O Acelerar dos Ponteiros do Relógio

Capítulo Único - Relógio Quebrado


Alice não parava de mudar de par enquanto dançava. Ela tinha dito que não queria ir ao baile oferecido pela Rainha de Copas, mas no fundo estava se divertindo afinal. Gostaria de poder terminar sua dança com Boris decentemente, mas todos começavam a exigir a atenção dela, de forma que a garota nunca conseguia terminar uma única música com o mesmo par que começara. Por fim, resolveu formar um grande círculo com os amigos, e até mesmo com algumas pessoas sem rosto para que todos dançassem juntos, a fim de evitar brigas desnecessárias. Felizmente, todos concordaram. Ela estava começando a temer que eles começassem a atirar uns nos outros no meio do salão de festa, o que infelizmente seria algo muito normal.

Quando a música terminou, sendo substituída por uma mais lenta, Alice inventou uma desculpa sobre estar com sede e se afastou do grupo antes que algum deles pedisse para dançar a sós com ela. A garota atravessou o salão rapidamente até onde estavam Julius e Ace até alguns minutos atrás. Agora Julius estava sozinho.

— Oi, Julius - ela chamou quando se aproximou o suficiente para ser ouvida - Onde está o Ace?
— Disse que ia pegar outra bebida e já voltava. Já faz quinze minutos - ele informou - Acho que se perdeu.
— Se perder em um salão de festa? Não acho que… - Alice se interrompeu, lembrando-se de quem estavam falando - Tem razão. É típico do Ace.
— É uma pena. Ele era a única pessoa com a qual eu era capaz de conversar nessa maldita festa - Julius lamentou, evidentemente ainda aborrecido por ser obrigado a comparecer ao baile da Rainha. Alice notou que ele segurava uma taça quase vazia. Julius provavelmente tinha bebido bastante, mas aquilo não parecia ter melhorado seu humor.
— Ei, não fique assim. Eu te faço companhia até o Ace voltar - Alice tentou animá-lo.
— Se fizer isso, terá que me fazer companhia a noite toda. E eu não quero estragar a sua festa - ele olhou para longe, do outro lado do salão, onde Peter White e Elliot estavam discutindo, provavelmente porque ambos tinham orelhas de coelho. De novo - Você reclamou e disse que não queria vir ao baile, mas no fundo está se divertindo, não é? Dançou e tudo…
— Ah, bem… acho que não é tão ruim quanto eu pensei… e todos que eu conheço estão aqui afinal, então… - Alice torceu as mãos nervosamente.

Mas o que ela estava fazendo? Tinha dado tanto apoio a Julius, discursando durante dias sobre o quanto aquele evento seria monótono, e chato, e cansativo, e estressante… e agora lá estava ela, rindo, se divertindo, dançando, e deixando seu amigo de lado! Espere… dançando? Era isso! Alice já estava se divertindo no baile, não tinha como mudar isso. Mas ela ainda podia fazer com que Julius se divertisse também!

— Já sei! Julius, vamos dançar!
— O que? - ele quase se engasgou com a bebida ao ouvir aquilo - Acho melhor não.
— Por que não? - ela insistiu - É divertido.
— Eu não sou muito fã de dança. Nem de multidões. Vi o que você fez do outro lado do salão. Não gosto de formar círculos com pessoas - ele engoliu o resto da bebida de uma vez só.
— Bem, não seja por isso. Vamos dançar só nós dois então - Alice arrancou a taça da mão dele, depositando-a na bandeja de um garçom sem rosto que passava por ali, e o arrastou para a pista de dança.
— Espere - o homem protestou - Não ouviu o que eu disse? Não gosto de dançar.
— Pensei que não gostasse de beber também, mas aí está você, bebendo desde que chegamos aqui - Alice rebateu - Vamos lá, dance comigo.
— Você não tem jeito mesmo - Julius suspirou. Conhecia aquela garota bem o suficiente para saber que, quando colocava uma coisa na cabeça, por mais banal que fosse, não desistiria até conseguir, então era melhor acabar com aquilo de uma vez.

Certo. Música lenta. Menos mal, ao menos não teria que agitar os braços e as pernas e rodopiar no meio do salão como um idiota. Segurou uma das mãos de Alice entre a sua e a abraçou pela cintura com a outra, aproximando seus corpos. E então percebeu que dançar música lenta era ainda mais constrangedor. Mas que droga, por que raios aquela garota tinha que inventar de querer dançar? E em público ainda por cima! Bem, agora que tinha começado com aquilo, era melhor terminar. Estava meio enferrujado, mas ainda se lembrava dos passos. Um para a frente, dois para o lado, depois gira e de novo…

Assim, tão perto um do outro, Alice pôde perceber como Julius era alto. Quer dizer, ela sabia que ele era bastante alto, mais do que Ace e Boris, mas nunca tinha notado a enorme diferença de altura entre eles. Quase uma cabeça de diferença. Julius cheirava a óleo de máquina, por passar tanto tempo consertando relógios. Alice estava acostumada com aquele cheiro, por morar com ele, mas de repente ficou embaraçada por estar tão perto de um homem a ponto de poder sentir o cheiro dele. Mesmo sendo Julius. Reparou que não se sentiu assim quando dançou com Boris. Ou com os gêmeos Dee e Dan. Ficou se perguntando o motivo disso.

Julius estava começando a se sentir tonto. Não sabia se era porque todo o álcool que tinha consumido estava finalmente começando a fazer efeito, ou se era de tanto girar enquanto dançava, ou por causa do perfume inebriante que Alice exalava. Ela tinha cheiro de morangos. Engraçado, ele nem sequer gostava de morangos. Mas o aroma era bom. O cheiro dela era bom. Tão bom que parecia estar deixando-o intoxicado. Quando foi que Alice começou a provocar aquele tipo de efeito nele? Sabia que todos a amavam por ser uma forasteira, mas Julius sempre viu Alice como "a garota que Peter White trouxe para o País das Maravilhas sem sua permissão". E como ele era o Relojoeiro, era sua obrigação cuidar dela. Sentia-se responsável, por isso decidiu abrigá-la. Nunca se importou com quem ela fazia amizade, quem ela visitava, onde ela ia passear… também nunca a obrigou a morar com ele. Alice poderia ir morar em outro território, se assim desejasse. Mas ela não quis. Blood Drop até mesmo a convidou para morar com ele uma vez, mas ela recusou a oferta. Quis continuar morando com Julius. Ele sempre disse a todos e a si mesmo que Alice poderia morar onde quisesse, que não se importava com aquilo, mas… parece que ultimamente ele vinha pensando de forma diferente sobre isso. Não queria que Alice se mudasse para a casa de outra pessoa. Não queria entregá-la para ninguém. Não queria que ela o deixasse.

Os dois mal perceberam que a música havia terminado, sendo substituída por outra. Eles mudaram um pouco os passos da dança, agora indo um para a frente, dois para trás, girando, um passo para o lado e de novo. Julius tinha soltado a mão de Alice e agora a abraçava pela cintura com ambas as mãos. Alice notou como as mãos dele eram grandes e firmes. Tinham que ser, considerando o tipo de trabalho que fazia. E então percebeu a situação em que se encontrava. Não estava muito familiarizada com os costumes de dança daquele país, mas tinha quase certeza de que os passos não eram assim.

— Ei, Julius - Alice chamou - Tem certeza de que os passos de dança estão corretos? Os outros pares ainda estão segurando as mãos uns dos outros - ela observou as pessoas sem rosto ao redor deles, que executavam exatamente os mesmos passos de dança, exceto que o rapaz abraçava a moça pela cintura com apenas uma das mãos e segurava a outra na dele. Porém, antes que pudesse dizer qualquer outra coisa, sentiu o homem apoiar a cabeça em seu ombro. Não havia percebido que ele tinha se abaixado até sentir o hálito quente dele em seu pescoço. Por um instante fugaz Alice se perguntou se Julius estava passando mal ou algo assim. Mas logo depois ofegou e sentiu o rosto esquentar ao sentir que ele havia retirado uma das mãos de sua cintura e agora passava os dedos por suas mechas de cabelo.

— Alice - ele chamou baixinho, fazendo a garota ofegar de novo. Por que estava reagindo assim pelo simples fato de ele mencionar seu nome? Pensando bem, ela não se lembrava de quando foi a última vez que Julius a chamou pelo nome. Talvez nunca - Eu não te disse antes, mas você ficou bonita com esse vestido.
— Ah… obrigada - ela respondeu, sem saber muito bem o que dizer. Tinha sido o próprio Julius quem tinha dado o vestido para ela, Alice pensou, então não fazia sentido dizer isso agora, fazia? - Então era só isso? Você precisava esconder o rosto desse jeito só para me dizer isso? - ela deu uma risada nervosa.
— Não. Não é só isso - ele respondeu sem se mover, ainda acariciando seus cabelos distraidamente - Seu cabelo também tem um cheiro bom. Cheiro de morangos.
— Julius, você está bem? - Alice indagou. Até conseguia entender que ele ficasse sem jeito de elogiá-la na frente de outras pessoas, ou até mesmo enquanto a encarava. Mas aquele comportamento não era típico dele.
— Não tenho certeza - ele respondeu, soltando os cabelos da garota e voltando a encará-la - Acho que percebi uma coisa hoje.
— Ah, é? - Alice ergueu uma sobrancelha - Bem, espero que tenha sido algo muito bom, porque você está agindo estranho a noite toda.
— Percebi que essa festa estúpida não está sendo tão detestável quanto pensei que seria. E que meus dias não têm sido mais tão maçantes quanto costumavam ser. E isso é porque você está aqui comigo. Porque gosto de você - antes que Alice pudesse ter qualquer reação, ele segurou seu rosto com a mão livre, inclinou-se e a beijou.

Alice arregalou os olhos, sem saber o que fazer. Estava beijando Julius. A pessoa em quem ela mais confiava. Já tinha conhecido muita gente naquele lugar, mas, entre tantas pessoas excêntricas, mafiosas, psicopatas, com orelhas de coelho ou gato, Julius era de longe a pessoa mais normal que já tinha conhecido desde que tinha chegado ali. Pelo menos até agora. Percebeu que ele tinha gosto de uva na boca e se lembrou que ele havia bebido demais. Provavelmente tinha bebido vinho também. Pensando bem, talvez fosse por isso que ele estava agindo assim. Alice levou a mão livre até o peito dele, na intenção de afastá-lo, mas antes que o fizesse, notou uma coisa. Ela não sentiu o palpitar de um coração acelerado, como pensou que sentiria. No lugar disso, sentiu algo semelhante a ponteiros de relógio se movendo. Agora que tinha prestado mais atenção, podia ouvir o barulho de "tic-tac" de um relógio. E ele se movia muito rápido, como se alguém tivesse acabado de dar corda para fazer os ponteiros se moverem mais depressa.

Antes que pudesse sequer se surpreender com o som de relógio no peito de Julius, ele a soltou. Alice notou que o beijo só havia durado um breve instante, pois ela não havia sequer ficado com falta de ar. Apenas parecia ter durado mais tempo porque tinha sido pega de surpresa. Felizmente, havia apenas pessoas sem rosto ao redor deles, ainda dançando, que não pareceram prestar atenção no que os dois faziam. Se houvesse algum titular por perto, o homem provavelmente já estaria morto a essa altura.

Julius a encarava como se fosse a primeira vez que a estivesse vendo, enquanto Alice cobria a boca com a mão, como se temesse que ele fosse beijá-la de novo. Julius parecia chocado com o que ele mesmo tinha feito.

— Alice… eu… - Julius ergueu a mão hesitante na direção dela, sem saber como terminar a frase. Mas não fez diferença. Alice recuou um passo, depois outro, e então virou de costas e saiu correndo, desaparecendo no meio da múltidão.

Alice correu pelo que lhe pareceu horas, sem saber o que fazer. Mas o que tinha sido aquilo afinal? Conhecia Julius bem o suficiente para saber que ele não era o tipo de pessoa que sai beijando os outros por aí sem motivo. Mas espere… havia um motivo, não é? Ele disse que gostava dela. Mas isso não era um bom motivo. Quer dizer, geralmente seria, mas, naquele lugar, todos diziam que gostavm dela por ser uma forasteira. Porque ela possuía um coração. Porque era especial. Alice já estava cansada de ouvir isso.

Mas… Julius não tinha dito nada disso, tinha? Ele não disse que ela era especial. Ou que estava atraído por ela pelo fato de ser uma forasteira, como todos diziam. Ou porque tinha um coração de verdade.
E ele não tinha um coração. Tinha um relógio dentro do peito.

Alice chegou em casa exausta, desejando apenas que tudo aquilo fosse um sonho do qual queria acordar logo, para só então perceber que aquela não era de fato sua casa. Era a casa de Julius. Tinha corrido como uma louca aquele caminho todo apenas para chegar na casa do homem que a tinha beijado. Céus, como pôde ser tão burra a ponto de se esquecer de que estava hospedada na casa dele?!
Talvez aquele beijo tivesse mexido com ela afinal…

Alice balançou a cabeça com força, tentando afastar esse pensamento. Ela começou a pensar se havia alguma outra pessoa que pudesse hospedá-la, pelo menos naquela noite. Blood Drop? Não, sem chance. Aquele homem era egoísta e sarcástico, Alice não estava com humor para lidar com as piadas de mau gosto dele. Vivaldi? Talvez, mas ela teria que voltar para o castelo, e a festa provavelmente demoraria horas para acabar… isso sem falar que a ideia de andar todo aquele caminho até lá de novo não lhe agradava em nada. Ela tinha feito muitos amigos no País das Maravilhas, devia ter alguém que pudesse hospedá-la ao menos por uma noite… mas Alice geralmente não conseguia ter boas ideias sob pressão. Sem falar das incômodas lembranças que começavam a assolar sua mente:

"— Você não se importa com isso, Alice? Com o fato de estar sozinha em uma tenda com um homem que se interessa por você".

Ace havia dito isso para ela certa vez, quando se perderam e tiveram que acampar na floresta porque anoiteceu. Aquilo de fato não havia lhe ocorrido, mas, uma vez que foi mencionado, é claro que a deixou perturbada. E tinha que admitir que também nunca tinha parado para pensar nisso. Ela estava morando sozinha com um homem em uma torre afastada de tudo desde que chegara ao País das Maravilhas. Aquilo nunca a incomodou, mas de repente ficou muito ciente da situação em que se encontrava. Não que pensasse que Julius faria algo de mau contra ela, mas, agora que percebeu no que havia se metido, não podia negar que situação toda era muito constrangedora. Não tinha como não ficar perturbada depois de (finalmente) se dar conta disso.

"— É mesmo um desastre, esse Relojoeiro. Se ele gosta de você, deveria dizer logo. Seu amor progrediria… e poderia trazer bons resultados".

Nightmare dissera algo parecido uma vez. Já fazia algum tempo que ele tinha dito aquilo. Alice pensou que ele estava apenas brincando, ou que estava enganado, mas… será que ele estava certo afinal? Será que Julius já gostava dela desde aquela época? Se fosse verdade… céus, morar com a pessoa de quem se gosta, sem poder dizer isso a ela, vê-la todos os dias sem poder fazer nada… Alice nem conseguia imaginar o quão doloroso aquilo devia ser. Será que ela estava fazendo Julius sofrer e nem sequer havia se dado conta disso? Ela estava morando ali de favor, e ainda por cima estava fazendo com que ele sofresse, forçando sua presença ali, obrigando-o a conviver com quem amava, sem poder dizer nada a ela? Julius era gentil demais para dizer qualquer coisa sobre isso… como ela podia ser tão burra? Mas, mesmo que fosse verdade, isso não justificava o que ele havia feito… e o que Alice sentia por ele era…

De repente Alice ouviu o barulho de chave na porta. Julius havia chegado em casa. No fim das contas, só lhe restou correr para seu quarto e se trancar lá. Ela se jogou na cama, com o vestido de baile mesmo, se enrolou nas cobertas e ficou deitada imóvel. Poucos segundos depois, ouviu o homem bater na porta. Como não houve resposta, ele a abriu apenas alguns centímetros.

— Ei. Está acordada? - ele havia parado de chamá-la pelo nome de novo. Parece que havia voltado ao normal - Não precisa fingir que está dormindo, sei que está acordada - Alice permaneceu imóvel, mal ousando respirar. Julius suspirou - Escute… sinto muito pelo que eu fiz no baile. Sei que aquilo não tem desculpa, mas eu realmente lamento. Acho que… bebi demais… não, isso não está certo - ele sacudiu a cabeça, os longos cabelos balançando com o movimento - Eu já queria ter feito aquilo há muito tempo, mas nunca tive coragem. Sempre fui muito reservado… você sabe disso, não sabe? A bebida apenas me deu a coragem de que eu precisava para fazer o que eu queria. Ajudou a me soltar. Mas eu não menti quando disse que gosto de você - Julius fez uma pausa, esperando que Alice dissesse alguma coisa. Talvez estivesse mesmo dormindo afinal, mas ele duvidava. Conhecia Alice a tempo suficiente para saber quando ela estava fingindo e quando estava dormindo de verdade - Naquela hora, você sentiu o meu coração, não sentiu? A verdade é que eu não tenho um coração. Ninguém aqui tem. Todos possuem um relógio dentro do peito no lugar de um coração. E o meu está quebrado. Eu sou o único Relojoeiro que existe aqui, mas não posso consertar meu próprio relógio… irônico, não é? - ele deu uma risada amarga - Não posso consertá-lo. Ele quebrou quando comecei a gostar de você. E você é a única capaz de consertá-lo - ele espiou dentro do quarto, onde a garota permanecia imóvel - Você vai continuar fingindo que está dormindo, não é? Se não quer falar comigo, tudo bem. Boa noite - e fechou a porta.

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No dia seguinte Alice acordou confusa. Havia tido um sonho estranho, e não se lembrava quando exatamente ele tinha começado. Não se lembrava nem porque tinha dormido com o vestido de baile ao invés de vestir seu pijama. Foi por que mesmo? Ah, é claro. Ela voltou para casa primeiro por ter ficado assustada porque Julius a beijou… caramba, foi isso! Julius a beijou! Espere, isso aconteceu mesmo? Ela se lembrava que depois disso o homem havia dito que gostava dela e que só Alice era capaz de consertar seu relógio quebrado (a frase não fazia muito sentido no momento, visto que ela tinha acabado de acordar), e depois disso Ace tinha escalado a torre e entrado pela janela de seu quarto, dizendo que era seu Príncipe Encantado e que precisava salvá-la a qualquer custo, pedia desculpas pelo atraso porque se perdeu e porque ela não jogou suas tranças… espere, isso não era de outra história? Enfim, depois disso eles foram até a casa de Blood porque queriam provar para Elliot que uma tartaruga podia muito bem ganhar uma corrida contra uma lebre… certo, isso definitivamente fazia parte de outra história… tudo aquilo parecia tão irreal que Alice não sabia dizer quando exatamente o sonho começou.

Dando de ombros, ela se levantou, trocou a roupa de baile pelo mesmo vestido azul de sempre e foi até a cozinha preparar o café, torcendo para conseguir se lembrar do que exatamente havia acontecido naquele baile. Quando foi para a sala, não se surpreendeu ao ver que Julius já estava trabalhando no conserto de um relógio.

— Bom dia - ela lhe estendeu uma xícara de café - Trabalhando já de manhã cedo?
— Tenho muitas encomendas - ele respondeu sem encará-la, mas aceitou a xícara - Você parece estar de bom humor - ele estranhou, considerando o que tinha acontecido na noite passada.
— É que eu tive um sonho estranho - ela contou, sentando-se ao lado dele e bebendo da outra xícara em sua mão.
— Sonho estranho, é? - ele disse, sem tirar os olhos do relógio. Então ela pensava que tinha sido apenas um sonho… bem, talvez fosse melhor assim. No fundo, sabia que não era para ser. Quer dizer, que chance ele tinha, se comparado com o Chapeleiro ou com Boris? Deveria estar mais do que satisfeito por ter Alice morando com ele. Bebeu um gole do café que a garota tinha oferecido. Sentiria falta daquele café caso ela decidisse ir morar em outro território - Nota 86.
— Por que 86? - Ela indignou-se. Tinha se esforçado tanto…
— Está muito doce. E eu estou com dor de cabeça por ter bebido demais na festa de ontem - Julius respondeu, repousando a xícara na mesa - Me conte sobre o seu sonho.
— Bem, sonhei que o Ace invadia meu quarto no meio da noite, dizendo que era o meu Príncipe Encantado e pedia desculpas pela demora para me buscar, pois eu não tinha jogado minhas tranças e ele havia se perdido.
— Certo, isso é estranho - Julius concordou, encarando-a - Exceto pelo fato de ele se perder. O que mais?
— Depois disso fomos até a casa do Blood para convencer o Elliot de que uma tartaruga poderia vencê-lo em uma corrida…
— Uma tartaruga vencer uma lebre em uma corrida? Certo, você só sonhou com coisas impossíveis - Julius girou na cadeira, voltando sua atenção para o relógio quebrado.
— Não é verdade! No mundo de onde eu vim existe uma história onde uma tartaruga vence uma lebre em uma corrida - Alice protestou - E se eu só sonhei com coisas impossíveis, então, bem… aquela outra parte também deve ter sido um sonho afinal…
— Qual parte?
— Eu também sonhei com você. E com o baile - Alice contou - Na verdade não me lembro muito bem de como acabou o baile ontem. Todas essas coisas que sonhei aconteceram depois do baile, mas não me lembro do baile em si.
— Você ficou dançando com aquele gato e com os gêmeos, não foi? Fizeram até uma roda - Julius lembrou, o que, de fato, era verdade - Eu passei a maior parte do tempo junto do Ace.
— Ah, é mesmo - ela recordou. Alice realmente se lembrava de ter dançado com Boris e com Dee e Dan, e agora tinha certeza de que não tinha sido um sonho - Mas eu não me lembro de como o baile terminou.

Julius ficou em silêncio, e aquilo foi o bastante para confirmar suas suspeitas. Céus, aquilo tinha acontecido mesmo. Julius a tinha beijado. Disse que gostava dela. E, agora que não estava mais com sono, entendia o significado da frase que ele havia dito na noite anterior, antes de ela adormecer.

"— Eu sou o único Relojoeiro que existe aqui, mas não posso consertar meu próprio relógio. Ele quebrou quando comecei a gostar de você. E você é a única capaz de consertá-lo".

Ele não estava falando literalmente de um relógio quebrado. Falava de alguém que estava com o coração partido. Exceto que ele, assim como todos naquele país, não tinha coração, e sim um relógio dentro do peito. Julius poderia consertar os relógios de todo mundo naquele lugar, mas nunca o seu próprio. Aquilo era tão cruel. Alice não queria vê-lo sofrendo assim. Gostava de viver ao lado dele, de se esforçar para fazer um café melhor para ele, de ajudá-lo no trabalho de Relojoeiro, mas, principalmente, de sua companhia. Ele era uma pessoa tão fechada… Alice sempre quis que ele conversasse mais com ela sobre si mesmo, que se abrisse mais, que fosse mais espontâneo… bem, ele havia feito isso tudo na noite passada, e Alice certamente não esperava por aquele resultado. Mas também não podia dizer que tinha achado ruim. Era Julius afinal. A pessoa mais confiável naquele país louco. Ele apenas tinha dificuldade em expressar o que sentia. Mas Alice percebeu que aquilo fazia parte do charme dele.

— Ei, Julius - ela chamou, a voz mais baixa e mais calma do que de costume - Você tem um relógio dentro do peito no lugar de um coração, não é?
— Todos os habitantes do País das Maravilhas possuem um relógio dentro do peito. Eu não sou exceção - ele respondeu enquanto aparafusava o relógio em suas mãos.
— Sabe… no mundo de onde eu venho, quando as pessoas sentem uma emoção muito forte, como quando estão… apaixonadas, por exemplo… bem, elas sentem o coração acelerar e bater mais forte - Alice falou como quem não quer nada, colocando a mão no próprio peito - Eu também sonhei que tinha dançado com você no baile. E que os ponteiros do seu relógio aceleraram enquanto nós dançávamos… e depois você me… bem… - ela não conseguiu terminar a frase. E se tivesse sido mesmo um sonho? O que Julius pensaria dela se soubesse que estava tendo esse tipo de sonhos com ele? Morreria de vergonha se isso acontecesse! Mas precisava dizer alguma coisa para concluir a frase, e rápido - Você me disse algo sobre o seu relógio estar quebrado e só eu poder consertar… você disse "relógio", mas estava falando do seu coração. Como se estivesse com o coração partido, e eu fosse a única capaz de curá-lo. Gostaria que não tivesse sido apenas um sonho…
— Talvez não tenha sido um sonho - foi tudo o que ele conseguiu responder. Finalmente havia largado o relógio, consertado pela metade, e a encarava de soslaio. Alice não pôde evitar de rir ao ver como ele ficava bonito quando estava embaraçado, o rosto levemente corado.
— Tudo bem - ainda sorrindo, Alice segurou a mão dele - Eu vou consertar o seu relógio - e, sentindo ele entrelaçar seus dedos com os dela, Alice se alegrou ainda mais ao ver que finalmente tinha conseguido fazer Julius sorrir.


~*~ THE END ~*~

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.