e sentiu como se uma parte dele tomasse conta de si mesma. Sentiu as trevas em suas entranhas, sentiu um poder e uma escuridão nova dentro de si. Era como se finalmente ela o compreendesse por inteiro, como se agora ela conseguisse enxergar o que ele enxergava e que antes Eboni considerava maluquice. Subitamente ela odiou Barbara, e odiou todos os membros da Força e da ANUBIS. — Me leve com você. — Havia pesar em sua voz. — Eu vou. Me leve com você. Vamos fugir, vamos deixar esses filhos da puta se foderem sozinhos! Vamos!

Tyrone soltou seu meio sorriso sem os dentes, e Eboni puxou-o pelas mãos. Os dois atravessaram a sala e saíram por mais uma saída secreta que a doutora conhecia. Fizeram isso por mais cinco vezes, até que estavam num corredor desconhecido pelo anjo da morte. Ele era todo de aço brilhante, e nas portas havia inscrições de perigo biológico.

— Que porra de lugar é esse, coelhinha?

— É a ala onde eles mantêm as armas biológicas. Eu estive aqui somente uma vez, acompanhada de Barbara, quanto ela veio visitar o Lyric.

— Quem é Lyric?

— É o bebêzão de Barbara.

Tyrone não insistiu no assunto.

— E onde esse corredor vai dar? Pra onde estamos indo?

Eboni suspirou, cansada de explicações e perguntas.

— Eu estou tentando chegar ao local onde os homens da Força guardam os Jet skis.

— Nós vamos fugir de Jet ski?

— Isso ou a morte. – Eboni concluiu.

— Isso ou a morte. – Tyrone concordou.

A doutora abriu uma das salas com a inscrição de perigo biológico. As paredes eram iguais a todas as outras, com a exceção de uma brilhante e gigantesca porta metálica onde havia a inscrição: “MA-121α”.

— O que diabos esse número significa?

— É o código para os Caçadores. Hunters.

— Os Caçadores? O que diabos são os Caçadores?

— Você não vai querer saber, acredita em mim.

Eboni pediu que Tyrone a ajudasse a colocar uma das mesas de metal no centro da sala. O homem assim o fez, colocando sua arma no chão. Eboni estava tão perto dela! Por um momento pensou em desistir de tudo aquilo: pegar o objeto, atirar na cabeça do anjo negro, e depois atirar em sua própria cabeça. Com certeza seria uma morte muito mais limpa do que a que os homens da Força dariam a ela se tivessem a oportunidade.

— O que nós estamos fazendo, coelhinha?

— Nós vamos sair por aqui. – Ela apontou para o teto, onde já desparafusava uma grade com os próprios dedos. Os parafusos eram grossos, e depois de puxar as grades por algumas vezes, ficavam moles. Era fácil retirá-los. — Pega. — A doutora Waterson disse, entregando a grade de aço à Tyrone. Ele jogou o objeto no chão e pegou sua arma.

— Eu vou à frente. – O anjo da morte disse.

Tyrone espremeu-se pelo buraco e entrou. Lá em baixo Eboni ouvia o barulho de sua arma se chocando contra o teto metálico enquanto ele engatinhava pela estrutura. O homem colocou a cabeça para fora e disse:

— Vem, eu te ajudo.

Eboni subiu na cadeira e deixou que ele a puxasse para a cima. Espremeu-se pelo duto de ventilação, e logo estava engatinhando atrás dele.

— Pra que lado...?

— Segue em frente. — A doutora confirmou.

Tyrone continuou a engatinhar na direção que ela indicara. “Que Deus seja piedoso e eu lembre-me corretamente dos caminhos que levam ao estacionamento marinho”, pensou.

De repente os dois ouviram um apito seguido de um clique. Era um barulho familiar a ambos, especialmente à Eboni.

— O que aconteceu? Que porta eles abriram? – Tyrone perguntou, sussurrando e arfando.

A mulher não respondeu. Estava congelada. Não, eles não teriam coragem. Eles não poderiam. Só Barbara tinha autorização para aquilo, e ela jamais libertaria os Hunters dentro da Colmeia. Mas então ela lembrou-se.

A porta que dava acesso à sala onde estava a subsala que era a gaiola dos Caçadores. Ela era revestida de material a prova de qualquer ataque de armas biológicas. Se Barbara libertasse eletronicamente os Caçadores dentro daquela sala, poderia trancá-la em seguida. Com isso os monstros destruiriam tudo que houvesse ali, mas não escapariam. Bastaria que se libertasse um gás tóxico e os matasse asfixiados. Os corpos das criaturas seriam incinerados, e não haveria relatórios sobre o ocorrido. Os Caçadores eram experimentos caros, mas com certeza valia perder dois ou três desde que Eboni e Tyrone (assim como tudo o que eles sabiam) estivessem mortos. Se eles escapassem e consigo vazassem os segredos da Colmeia, com certeza a ANUBIS perderia muito mais que apenas três Hunters.

— Corre Tyrone! – Eboni gritou, sem censura alguma.

O homem começou a engatinhar com mais rapidez, mas então Eboni ouviu. O grunhido dos monstros, bem como seus passos. Ela já havia visto um deles dentro de um tubo, mas nunca em ação. Eram criaturas terríveis, com escamas verdes e olhos de morte. Tinham garras gigantescas que arrastavam pelo chão (era de se supor, já que as garras eram maiores que suas pernas), e brilhantes dentes afiados. Ouvira de Barbara que um Hunter tinha dilacerado um cavalo como se seu corpo fosse feito de manteiga. Eboni estudara vários aspectos genéticos das criaturas, e sabia bastante bem como o organismo deles funcionava. Nada disso, porém, conseguiria salvá-la se os Hunters a atacassem. Eles não tinham um obvio ponto fraco.

— Mais rápido!

A doutora conseguia sentir os passos abaixo de si, as pegadas. De repente ouviu o barulho de um pulo. Sentiu que algo próximo a ela se rasgava como papel alumínio. E então Tyrone virou o rosto, encarando-a. Havia pavor em sua expressão. Pela primeira vez Eboni o viu amedrontado. E aquela era uma visão aterradora. De repente, o anjo negro cuspiu algum sangue. E então caiu. Eboni aproximou-se dele e começou a chacoalhar seu corpo. Não houve reação. Quando a doutora virou-o com a barriga para cima, viu: havia um enorme buraco em seu abdômen, por onde suas tripas começavam a escorrer. Embaixo dele o aço do duto de ventilação fora dilacerado. Um dos Hunters pulara contra o teto e matara Tyrone com suas garras.

Eboni Waterson colocou dedos sobre o pescoço do anjo negro e constatou que ele realmente estava morto. O sangue de sua barriga encharcava a camisa alinhada e incrustada de strass brilhante. O tom sangrento era mais escuro que o de suas unhas ou gravata, e em segundos ele estava embebido no líquido vermelho. As roupas da doutora também sofreram, e suas calças e corset azuis estavam quase roxos devido a mistura de cores. Subitamente o aço gelado sob suas mãos e joelhos pareceu ainda mais frio, e seus ombros desnudos pareciam querer congelar seus movimentos.

“Eu tenho que fugir”, disse para si mesma. “É isso ou a morte”. Ela então passou com cuidado por cima do corpo de Tyrone, onde o metal havia sido dilacerado. Pela fresta que se abrira, ela conseguiu ver se relance o vulto de um dos Hunters. Ele com certeza não estava só. Barbara ou quem quer que houvesse ordenado a soltura das criaturas, não teria deixado aquele sozinho. Ou teria? Os Hunters podiam ser violentos entre si se julgassem que estavam ameaçados. Mas não haveria tempo pra isso: Eboni e Tyrone estariam mortos antes mesmo deles terem tempo de brigar entre si. A doutora sentiu-se traída, mais do que qualquer outra coisa. “Eu trabalhei anos para vocês, eu os ajudei a construir esse maldito complexo. E agora que eu não tenho mais valor, vocês me descartam. Eu devia saber, ah, eu devia...”.

E devia mesmo. Ela vira em duas ocasiões, a morte de antigos cientistas. O primeiro ela não chegara a conhecer o nome, mas era velho. Ele decidira se aposentar e mudar-se para a França. Alois gentilmente oferecera a ele uma elegante cobertura na Ilha, em qualquer um dos hotéis que ele desejasse. O príncipe disse que era uma espécie de reconhecimento para com os serviços bem prestados à companhia durante anos. O velho desagradou-se da oferta, e disse que iria para a França. O príncipe ainda tentou convencê-lo do contrário, mas não surtira efeito. Eboni estava na sala da colheita, quando os homens da Força chegaram para levar o velho. Primeiro ele pedira rudemente que os “cachorros de Alois” esperassem ele terminar o que estava fazendo. Os cachorros não gostaram. Arrastaram o velho doutor aos empurrões, entre gritos e protestos. Eboni não chegara a ver a morte dele, mas sabia de cada detalhe de como fora, graças a relatos de Barbara. Eles o deixaram na cela dos mortos. Os tais estavam acorrentados por uma fina e vagabunda corrente de latão, presos em suas celas. Barbara dissera que o velho aguentou por dois dias e duas noites, antes que as correntes dos mortos arrebentassem e eles investissem contra ele. O resto Eboni já sabia antes de a outra doutora lhe dizer. Os mortos arrancaram cada pedaço de carne do homem, até que restavam apenas ossos. Também, pudera: os mortos da Ala 151 jamais haviam sido alimentados, desde a sua morte, meses atrás. Na primeira vez que viram carne, não é difícil imaginar o quão famintos estavam. Ninguém ouvira os gritos de horror do velho: Barbara acompanhava tudo apenas através de telões, sem atrever-se a ir pessoalmente até a Ala 151. Era uma silenciosa regra dos membros mais poderosos da ANUBIS: jamais sujar seu jaleco de sangue.

A outra ocasião fora menos assustadora. Aconteceu com uma nova cientista, mais nova que a própria Desireé. Eboni um dia soubera seu nome, mas agora, depois de tanto tempo, se esquecera. Ela começou a fazer perguntas demais, e acidentalmente acabou caindo do topo do despenhadeiro de Ponta Tempestade, onde ficava o esconderijo do príncipe Alois. Dizia-se que o homem não estava lá na ocasião, apenas sua assistente Johanna. De qualquer forma a garota nunca mais fora vista, e ninguém ousou perguntar por ela. Metade da ANUBIS já sabia o destino dela, e a outra metade tinha tanto medo de ter o mesmo destino, que preferiam não saber sobre o ocorrido.

Agora, presa nos dutos de ventilação, Eboni tinha quase certeza de que ela seria mais uma. Se fosse supersticiosa acreditaria que aquela era alguma espécie de justiça divina. Ela não pensara em ajudar o velho ou a garota. E agora teria o mesmo destino. Não. Ela jamais poderia ajudá-los. Eles haviam condenado a si mesmos: sabiam o que significava entrar para a ANUBIS. Sabiam que a porta de entrada era metálica, eletrônica e elegante, e a de saída era feita de pedra, musgo e raízes. Somente o caixão os livraria do seu dever.

Eboni lembrou-se da ocasião em que proferiu as palavras que mudaram sua vida, e a carregaram para aquele destino cruel. Ela chegara junto da primeira leva de cientistas que a ANUBIS recrutara, os primeiros que não eram ex-cientistas da Umbrella. Da sua turma de novatos, ela era a única que restava. Todos haviam saído dali. Alguns foram enviados para missões na superfície, mas a grande maioria teve o caixão como destino. Bom, pelo menos simbolicamente. Alguns ainda estavam presos ali, nos andares mais subterrâneos, como a Ala 151. O certo era que a ANUBIS sabia recompensar seus membros, mas sabia melhor ainda como puni-los. A mulher desejou jamais ter conhecido a empresa. Mas agora era tarde demais. Estava feito.

Debaixo de seus joelhos, a doutora sentiu a grade. Começou a desparafusá-la com empolgação. Não havia dois dutos na mesma sala, e se ela encontrara mais uma grade ali, significava que já estava em outra sala. Os Hunters não conseguiriam entrar ali, e se ela estivesse certa, aquela era a sala que conduzia ao estacionamento marinho. Depois de estar fora da Colmeia, tudo seria mais simples. Poderia procurar seu pai, o grande e rico senhor Ray Waterson, e ele a ajudaria a se esconder e começar uma vida nova. Poderia trocar de nome, de rosto. Imaginava-se loira, de cabelos longos, e com o nome de Cherry Coleman. Escapar seria o mais complicado. Após isso tinha seus planos feitos.

Desceu do duto sem verificar a sala. Tolo erro seu. Tolo. Muito tolo.

Ela estava exatamente dentro da gaiola dos Hunters. À sua frente havia uma porta aberta, a porta que Barbara havia aberto para deixar que os monstros saíssem até a sala onde estava o casal. A porta dessa outra sala estava infestada de criaturas, e eletronicamente fechada. Eboni pensou em correr e fechar-se dentro da gaiola, mas não teve tempo. Os monstros sentiram seu cheiro, e em segundos havia cinco ao seu redor. Cinco! Mais do que ela imaginara. Quando todos eles entraram, a porta da gaiola se fechou. A ANUBIS não precisaria perder os Hunters, eles tinham a isca perfeita. Ela.

A doutora só teve tempo de arfar. Os olhos deles se prostraram nela com sede de sangue. Seus dentes brilharam e reluziram diante da fraca luz que vinha dos tetos baixos. A mulher tentou pular até o duto, e obteve certo sucesso. Suas mãos agarraram a estrutura no teto, e ela ficou pendurada. Mas isso não foi empecilho aos caçadores. Ela sentiu apenas o primeiro golpe. Um dos monstros atingiu sua barriga em cheio, dividindo seu corpo ao meio. A parte de baixo de Eboni caiu primeiro, e os monstros competiram entre si para estraçalharem-na. A parte de cima ficou presa ao teto durante algum tempo, mas logo caiu. Os Hunters eram comedores barulhentos, mas ninguém ouviria.

Barbara estava em sua sala, observando através dos monitores. Viu quando um dos Hunters arrancou a cabeça do meio corpo inerte de Eboni.

— Vadia desgraçada. — Murmurou para si mesma. — E pensar que eu estava prestes a nomeá-la como minha vice...

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.