O Anjo Perdido

Capítulo 5. O Começo da Guerra


Capítulo 5 – O começo da guerra

Na mesma noite em que regressou da rua após ter estado com sua amiga misteriosa, Castiel se propôs, de fato, a representar; ser Samuel era o objetivo agora. E ele conseguiu. Foi até, de modo surpreendente, bastante comunicativo, o que deixou Felipe e Heloísa muito felizes. Eles voltavam, aos poucos, a ter confiança no filho.

– Que pena! Em breve tamanha confiança será quebrada – pensava, agora no quarto, depois que os pais foram dormir. – Mas se isso vier a salvar o garoto, estou disposto a tudo. Só espero que aquela moça não me abandone agora... – Ele parou, de imediato, com as reflexões; avistou, no cômodo, uma luz intensa e incessante e ouviu, também, um barulho ensurdecedor. Então, procurando refugiar-se, Castiel foi para os fundos da residência. Lá, nem Felipe e nem Heloísa acordariam com qualquer som. Porém, assim que chegou ao pátio, um homem alto o segurou pelo braço, enquanto dizia:

– Você não devia ter se lembrado... Não devia...

– Que quer, Ediel?

– Sabe quem sou eu?! Não pode ser! Que droga! Quem o está ajudando?

Instantes se passaram. Nenhuma palavra foi proferida pelo rapaz. Instintivamente, ele sabia que não poderia revelar quem era a criatura, primeiro porque não tinha a mínima idéia de seu nome e segundo porque não queria falar nada.

– Você não me entendeu – o homem ergueu o jovem no ar com muita facilidade. – Quem é a mulher?

– Não sei – o garoto começava a se sentir sufocado. Por mais que estivesse em um corpo físico, Castiel sentia tudo com a mesma intensidade ou até pior; era como se ele fosse morrer, não Samuel.

– Quem é a desgraçada que...

– Sou eu, Inteligência Divina! – o homem tombou, juntamente com o rapaz porque, ao chegar, ela atingiu Ediel com extrema força. E após uma pausa, prosseguiu em sua fala: – Tente descobrir quem sou eu agora?

O golpe nas costas do mais novo inimigo deles tinha sido tão forte, que o deixou imóvel por preciosos instantes.

– Está bem, anjão? – Perguntou a demônia.

– Sim, obrigado.

– Venha, vou tirar você do pátio... – a garota, todavia, não completou a frase. O homem tornara a se erguer e agora partia para um duelo contra a ajudante do jovem.

Por mais que pretendesse auxiliá-la nos instantes da batalha, tudo era bastante confuso para Castiel. Ele sequer conseguia distinguir como estava a luta, de tão rápida que transcorria. Mas, ao treinar por tanto tempo uma silenciosa meditação, pensou em utilizar tal artifício para ajudar aquela que lhe salvara a vida. A concentração do rapaz foi bem mais apurada do que antes. Quando achava que era Samuel Wolkmmer, não podia ir tão fundo assim nas meditações; agora, entretanto, era diferente; ele poderia auxiliar a mulher. Ao atingir um ponto de concentração ideal, Castiel pôde vislumbrar com nitidez a batalha. E, ao fazê-lo, ficou chocado. Jamais se recordara de quão sangrentos eram tais duelos. Mas não havia tempo para pensar nisso agora. Sua amiga estava bastante ferida; ele precisava agir.

Em um golpe certeiro, o anjo apenas encostou as mãos na cabeça de Ediel, que, assim que sentiu seu corpo queimar por dentro, desapareceu. Antes, contudo, o ser os ameaçou.

– Voltarei em breve. E descobrirei quem é você e por que quer ajudá-lo, demônia – falou, apontando para ela. – E quanto a você, Anjo Castiel, espere; em breve terá o que merece.

– Venha. Eu levo você – após mandar o inimigo embora, era necessário cuidar dos ferimentos dela. E foi o que ele fez. Aplicou remédio em todos os machucados; a auxiliou a tomar um bom banho; deu-lhe algo para comer. E, o que era mais curioso, sem que Heloísa e Felipe acordassem.

Ao apresentar alguma melhora, Castiel a levou ao quarto e a deitou em um colchão que arrumara para acomodá-la mais adequadamente.

– Lembro-me do anjo que nos atacou; o conheço de outros Ciclos – comentou, assustado. – Mas não imaginava que Ediel fosse aparecer...

– Nem eu. Demorei, me desculpe. Amanhã veremos isso; gostaria de saber o que, exatamente, você se recorda a respeito daquele ser insano. Está bem?

– Sim, está bem. Ah, não precisa me pedir desculpas – falou, enquanto apertava a mão dela. – Você veio, e saímos dessa juntos.

– Por que me presta assistência, se sou do lado negro?

– Por que me auxilia, se sou um anjo? A questão é a mesma. A resposta também será, creio.

– O que você me diria? – perguntou.

– Que a ajudo porque salvou minha vida e porque quer que eu regresse para minha casa. E você, qual resposta me daria?

– Porque me salvou e porque não acho justo o que fazem.

– Como assim não acha justo?

– É... Desumano. O que fazem com alguém como você... Entende?

– Mais ou menos. Como pode considerar algo desumano?

– Porque tenho sentimentos. A diferença é que não os uso para nada. Está na hora de praticá-los um pouco agora. E aproveitei a oportunidade para ajudar você, que caiu aqui e que tornará a aprender a usar os poderes que possui de maneira segura.

– Como os pais de Samuel não acordaram com tamanha balbúrdia? – quis saber, curioso.

– Fiz um feitiço que prolongará o sono deles até o meio dia de amanhã. Como é madrugada de sábado, não vi maiores problemas.

– Tudo bem. Desde que eles estejam seguros...

– Totalmente. Bem, agradeço por toda ajuda. Vou indo...

– Não, fique – interrompeu-a.

– O que? – perguntou, surpresa.

– Durma aqui. Amanhã você vai. Mas precisa se recuperar antes.

A garota estava atônita. Não acreditava que ele fosse ser tão acessível, atencioso e amável assim.

– Obrigada – falou, enquanto se acomodava.

– De nada. Durma bem. Qualquer coisa, me chame. Certo?

– Sim.

A exaustão pela batalha de uma hora atrás tinha sido tão grande, que ambos adormeceram sem problemas, ainda que a ansiedade e a incerteza os dominassem; queriam desvendar o que havia por trás de ataques tão hostis.

Aproximadamente uma semana se passara após a curta batalha de Ediel contra a demônia e o anjo. Depois de tal acontecimento, nenhum outro importante fato havia ocorrido até então. Ele continuava a representar, a ser Samuel Wolkmmer. Ia para a aula, conversava com os colegas Henrique, Eduarda e Vinícius, voltava para casa e, às vezes, falava com a misteriosa amiga; ela, contudo, seguia na busca de novas pistas sobre o motivo pelo qual o ser celestial viera parar no planeta azul. Mas nada mais havia; tudo estava calmo, o que a inquietava demais.

Sentada em um bar, com um copo de vinho à sua frente, a moça procurava raciocinar a respeito da missão que se propusera a concluir. E pensava, também, no porquê de não obter sucesso com as novas mexidas na mente dele. Castiel se recordara de mais alguns relevantes episódios sobre sua longa jornada no Céu – marcada por incontáveis Ciclos de dedicação irrestrita às tarefas angelicais –, entretanto nenhum deles os levou a desvendar os atuais problemas que se apresentavam.

Depois de esperar muito, e de recitar inúmeros rituais em latim, Samael resolveu, por fim, aparecer. E ele estava sério demais. Vestido de negro dos pés à cabeça e com o semblante fechado. Só por isso a mulher já sabia: Lúcifer tinha conhecimento, através de outros informantes menos confiáveis, das diversas decisões que ela tomou e das ordens que foram dadas a Belzebu.

– Olá. Quer beber algo? – perguntou, tentando deixá-lo à vontade.

– Não. Vim somente para conversarmos. Outros demônios puseram-me a par de tudo que você tem feito no Vale. E nenhuma das decisões me agrada. Por que mandou o General torturar as entidades? – a questão foi direta.

– Porque eles têm se aliado a outro ser – explicou, de maneira simplória. Não se sentia apta a falar mais.

– E por que não me comunicou isso antes?

– Porque nunca o encontro quando sai assim – contra-argumentou.

– Ora, pare de se queixar! Sempre estou por lá. Quando resolvo me ausentar de casa, é para solucionar problemas inadiáveis.

– Sei disso. Não questiono o fato de que é preciso que se retire; só justifiquei, por assim dizer, por que tomei tais decisões.

– Devia ter me esperado; eu controlaria a situação do meu jeito – comentou, com severidade. – Não quero ver você metida em questões tão complexas.

– Mas bem sabe que essa alternativa não existe. Quando se ausenta do Vale, seja lá pelo que for, eu é quem devo ficar em seu lugar.

– É. Só que isso irá mudar – o tom era definitivo, como se a decisão tivesse sido tomada.

Quer me arrancar do poder quando não está presente? Vá em frente! – exclamou. – Quem colocará no comando? E por que me tirará? Acaso fui má administradora dos assuntos locais? Fiz algo contra nossos leais serviçais? Descumpri alguma coisa, Príncipe Samael?

A forma de expressão dela o irritava. Detestava quando era tratado de uma maneira tão formal e ríspida. E, acima de tudo, ele sabia que a demônia estava certa, o que era péssimo para si, pois ao discutirem assuntos relacionados ao lar no qual viviam, Lúcifer sempre gostava de manter a razão no que proferia. Quando saía do lugar, porém, o comando sempre passava para ela, porque O Príncipe das Trevas confiava em seu potencial.

– Está bem – dizia, confuso. – Você tem toda razão. Em todos esses Ciclos de obscuridade, jamais tive a mínima suspeita de que tenha ido contra nossas leis, e sei que nunca obterei tal confirmação.

Então não irá me tirar do comando provisório? – quis saber, esperançosa de que ele a entendesse.

– Não. Só estou descontente com o que tenho escutado por aí - justificou.

– Esse é seu problema: você escuta demais, sabia? Por que não faz o mais fácil: pergunte para mim o que deseja saber...

– Ótimo! – interrompeu-a. – Antes de tudo, que história é essa de ajudar um humano qualquer?

– Mas o seu informante é um imbecil. Ele não contou por quais motivos auxilio o garoto? Vejo que não – comentou, enquanto servia mais um copo de vinho para si. – O menino que ajudo não é um simples humano; Castiel habita o corpo dele.

– Pior ainda! Por que presta socorro a um anjo? Deixe que os seres celestiais cuidem dos assuntos que lhe competem!

– Hum... Mas será que você está com algum problema de conexão mental hoje? Castiel foi atirado no planeta Terra por motivos ainda desconhecidos por mim. E muitos demônios que habitam o Vale o querem por lá.

– Por isso mandou torturá-los?

– Olha! Descobriu que o fogo queima – disse, debochando. – Exato. Aqueles que confirmaram serem parte do plano de Abdiel foram executados. Outros estão presos ainda. Vamos ver o que acontecerá a partir disso.

– Estavam. Como fui ao Vale antes de ser chamado aqui, ordenei a Belzebu que os soltassem imediatamente.

– O que? Não... Não acredito que fez isso sem vir falar comigo antes! – comentou, furiosa. – Será que não entende que querem destronar você? E sabe-se lá por quê? Tento, com minhas atitudes, defender seu trono no Vale e garantir que sequer seja ameaçado, e me agradece dessa forma...

– Espere... Só um instante... – Samael fez uma pequena pausa. – Você falou que Abdiel está por trás disso tudo? Eu ouvi direito? – perguntou, em baixo tom.

– Ah! Agora está entendendo onde quero chegar com essa conversa? – ela respirou aliviada.

– Sim, estou. O anjo que caiu comigo e com nossos pares, mas que não foi para lugar algum está a tramar alguma coisa. Desculpe-me; cometi um grave erro ao retomar o comando de um modo tão irresponsável.

– Pois é. Vamos fazer o seguinte, suma do Vale por uns tempos – sugeriu, a fim de protegê-lo.

– O que?

– É isso aí. Procure um canto, alugue um quarto de hotel, transe com alguma garota mal amada... Enfim... Se divirta e permaneça longe do Vale por uns tempos.

– Bem, não gosto quando debocha assim, mas compreendo que ficou irritada porque decidi libertar os demônios...

– Claro! Agora eles virão em peso atrás de Castiel. E não são apenas os nossos... Tem aqueles que se dizem seres bons... Eles pretendem, a qualquer custo, apagar de novo as memórias que reavivei no garoto.

– Então vamos pegar os demônios, levá-los de volta para o Vale, prendê-los lá e nós não precisamos nos envolver com mais nada.

– Nem pensar. Ajudarei Castiel – a moça se mostrava irredutível.

– O que viu nele para prosseguir com essa loucura?

– Escute aqui, Lúcifer Estrela da Manhã – falava, mais irritada ainda. – Não conduza o assunto para esse viés. Porque se o fizer, a noite será longa. Inclusive posso começar a dissertar...

– Não há necessidade disso. Está tudo bem, não precisa se irritar dessa maneira comigo. Mesmo contrariado, farei o que me sugeriu: darei um tempo e não irei ao Vale por esses meses.

Mas buscará os demônios antes, não é?

– Claro que não! Se me disse para ir embora, assim procederei. Confio em você, sei que possui capacidade e força para conduzi-los de volta às sombras do abismo. Até porque, conheço a malignidade que possui; sei que matará os que se negarem a retornar a nossa casa. Então deixarei tudo nas suas mãos.

– Diga-me uma coisa, Mephisto foi libertado também?

– Sim, todos foram liberados das amarras. Infelizmente agi impulsivamente; devia ter falado com você antes. Mas que fique bem claro que considero loucura nos envolvermos em algo ligado a Deus. Expulsaram o tal Castiel do Céu? Ótimo! Talvez ele seja o novo Lúcifer. Falando sério... deve haver um bom motivo para jogá-lo aqui... Quem sabe o anjo não desobedeceu às Leis do... Senhor do Universo?

– Samael, saia da minha frente – disse, de maneira áspera.

– Está bem... – ele sabia, em seu íntimo, que tinha ido longe demais em suas afirmações; e sentia, também, que a negativa que lhe dera para recapturar os demônios tinha sido algo muito pesado. – Se precisar de auxílio, ou se me quiser como companhia, me chame.

– Como se você fosse vir num instante, não é? – contra-argumentou, amarguradamente.

Lúcifer se levantou bruscamente, sem dizer mais nada a ela. Ele estava contrariado por não poder voltar ao lar, por não ter como exercer o maligno império na obscura região novamente. Mas ficava tranqüilo por saber e por sentir que a moça não tomaria nenhuma atitude radical para romper com a sólida estrutura do Vale dos Caídos.

A única coisa que não conseguia entender era o motivo pelo qual a mulher entrara nessa insana guerra. E por que, afinal de contas, desejava proteger Castiel, se era bem mais fácil prender todos os demônios no subsolo e esperar que a memória do rapaz fosse limpa de novo? Samael tentava compreender quais questões pessoais que a levava a zelar por um anjo do Senhor. Os pensamentos, porém, estavam tão incertos quanto os vários passos que já dera, caminhando pelas ruas próximas ao bar de onde saíra há poucos instantes.

Acuado, e sem saber bem o que fazer para ajudá-la, Lúcifer decidiu que era melhor regressar ao Vale para ordenar a Belzebu que recapturasse os supostos rebeldes; era o mínimo que Samael podia fazer para cooperar, indiretamente, com a missão dela e para, ao mesmo tempo, se desculpar de algum jeito por ter sido tão rude com a única demônia em que podia, de fato, confiar.

Enquanto isso, no bar, sentada, a garota segurava o copo cheio de vinho. Entretanto não sabia se tomava o líquido. A amargura pelo profundo descaso que Lúcifer tinha para com ela era enorme.

– Ele não precisaria demonstrar interesse pelo que faço por aqui. Mas podia, ao menos, se preocupar... Não, melhor deixar assim – a moça sorveu todo o vinho em um só gole e observou quem adentrava o local.

A mulher se surpreendeu ao ver Samuel, Felipe e Heloísa entrarem no bar. Os três pediram lanches para o atendente. E ela, de cabeça baixa e preocupada com o fato de que as entidades tinham sido libertadas, pagava a conta pelo que bebera. Antes que saísse do local, porém, o jovem veio ter com ela. Convidou-a a se sentar e iniciou sua fala:

– Não foi coincidência termos vindo parar aqui – comentou Castiel. – Rastreei sua energia e convenci os pais do garoto a comermos algo fora. E fiz isso porque preciso conversar com você. Posso?

– Sim – a moça pôs-se de pé. Estava agitada e confusa. – Vou lá fora fumar. Quer vir comigo?

– Quero. Mas se apresente a eles antes, por favor.

Assim que trocou rápidos cumprimentos com os pais do menino, a mulher foi à rua, acompanhada por ele.

– Já consegue rastrear meu campo energético? – perguntou, após tirar algumas baforadas.

– Sim. Gostou da novidade? Era isso que queria lhe contar.

– Gostei. Os resultados estão excelentes até agora. Nenhuma evolução abrupta; isso é ótimo!

– Concordo. Mas quanto tempo mais eu terei de permanecer aqui? Estou ansioso para assumir um corpo físico somente com minha força energética.

– Mantenha-se calmo. Em breve iremos embora dessa cidade e poderemos partir para a outra etapa do processo.

– Mas ... Por que não posso fazer isso por aqui? Será complicado tirar Samuel dessa cidade...

– Sei disso, Castiel. Mas precisa ser feito. É por você e pelo garoto também.

O anjo fez um gesto afirmativo com a cabeça. Por mais que lhe doesse ir embora, aquilo era fundamental para seguir com o processo de reavivar suas lembranças.

– O que há? – perguntou. – Parece triste...

– Não. Demônios não ficam tristes. Nós não temos sentimentos... Jamais sentimos nada – dizia, enquanto tirava os óculos.

– Como não? Se fossem desprovidos de sentimentos como diz serem, por que quer me ajudar então?

– Porque quero que a justiça seja feita.

– Isso é um sentimento. Sabia?

– Sim – ela parou de falar e se virou de frente para o anjo. Lágrimas escorriam de seus negros olhos.

– O que foi? – questionou, preocupado. – Algo aflige você?

– Não, está tudo bem. Eu só...

– Filho, os lanches estão servidos – comentou a mãe, que interrompera bruscamente a conversa dos dois, sem sequer notar que a mulher não se sentia bem.

– Espere-me lá – respondeu o rapaz. – Não tardarei a voltar. Ao perceber que a amiga do filho chorava, Heloísa retornou ao bar, deixando-os sozinhos.

– Pode falar agora, por favor. Não disponho de muito tempo. O que há, por que está assim?

– Escute, E ouça bem; não sei se sobreviverei após zelar por você...

– Como é? Por que diz isso?

– Deixe-me terminar primeiro, por favor. Não sei se ficarei viva após isso tudo. Mas se eu não conseguir suportar as coisas que virão, gostaria muito de que não se esquecesse da conversa que tivemos ontem. Gostaria de que não se esquecesse do porquê... – a moça não conseguiu terminar a frase. As lágrimas, agora, eram ainda mais presentes do que antes. Como Castiel sabia de que assunto se tratava, apenas a abraçou com força e disse:

– Não me esquecerei, claro. E, acredite, nem Deus se esquecerá.

– Deus? ... Ele não liga para mim há tempos.

– Mas o Senhor sabe que me auxilia. Então Ele não se esquecerá disso. E você suportará essa batalha, sem dúvida. Juntos nós a venceremos – Castiel tornou a abraçá-la. – Posso ir ver você após a aula de amanhã. Quer?

– Sim, sem dúvida.

– Agora vou comer. Mas me prometa que vai se cuidar, por favor?

– Prometo.

– Ótimo. Até amanhã então.

A demônia beijou a testa dele e atravessou a rua; postou-se atrás de uma árvore. Castiel, por sua vez, entrou no bar.

– Quem é a moça, filho? – perguntou o pai, assim que o jovem sentou à mesa.

– A conheci em frente à escola. Ela me ajudou quando quase fui atropelado por um enorme caminhão.

– Nossa! – exclamou a mãe. – Então por que não a convidou para lanchar conosco? Seria um bom modo de lhe agradecermos...

– Não. Ao menos por hoje, mamãe – falava Castiel, de maneira amável. – Minha amiga não está em um bom dia.

– É uma pena! Mas podemos convidá-la a ir lá em casa para comer uma pizza conosco. Que acha? – questionou Felipe.

– É uma excelente idéia, pai.

Enquanto a conversa da família seguia, a garota se mantinha ali, do outro lado da rua; treinava sua visão aguçada. Ela observava Castiel, e se admirava com o que via.

– Como o anjo aprendeu a se adaptar as situações de maneira tão rápida e firme? – perguntava-se. – E por que demonstra tanto carinho para comigo, se sabe de minhas origens? Por que não me manda para o Vale dos Caídos, bem como fez com muitos de minha espécie? Será que o manipulo? Não – constatou. – Ele gosta de mim e pronto. Depois teremos de ver o que os arcanjos lhe dirão a respeito disso.

Ainda que pensasse em questões tão complicadas, a mulher permanecia na mesma posição; era um soldado pronto a defender Castiel de qualquer perigo que se anunciasse. E se sentia mais aliviada porque sabia que ele a entendia de algum jeito. Aquela noite seria longa. A demônia os seguiria até a residência e se postaria no pátio da casa, para zelar pela segurança dele. Com tantas entidades à solta agora, nada mais lhe importava: somente protegê-lo.

Heloísa, Felipe e o filho, por outro lado, fizeram um lanche e ficaram a conversar no bar por cerca de uma hora. Após, retornaram para casa deles. E o restante da noite foi bastante tranqüilo.

Ao amanhecer, o anjo despertou assustado. Sonhara, uma vez mais, que lhe perfuravam os olhos. Mas havia algo diferente nesse pesadelo: a espada que segurava. Agora podia se lembrar com nitidez que aquela era sua arma de guerra. Ele, porém, não tinha tempo para pensar no que havia sonhado; precisava se arrumar e ir para a escola. Ser Samuel era apenas o que lhe restava por enquanto.

– Tudo bem, filho? – perguntou a mãe, que parara em frente à porta de onde o garoto dormia.

– Sim, por quê?

– Como não saiu do quarto, achei que não estava bem.

– Estou ótimo.

Castiel se levantou da cama e abriu a janela do cômodo. O sol, que recém despontava no horizonte, entrou e iluminou todo o local. E ele permaneceu ali, parado, a admirá-lo como mais uma obra do Todo-Poderoso.

Assim que saiu do quarto, o jovem tomou um rápido café sem comer nem um pedaço de pão. Após terminar de beber o líquido, perguntou ao pai:

– Não me levarão à escola hoje?

– Conversei muito com Heloísa sobre isso, filho, e gostaria de saber o que pensa a respeito. Queremos que vá sozinho para o colégio; é um modo de verificarmos como você irá se sentir.

– Por mim tudo bem.

Os pais estranhavam o jeito diferente que o rapaz tinha de lidar com as coisas. Mesmo que se mantivesse quieto como de costume, se mostrava alguém bastante equilibrado. Era, sem dúvida, muito diferente do Wolkmmer de antes – estava mais comunicativo corporalmente, ainda que fosse firme em seus dizeres. O que eles não sabiam, era que, na verdade, o menino Samuel não estava ali há quatorze anos. E como só a uma semana e meia que Castiel se recordava, de fato, de quem era, não havia tempo hábil para pensar em englobar todas as características que a personalidade do filho de Felipe e de Heloísa tinha. Ele precisava ser e agir como o Anjo que era, com seu jeito calmo de pensar, de falar e de se portar.

O jovem pegou a mochila, a pôs às costas, se despediu dos pais e rumou para a escola. Enquanto pensava na espada que segurava no sonho da última noite, alguém o seguia. Mas ele sequer observou esse fato novo. Continuava absorto no terrível pesadelo.

– Muito bem, vamos voltar a organizar as idéias – refletia. – Se aquela era minha arma de guerra, por que a tiraram de mim? Quem era aquele anjo que se atrevera a isso? Mas... E se a espada fosse dele... É, ainda não tenho bem certeza de que ela era minha realmente... – Castiel fez uma pausa. Virou-se para observar quem o seguia; só agora o anjo notara que era vigiado com todo zelo possível. E ele vislumbrou, ao longe, sua amiga. – Oi, vai permanecer assim tão distante – Gritava. – Venha, preciso falar com você.

O rapaz queria lhe contar do pesadelo. A demônia já sabia que ele sempre tinha o mesmo sonho, só não imaginava que dessa vez novos detalhes viriam à tona.

– Como percebeu que tinha alguém atrás de você?

– Senti a energia emanada no ar.

– E me reconheceu, ou não?

– Tive a sensação de que era você. Mas não a reconheci energeticamente ainda.

– Isso não tardará a acontecer. Mas, me diga, como dormiu? O mesmo sonho, ou mudou a história?

– Não. Tudo quase igual. Mas há uma coisa... Estranha...

– Como assim garoto?

– Tenho de contar uma coisa diferente que vi dessa vez – eles continuavam a caminhar em direção ao colégio, sempre próximos um do outro. – Consegui enxergar com clareza a arma que empunhava... Tenho a sensação de que era minha espada.

– Por que tem tal idéia? O que o faz crer que era sua, e não a de outro anjo?

– Porque desde o início do sonho estou com ela em minhas mãos ou em minha cintura. Só ao final dele é que a tiram de mim.

– Quem a pegou, consegue me descrever?

– Não. Só sei que era um ser enorme. Não consegui ver quem era, porque a capa negra o cobria dos pés à cabeça. Até sua energia ficava encoberta pelo que vestia.

– E depois, o que fizeram?

– O de sempre... Perfuraram meus olhos.

– Está bem – a garota fez uma pausa. – Acho que sei por que tem esse sonho em todas as noites.

– Por que?

– Talvez seja um modo de Deus ou de algum anjo se comunicar com você. Talvez queiram que se recorde dos fatos ocorridos, para que, assim, possa voltar para sua casa no Céu. Se realmente souberem que está aqui... É só uma idéia...

– Mas pode ser plausível. Como descobriremos isso?

– Bem, tenho dois planos – enquanto ela falava, eles se sentavam em um muro ao lado da escola. – O primeiro é ir conversar com Uriel.

– Uriel... O Arcanjo ...?

– É, ele mesmo. Perguntarei-lhe se não sabe onde está sua arma de guerra e se, por um acaso, nenhum deles se recordam de você.

– Não acha arriscado fazer isso? Se você é... Uma... – Castiel parou sua fala.

– Demônia, pode dizer, não há problemas.

– É que não consigo entender como pode se considerar assim. Mas deixemos isso para outro papo. Se você é do lado negro, e Uriel não, como pretende conversar com ele? E onde o encontrará? Não necessitará de auxílio para tal procedimento?

– Anjão – Dizia, enquanto segurava a mão dele. – Mantenha-se calmo, por favor. Apenas farei algumas questões para Uriel; não enfiarei um tridente na garganta dele exigindo que me conceda as respostas de que necessitamos, até porque não pretendo virar pó. E quanto a achá-lo, deixe isso comigo. Tenho meus métodos.

– E se isso não der certo, você tem um plano b?

– Sim.

– E qual seria?

– Se Uriel não souber de nada a seu respeito, farei com que durma e monitorarei seu sonho através de um feitiço. Assim descobrirei qual anjo roubou sua espada e saberei como devolvê-la para você. Mas preciso de que me dê algum detalhe da arma, qualquer coisa de que se lembre.

– Só um instante... – Castiel iniciou um breve exercício mental para recuperar alguma coisa que julgava importante na arma que carregava. – Lembrei! – Exclamou, após um ou dois minutos. – O punho da arma era todo em violeta e o restante dela era branco; havia, também, meu nome na espada, ligado ao do Todo-Poderoso.

– Ótimo! Excelente! Que bom que se recordou. Não será difícil encontrá-la, seja pelo primeiro ou pelo segundo caminho. Mas me deixe jogar limpo antes de tudo. Certo? Tentarei dialogar com Uriel enquanto você se aprimora em conhecimentos nessa droga muito útil – a moça apontou, com um sorriso debochado, para o grande colégio. – Combinado?

– Mas não acha necessário que eu esteja junto com você quando for conversar com o Arcanjo?

– Não. Fique quietinho por mais um tempo. É bom que venhamos a recuperar sua arma de guerra antes de tudo. Depois poderá mostrar as caras se quiser. Mas não podemos pensar em confiar em ninguém agora.

– Acredita que Uriel pode ser um dos rebeldes?

– Não me atrevo a pensar isso. Mas não descarto nada, também.

– Está bem. Veja o que consegue com ele. E venha aqui após a aula. Gostaria de ter minha espada em mãos hoje. Quero treinar para pegar o traidor de Deus...

– Segure seu ímpeto, justiceiro do Todo-Poderoso – comentou. – Vamos com calma. Uma coisa de cada vez. Certo?

– Sim.

– Ótimo. Vou indo. Ao meio dia estarei aqui.

– Cuide-se, por favor.

– Com certeza – ela beijou a testa de Castiel, ato que já se tornara característico, mesmo que a convivência de ambos tenha sido pouca.

O rapaz entrou na escola para cinco longos períodos; ele passou a dialogar com seus amigos, Vini, Henrique e Eduarda; mas queria, isso sim, ir com a demônia; sentia-se ansioso para falar com Uriel. Sabia, entretanto, que a amiga estava certa. Ir com calma e preservá-lo em uma situação tão delicada era o melhor a ser feito. Seu estilo sereno de ser nunca tinha sido tão testado até então.

A moça, por sua vez, entrou em um ônibus que a levaria ao casarão que habitava no planeta Terra. Era lá onde faria as invocações necessárias para o Arcanjo: em um ambiente bastante claro e aberto.

Depois de uma desgastante viagem – o trânsito na cidade estava caótico naquela sexta-feira – a garota chegou à residência. Levou inúmeros tipos de sementes e de ervas ao pátio e acendeu três palitos de fósforo. Com o poder das mãos, fez o fogo crescer até um certo ponto e, em seguida, iniciou um ritual em latim para chamá-lo.

Ao concluí-lo, ela se sentou e esperou. Um forte ruído surgia; seus ouvidos doíam, principalmente pela densidade energética que possuía, pois habitava o Vale. Uma forte energia luminosa podia ser vista ao longe; era ele que despontava no horizonte.

– O que? Você me chama... Mas... Por quê? – Uriel estava visivelmente surpreso ao vislumbrar a demônia. O Arauto de Deus sabia de quem se tratava e a qual escalão pertencia o ser que ainda considerava enegrecido. Sua desconfiança já se fazia presente antes, quando sentiu que alguém lhe conjurara, de um modo urgente, contudo perigoso, a vir na forma angelical – os anjos só podiam vir assim ao planeta quando não fossem ter contato algum com os homens; agora, porém, ele estava mais estarrecido ainda! Esse alguém que o conjurara era uma entidade maligna! Todavia, resolveu aguardar que ela explicasse o porquê do ritual.

Uriel era alto – sua dimensão corpórea ia além da compreensão dos homens, acostumados a verem tudo pelo lado material. Ao perceber, no entanto, que fora invocado para vir a Terra, a diminuiu para dois metros e dez centímetros; tinha penas de um rubi intenso e lindo o que o caracterizava como o Arcanjo do raio rubi-dourado, além de ter grande ligação com o elemento terra e de ser um dos seres divinos com maior proximidade com os filhos do Pai que habitavam o planeta azul –, tinha, também, em suas penas, um toque dourado além da cor citada antes. Ele chegou ao pátio, sentou no chão e passou a mexer em algumas flores plantadas no jardim a sua esquerda. Quando percebeu que a moça saíra do profundo estado meditativo no qual se encontrava, perguntou:

– Por que solicita minha presença, Criatura proveniente do Vale dos Caídos? Surpreendi-me quando aqui pousei e avistei você. Tentei de todas as maneiras não vir em minha forma angelical, pois pensei que se tratava de um humano que queria, a todo custo, me visualizar. E eu, se aparecesse assim perto de um homem, certamente causaria, mesmo que não fossem essas as minhas intenções, a morte dele. Diante de sua insistência, porém, tive de aparecer com minha forma real. E... Agora estou surpreso! Por que invocou meu nome e me conjurou de maneira tão efetiva e hábil, se não o fez em Nome de Deus?

Ora, Arcanjo que detém o Fogo Sagrado, respeitado servo do Todo-Poderoso, quantos homens não o chamam em Nome do Criador? – questionou, de maneira lânguida e prosseguiu: – Muitos solicitam sua ajuda para obter mais dinheiro e sucesso; outros para não se separar do marido ou da mulher amada. E você faz seu trabalho: os escuta com paciência e com dedicação; por que eu, então, não posso chamá-lo, se o assunto diz respeito a um irmão seu?

– Do que fala, não compreendo? – Uriel usava o poder da energia celestial para manter o fogo em um nível aceitável. Enquanto isso, a garota se deitou ao chão, próxima à fumaça, para que o Arcanjo não conseguisse vislumbrar seus olhos negros.

– A Castiel... É a ele que me refiro.

– Por que se esconde, se sei quem é, serviçal de Lúcifer?

– É uma questão de respeito. Não o invoquei para brigar, muito menos para desdenhar de você, se é o que pensa. Apenas quero perguntar algumas coisas. Se não quiser me responder, tudo bem.

– Não haveria motivo algum para me negar a dar qualquer resposta que queira, desde que estas não firam os Preceitos e as Leis de meu Pai. E, por favor, sente-se. Não há necessidade de demonstrar tamanho respeito; percebo em sua energia que não quer fazer mal algum aos habitantes desse Sistema; pretende, com minhas informações, auxiliar alguém. Estou errado?

– Não está errado, Arcanjo de Deus. Bem, agradeço por querer me escutar – comentava, enquanto se sentava ainda perto do fogo. – Sei que seu tempo é precioso; peço, entretanto, que ouça a história que contarei.

Ela relatou, nos mínimos detalhes, toda a investigação que fizera sobre a vida do jovem Samuel Wolkmmer; falou, também, de quais passos teve de dar para descobrir que o garoto era, na verdade, o Anjo Castiel. E após terminar uma longa narrativa, a demônia perguntou:

– Invoquei-o porque gostaria de saber se tem alguma idéia de onde possa ter ido parar a arma de guerra que Castiel empunhava?

– Bem, não posso dizer nada a você; necessito conversar com esse jovem antes.

– Está desconfiado, não é? Juro, por minha existência desde que servi aos desígnios de Deus até agora, que não tento, com esse diálogo, ludibriar você.

– Sei disso. Mas preciso verificar com meus irmãos se Castiel está mesmo no planeta Terra, ou então o mais sábio a ser feito seria que eu conversasse com Samuel.

– Por que diz isso, Uriel?

– Não é porque duvido da sua palavra, ao contrário. Mas temos escrito em nossos registros que o anjo que diz ter caído aqui se encontra em Plutão há quatorze anos, em missão emergencial.

– E quem controla os registros?

– Irmão Ediel.

– Então veja com ele se há alguma notícia de Castiel; depois, se quiser, me procure. Poderei encaminhar você a um diálogo com o garoto.

O Arcanjo se foi sem dizer mais nada. Ele ainda estava atônito; não entendia por que um ser enegrecido o chamara de um modo tão habilidoso: com o ritual certo. E o motivo pelo qual sua presença fora solicitada o deixava ainda mais intrigado. Mesmo que não soubesse exatamente onde começar a procurar os misteriosos vestígios que o levaria ao irmão Castiel, Uriel sentia, de um jeito estranho, que a entidade tinha razão.

Enquanto isso, Castiel aguardava que a mulher voltasse do compromisso que teria. Ele se encontrava em frente ao colégio junto com Vinícius. Henrique e Eduarda tinham ido embora para casa.

– Essa sua amiga não tem telefone? – Perguntou o colega.

– Não sei. Escute, pode ir embora. Ficarei aqui a esperá-la.

– Nada feito. Vou fazer companhia ao meu mais novo amigo.

E ambos continuavam a aguardar a chegada dela. Mas a demônia não dava nenhum sinal de vida. Castiel já começava a ficar inquieto, quando vislumbrou que estava a ser vigiado. Mas agora ele sabia que não era ela que o observava.

– Vini, você precisa correr – Comentou, enquanto caminhava para o outro lado da rua.

– O quê? Está brincando de esconde-esconde agora, é? Não temos mais idade para essas coisas...

– Escute aqui, corra, por favor! – Mesmo que o anjo o tenha avisado, Vinícius foi atingido com um forte golpe no peito antes de começar a fugir. Entretanto, diferentemente do que pensara, o colega de escola não tinha ficado inconsciente com o golpe.

– Então, cara – Dizia o demônio, encarando o ser celestial com visível desdém. – Vai me encarar? Ou vai ser um bom moço e vir comigo como me pedem? A escolha é sua.

Após observar o inimigo por alguns instantes, Castiel correu, carregando Vinícius nos braços. Assim que chegaram em um parque, o anjo lhe falou:

– Preciso que confie em mim, está bem?

– Quem é aquele cara? Você é um herói e eu não estava sabendo...

– Olhe, Vini, você é brincalhão e muito legal. Então poderá fazer isso para mim; me prometa que permanecerá quieto aqui. Finja-se de morto.

– Fingir-me de morto? Tem certeza de que isso é realmente necessário?

– Sim, é. Explicarei tudo a você quando chegar a hora certa. Mas fique aqui, e não se esqueça... Finja-se de morto! – Castiel exclamou aquelas frases ao amigo e, logo depois, seguiu para uma região arborizada do parque. Lá, o demônio o esperava.

A batalha foi intensa. Ambos nem disseram nada um ao outro. Apenas se lançaram na luta como dois soldados que sequer sabiam por que duelavam. Mas os combatentes tinham posições bastante definidas. O ser celestial queria a liberdade; Mephisto pretendia levá-lo consigo.

O anjo já havia queimado boa parte do corpo que o demônio dominava. E mesmo que não fosse um bom lutador com as mãos, fazia valer, de um modo até certo ponto tribal, os ensinamentos que recebera do arcanjo Miguel nas poucas aulas que tivera com ele.

– Mãezinha do céu, aonde eu vim parar – Comentou, em baixo tom, Vinícius. – Acho, porém, que meu amigo quer nos proteger; por isso queima o outro cara... Mas como ele faz isso? Não compreendo!

Mephisto e Castiel estavam exaustos e feridos. Muito sangue já havia jorrado de ambos os contendores. Mas a luta prosseguia. Enquanto a situação se desenrolava, a amiga misteriosa do rapaz, que tinha chegado a pouco ao local, se postara debaixo do banco ao lado de onde Vinícius estava. E, no momento correto, ela saltou em cima do demônio, atingindo-o no peito com aparente mortalidade.

– Deus! – Exclamou a mulher. – Você está muito ferido, perdeu sangue demais – Ela pegou Castiel no colo e o deitou em um banco. Após, verificou se Mephisto estava morto. Como percebeu que não, passou a estancar e a limpar, apesar das dificuldades, os inúmeros machucados do anjo com extrema rapidez e dedicação. Vinícius, que via tudo de perto, tomou coragem e se aproximou.

– Ele vai ficar bem?

– Vai. Quer cooperar com seu amigo?

– Sim!

– Pegue um frasco de tampa amarela que está dentro da mochila azul a sua frente, por favor. E o alcance a mim depois.

Vinícius a obedeceu; e lhe entregou, de imediato, o frasco. A demônia passou, então, a limpar os ferimentos dele com o líquido, processo que deveria ser bastante dolorido. Entretanto, Castiel não esboçava reação alguma. Ele meditava, para armazenar mais forças ainda! Sucumbir ao desespero e às sensações não era um bom caminho a ser tomado nas circunstâncias apresentadas. Como tinha características orgânicas de um anjo, a capacidade de cicatrização que possuía era bastante avançada.

– Vini, você está bem, cara? – Perguntou, assim que saiu do estado meditativo.

– Estou bem e bastante confuso. Mas só me preocupo com você agora, amigo.

–– Que bom que não se machucou... Fico feliz. Vá embora desse parque...

– Não, ele será útil a você, meu querido – Comentou a garota. – Vinícius poderá auxiliar você.

Ah, sabia que viria, adorável amiga – Ele tocou no rosto dela com ternura.

– Procure não se esforçar; tudo dará certo, vou ajudar você, confie em mim... – A mulher de negro parou de falar; percebeu que Mephisto acordava. – É agora Vini – Disse ela. – Leve o rapaz embora! Corra com ele, carregue-o e corra!

Mesmo contrariado, o garoto passou a carregar Castiel para o V-8; ela disse a Vini que era seu carro, e que poderiam ficar lá. O veículo estava em um local seguro para que a esperassem

Ambos os seres das trevas partiram para uma batalha bastante sangrenta e insana. Embora estivesse gravemente ferido, Mephisto estava furioso; não entendia como uma entidade tão importante, que trazia consigo um espírito destemido e de forte liderança, se colocava ao lado de um Arauto do Senhor. E além disso, ele tinha uma relevante missão a cumprir: levar Castiel para Abdiel; e ela o atrapalhava de maneira extrema. Após derrubar, com brutalidade, a amiga de Vinícius e de Samuel, Mephisto falou:

– É. É realmente lamentável. Fez sua escolha e olha só no que deu. Quis lutar por um anjo e vai acabar assim: aniquilada. Terei a honra de limpar nosso nome de tamanha vergonha, sua cretina. Pensa que não sei quem é? Acha que mudar algumas características físicas seria tudo para se esconder de nós? Mas somos mais espertos; engana-se se pensava em nos ocultar a verdade; há muito que descobri...

– Honra? Acredita mesmo honrar o nome de Samael com atos sujos e com atitudes desleais?

Não sei. Não me interesso em honrá-lo, de fato. Só não pretendo que tenhamos a marca negativa de um ser como você – Ele a prendeu em um pentagrama invertido de fogo e fazia seu fluxo sangüíneo circular de forma violenta e desordenada, como se fosse ser expelido para fora a qualquer instante. – Uma demônia que auxilia um anjo... Que piada! Quer comprar sua entrada no Céu?

– Não. Você não sabe de nada a meu respeito...

– Não sei, é mesmo? Não teria tanta certeza, minha cara. Mas percebo, pelo pouco que observo, que o tal Castiel não sabe quem é. Diga-me, não será bom que ele seja informado que você costuma assassinar crianças em determinados períodos do ano? Qual seria a sensação do Arauto se descobrisse que saboreia o sangue dos bebês que aprisiona? E que dizer das tentativas frustradas de ter um filho de Samael Estrela da Manhã... – o fogo se aproximava dela. – São tentativas infrutíferas, não é? Inclusive sei que o Primogênito sequer se aproxima de você. Quem sabe não é por isso que quer levar esse anjo para o seu lado? – as chamas começavam a feri-la. – Então... Que me diz? Quer trocar o auxílio a ele por sua vida, ou parar de ajudá-lo para continuar a ser nossa maior líder? O que acha da proposta?

– Está me tentando, Mephisto?

É uma justa troca, não acha? Prefere morrer em uma luta desigual pelo anjinho? Ou viver com os que nunca a abandonarão? A escolha é sua...

Quando o fogo tocou no corpo dela, a demônia fez girar as chamas, em sentido contrário, com toda a força mental de que dispunha.

– Então já a fiz há muito; não sabe do que sou capaz quando me proponho a algo, seu demônio imundo! Eu poderia prender você no Vale, poderia queimar sua carne pessoalmente, pedaço por pedaço e arrancá-la sem pressa alguma; mas está tão machucado e irracional, que não serei covarde a tal ponto – Esses foram os últimos dizeres que Mephisto escutou. Com a fúria do fogo e com tamanha ira pelo que ele dissera, ela matou o inimigo e o homem que possuía. Ao acabar a luta, a mulher correu para o carro e passou a guiá-lo. Castiel e o colega ainda estavam no veículo – eles, apreensivos, a esperavam.

– Para onde vamos? – Questionou Vini.

– O levarei a sua casa. Depois cuidarei do resto.

– Está... Bem? – O rapaz notou que ela chorava.

– Sim. E como está nosso amigo?

– Descansa agora – Informou. – Ficou mais tranqüilo ao ver que você estava bem e adormeceu num instante.

– Ótimo.

A moça deixou o jovem em seu lar, como havia dito que faria. E lhe pediu desculpas por tudo que aconteceu no parque. Sem entender bem os motivos que a levavam a se desculpar, Vini falou:

– Imagina! Você nos salvou daquele maluco! Obrigado!

Após certificar-se de que o amigo de Samuel se sentia bem, a garota deu a partida no veículo de novo. Rumava, às pressas, para a residência onde costumava ficar. Em meio à viagem, quando já estava próximo de onde parariam, Castiel acordou.

– Sente-se bem? – Perguntou a demônia. – Muito assustado ainda?

– Não tanto quanto deveria. Só não entendo direito como lutei contra o inimigo com tamanha força e agilidade.

– Aos poucos compreenderá tudo.

– Só quero que isso acabe logo. E, sabe, até trocaria minha volta para o Céu por toda a tranqüilidade que você tinha antes.

Ela parou o carro; já estavam na garagem da casa. E após olhá-lo com surpresa e com admiração, comentou:

– Trocaria o retorno a Casa de Deus pela normalidade em minha vida?

– Sim, por que o espanto?

– Porque não sabe quem sou, nem se tenho uma existência tão serena assim. Sou um demônio; mato gente inocente, pessoas que vocês, anjos de Deus, devem proteger com toda gana. Então, por favor, não pense em fazer essa indevida troca.

– Não a farei. Mas não é somente por isso.

– Então por que não a fará?

– Porque perderei o contato com você. Não serei mais o mesmo; e não terei mais ninguém para me dar atenção, para saber como estou, para tentar compreender como me sinto em um planeta tão estranho. E você faz isso por mim. Apesar de adorar os humanos como os filhos mais amados de Deus, não consigo entender como eles, tendo a dádiva que têm em suas mãos, que é o Ciclo Divino da Vida, podem fazer tantas coisas ruins... Às vezes vocês, demônios, devem ficar impressionados... E só notei isso quando caí, amiga. Só com o passar do tempo percebi que eles são relapsos; que crêem no que vêem, não no que sentem e nem na bondade que possuem. Vi isso em vários homens e nos pais de Samuel. Por mais que eu tenha destruído a vida da família do garoto, eles poderiam ter escolhido o outro caminho: o da espiritualidade, em conjunto com o da medicina. Mas não. Preferiram o modo mais doloroso de se proteger um filho. E, apesar disso, ainda mantenho as esperanças. Sou um anjo de Deus; o Pai nos criou para zelar por eles, mas como procedermos, se nem mesmo os homens zelam por si? Demorei quatorze anos para encontrar em alguém um sentido, um carinho, uma palavra. E achei isso tudo em uma demônia; alguém que me cuida como um irmão, como algo sagrado... Pode me dizer que sou egoísta; entretanto reconheço que é complicado viver durante anos sem ninguém por perto. E, além do mais, você quer me ajudar a voltar para casa. Isso tem uma importância enorme para mim, mesmo com inúmeras dúvidas sobre minha capacidade, sobre tudo que me fala...

– Mas é o que é, Castiel: uma jóia sagrada. Cuido de você para preservar algo existente em mim. E para... Bem, creio não ser o momento adequado para falar isso...

– Sei disso. Sinto desde que nos vimos. Quer preservar seu lado bom, não é? Ou há alguma outra coisa que não tem coragem de me contar?

– Meu lado bom já pereceu há muito. Mas, às vezes, quando fico só, o sinto como se fosse uma pequena luz, fraca e desgastada. Um dia entenderá o porquê. Agora, porém, prefiro não falar sobre os motivos que me levam a zelar por você. Mesmo que eu saiba que já faz uma idéia de quais sejam eles, os direi um dia. Certo?

Sim.

– Venha, vamos entrar – a moça carregou Castiel ao interior da residência e o acomodou deitado no sofá. Após, buscou água para ele. Assim que o anjo bebeu todo o líquido, a demônia o carregou ao quarto e o pôs deitado na cama.

– Faço por você exatamente o mesmo que fez por mim quando passei a noite em seu lar. Durma agora. Preciso sair. Quando eu retornar, comeremos algo e poderei falar, com maior segurança, sobre a conversa que tive com Uriel. Entretanto necessita descansar antes. Certo?

– Sim, certo.

A garota permaneceu ali, de pé, até que Castiel adormecesse. Logo em seguida, ela chamou Leviatã e o ordenou que zelasse pelo sono do rapaz; não queria que nada ocorresse enquanto estivesse longe da cidade terrestre.