Provença, 2011

Os campos de alfazema tinham perdido a cor mais tarde naquele ano. Aqui e ali, ainda se conseguiam vislumbrar tons de roxo e lilás.

Um vento outonal cortava os transeuntes, de modo que Davi resolveu pegar na bicicleta e pedalar de volta para o pequeno château.

Na realidade, “pequeno” era o eufemismo que Megan sempre usara para descrever a casa de férias que a sua Grand-mère mantinha na Provença, para uso esporádico.

A verdade é que se tratava de uma construção enorme do século dezoito completamente reabilitada, com todos os confortos modernos.

Com mais de vinte quartos, tinha sido a residência solitária de Davi nas últimas três semanas.

A única companhia que ele tinha tido tinha sido a dos funcionários da propriedade, com quem tinha que dialogar por gestos, porque ignoravam completamente Português.

Tinha sido ali que ele tinha encontrado um porto seguro para se esconder do pai.

Entrando em casa, ele descalçou as botas e subiu os degraus dois a dois. Entrando no quarto, olhou em volta e sorriu.

Pegou num dos livros que tinha tirado da biblioteca para ler e dez páginas depois recebeu uma chamada anônima no telefone fixo.

Pardon, je ne parle pas français. Parlez vous portugais ou anglais?- tentou dizer ele com um sotaque que dever ter feito com que Balzac desse uma volta no caixão.

Do outro lado da chamada um riso numa voz familiar:

Jesus, baby boy, eu devo ser péssima professora.

– Você tentou bad girl. Você tomou cuidado para me ligar?

O ruído de fundo indicava que Megan estava a caminhar na rua.

Sure silly. Estou usando um celular descartável. Não dá para rastrear.

– E como é que está tudo aí?

Ele ouviu,pelo telefone, uma porta a fechar-se do lado de Megan.

Dad continua tentando virar o mundo para te achar. Você sabe que não vai poder ficar escondido like para sempre.

– Eu sei, mas eu precisava desse tempo para esfriar a cabeça.

– E vai ser agora que você me vai contar what the hell happened?

– Megan, eu não te posso envolver nisso.

Blah blah blah Davi.

Ele tentou desviar o assunto:

– Você não sabe, mas me colocaram no seu quarto.

– Como é que você sabe que não é o quarto da minha Grand-mère?

– Ué, a não ser que a sua avó tenha uma fixação estranha por posters do Justin Timberlake, é o seu quarto mesmo.

Ela riu.

Ele ouviu alguém a bater à porta.

– Megan, espera um pouco, tem alguém aqui.

Davi pousou o auscultador do telefone no criado mudo e abriu a porta, deparando-se com uma surpresa em forma de Marra-Girl do outro lado.

Apesar da cara de surpresa dele, abriram os dois um sorriso ao mesmo tempo e ela pendurou-se no pescoço dele.

– Sua doidinha.- disse ele carinhosamente, ainda a apertando num abraço.

Hamptons, três semanas antes

Devidamente agasalhado, Jonas Marra caminhava junto ao mar. Ainda que o frio inclemente dissuadisse todos os seus vizinhos de passeios pela orla marítima, ele não se deixava intimidar. Ele necessitava de ouvir aquele barulho de ondas a baterem na areia.

Uma mensagem no celular o avisou que havia alguém esperando por ele na mansão.

No escritório do rés-do-chão, com a lareira acesa, Davi esperava em pé pelo pai.

Precisava confrontá-lo.

– Davi, aconteceu alguma coisa? Está tudo bem?- perguntou-lhe Jonas quando o viu.

Pela cara do filho compreendeu que o problema era grave.

Davi pegou na pendrive que trazia consigo e conectou-a ao computador ligado do pai, quebrando o silêncio para dizer:

– Acabou Jonas.

– Mas o que é que acabou?- perguntou o Marra sênior, abrindo o conteúdo da pendrive. - Onde é que você achou isso Davi?

– Nos servidores secretos da Marra, quando eu estive a trabalhar lá esse Verão.

– E você acha que isso é verdadeiro?- perguntou Jonas incrédulo.

– E você me deu motivo para achar que era falso? – retorquiu o filho.

Na realidade, Davi tinha encontrado uma série de documentos altamente comprometedores que implicavam Jonas numa série de negócios fraudulentos, incorrendo numa série de crimes de especulação, suborno, espionagem industrial e falsificação de resultados. O suficiente para arruinar por completo a Marra e mandar Jonas para a prisão por muitos anos.

– Filho, eu não sei de nada disso. Alguém implantou esses documentos nos nossos servidores. - disse Jonas.

Davi levantou um dedo acusador:

– Como é que eu posso acreditar em alguma coisa que você diga? E o suborno para eu entrar no MIT, vai dizer que também é mentira?

Jonas engoliu em seco por ter sido apanhado:

– Davi eu sei que o que eu fiz não foi certo, mas eu só queria o melhor para você.

O Marra mais novo acabou dando um murro na parede:

– Você me fez viver uma mentira! Fique sabendo que eu já anulei minha matrícula!

O Marra-Man acabou respondendo de uma forma irrefletida:

– Davi,você não podia fazer isso! Ouve bem Davi, se você não voltar para a faculdade, acabou o patrocínio da PLUGAR.

O bom moço afundou-se no sofá:

– Claro, você só podia recorrer a chantagem.- disse ele ao pai.

– Filho, é para o seu bem!- respondeu-lhe ele.

Jonas tentou outra abordagem:

– Davi, pensa muito bem naquilo que você vai fazer. Esses documentos são falsos, mas vai ser complicado provar isso. Se você entregar essa informação para a polícia não é só a minha vida que acaba. É a vida da nossa família. Você era capaz de fazer isso com a Megan? E as pessoas que trabalham para a Marra, o que é que ia acontecer com elas? Tem muita gente dependendo de mim.

– Tal como as suas amantes?- respondeu-lhe o filho, levantando-se.

Davi já não tinha medo de atirar à cara do pai aquilo que tinha entalado na garganta há anos.

– Davi, mas o que é que …

– Você não é tão esperto quanto pensa, Jonas Marra.

O empresário sentia que estava a perder o controlo da conversa:

– Filho, vamos tentar resolver as coisas.

– Como eu disse Jonas: acabou. Não me chama mais de filho. Eu já não tenho mais pai.

Pela primeira vez em muitos anos Jonas ficou próximo das lágrimas:

– Você é o meu filho. Eu nunca vou desistir de você. Por favor não vai embora.- disse ele, dando um passo em direção a Davi.

O filho recuou perante a aproximação paterna:

– Eu nunca mais te quero ver, Jonas. Isto é adeus.

Davi saiu sem olhar para trás, pegando no celular para ligar a Megan.

Dentro dele sentia uma dor que lhe revolvia as entranhas. Era a segunda vez que perdia um pai.

Provença, 2011

Tinha sido naquele pequeno canto do mundo que Megan tinha resolvido esconder Davi. A Jonas não lhe teria ocorrido procurar pelo filho numa das milhentas propriedades da avó da sua outra filha.

Megan podia não ser filha de sangue de Jonas, mas tinha aprendido com ele a arte da dissimulação, pelo que conseguiu omitir de todos que continuava a manter contato com Davi.

– O Jonas sabe que você está aqui?- tinha-lhe perguntado o nerd quando ela tinha decidido ir buscá-lo.

No. Dad julga que estou em Paris com Grand-mère.

Tomavam chá no jardim de inverno do château e Megan procurava o melhor modo de o convencer a voltar pelo menos para o Brasil.

– Rita me ligou. Everybody na Gambiarra está preocupada com você. Listen, eu percebo que something muito grave se deve ter passado, mas você não pode fugir de todo o mundo.

Ele não lhe podia explicar que tinha usado aqueles dias para tentar decidir se entregava Jonas para a polícia ou não.

Naquele momento ele não tinha dúvida da culpabilidade do pai, mas seria ele capaz de o arruinar e ao resto da família no processo?

No dia seguinte Megan encontrou um panfleto que uma funcionária havia esquecido na cozinha:

Une fête traditionnelleamusement et jeux… - disse ela lendo- Davi, há um festival, daqueles tradicionais, em La Tour d'Aigues, we could go!

Davi achava uma graça como ela conseguia misturar três línguas na mesma frase. Haveria alguma coisa que a sua bad girl não conseguisse fazer?

Se havia algo que ela conseguia sempre fazer era acabar por convencê-lo a fazer o que ela queria. Assim sendo, pegaram um carro e se dirigiram para cidade.

Caminhando abraçados para espantar o frio, viram a parada, visitaram as banquinhas e experimentaram a gastronomia local com Megan fazendo inúmeros registos fotográficos no celular.

Quando se preparavam para vir embora um sinal chamou a atenção dela:

Look Davi, um evento de adoção de puppies! Você sempre quis ter um cachorro. Let´s go in!- disse ela, puxando pelo braço dele para entrarem do edifício.

Ele ainda tentou argumentar que seria uma loucura adotar um cachorro naquelas circunstâncias, mas ele sabia que loucura era o nome do meio de Megan.

Oh look Davi. They´re so cute!- disse a loira já rodeada de cachorros a quem fazia festas.

Ele sorria com a cena. Um dos cachorros mais pequenos veio se encostar aos pés dele, pedindo carinho e Davi, olhando para baixo, pegou nele. O cachorro castanho começou instantaneamente a lambê-lo.

– É esse Davi. Esse puppy te escolheu.- disse Megan se aproximando de Davi e pegando no cachorro ao colo.

Bad girl, bad girl. Eu não tenho condições para ficar com um cachorro agora.

Oh baby boy. E você é capaz de dizer que não para essa coisinha fofa?

Agora eram dois pares de olhos castanhos que olhavam para Davi implorando que ele mudasse de ideia. Os de Megan e os do cachorro.

Ele percebeu que não poderia dizer não para nenhum deles.

Davi acabou assinando o termo de adoção do cachorro.

– O puppy precisa de um nome.- disse Megan ainda com o cachorro nos braços.

– Já tenho um: Linus. O nosso cachorro se chama Linus.- disse ele.

Megan tinha poucos dias até ter que voltar para São Francisco. O tempo estava contando.

Na tarde chuvosa do dia seguinte estavam os três no quarto, Megan e Davi brincando com Linus no chão e ouvindo música, quando o computador do nerd deu sinal de ter recebido um e-mail.

Ele se levantou do chão para se sentar na cadeira diante do computador. Megan estranhou o fato de ele estar tão interessado no conteúdo da mensagem e foi-se sentar no colo dele. Davi acabou estremecendo.

– O que é que você está vendo, baby boy? It sounds misterious. O que é isso?- perguntou ela.

Ele ficou com vergonha, mas acabou por confessar que lhe tinham enviado um convite para se juntar a um fórum secreto da deep web para hackers.

– Agora você também é um bad boy, Davi?- brincou ela.

– Nada disso. O objectivo é a gente usar as nossas capacidades para evitar injustiças.

– E quem é esse Zac Virus?

A animação usual de Megan aliada ao fato de ela não parar de se mexer no colo do nerd não permitia que ele mantivesse a concentração. Pior do que isso, já afetava a sua capacidade de manter um discurso coerente.

– É um … ah… outro hacker. – respondeu ele.

Mas porque é que a proximidade excessiva entre os dois sempre o afetava tanto? Ela continuou com as perguntas:

–E essa guerreira Maya. Who is she? Is she pretty?

Não se contendo ele acabou por responder:

– Não existe no mundo ninguém mais bonito que que você.

Ele tinha dito mesmo aquilo em voz alta? Naquele momento Davi queria uma pá para abrir um buraco e se enfiar lá dentro.

Ela sorriu e fingiu que não tinha ouvido:

Let me guess, o Golias de quem eles estão falando é você, right? Like aquela história da Bible: David and Golias.

–Hmmmm… ah… sim … é?

Porque é que ele parecia um lerdo só por ela estar tão perto? “Foco Davi, concentra”- pensava ele.

A salvação dele veio sobre a forma de som. Naquele momento começou a tocar uma das músicas favoritas de Megan e ela se levantou e puxou por ele para dançar com ela. Linus se juntou aos dois aos saltos, latindo adoravelmente.

– Davi, você não tem que estar sozinho. Come home. Whatever te está incomodando, tudo tem solução. – disse ela no final da música, ainda abraçada a ele.

Gambiarra, alguns dias depois

Era estranho para ele estar de volta àquele quarto-garagem.

Ainda que tudo em volta permanecesse igual (salvo os presentes que ele havia ganhado de Jonas ao longo dos anos e que ele tinha agora devolvido pelo correio), Davi já não era o mesmo.

Qualquer coisa se quebrara dentro dele. Pela primeira vez na vida ele já não se sentia tão bom moço.

Mesmo sabendo das trafulhices paternas, ele não tinha coragem para denunciar o pai. Seria isso lealdade de filho ou falta de carácter por parte dele? Poderia ele sobreviver àquela bipolaridade entre ter a consciência de ser o filho cobarde de um criminoso que ele não tinha coragem de acusar publicamente e ser nas horas vagas o justiceiro hacker Golias?

Davi pegou no disco externo com informações sobre a Marra e o trancou dentro de uma gaveta. Poderia não ter coragem para destruir Jonas, mas Davi Reis quebraria todos os laços com o pai e Golias manteria Jonas Marra debaixo de olho.

O celular dele deu sinal de uma videochamada:

Hey Davi, só queria te desejar boa noite.- disse a imagem de Megan no ecrã.

Bad girl eu já podia estar dormindo. – respondeu ele.

– Eu sabia que não estava.-disse ela- E Linus?

–Esse já pegou no sono faz muito. Tudo bem aí?- perguntou ele, sentando-se.

Yes. E você?

– Também.

Davi não estava no seu estado mais eloquente. Ela não quis insistir.

– Vou fazer de conta que acredito baby boy. Well, boa noite então. Tomorrow falamos.- despediu-se ela, mandando um beijo pelo ecrã.

– Até amanhã bad girl.- despediu-se ele, sorrindo.

Davi subiu as escadas, se deitou no colchão e esticou o braço para pegar a moldura com a foto de Megan que ele mantinha ali do lado.

Afinal, alguma ligação com Jonas Marra ele sempre teria.