Nêmesis

único - Nêmesis


Tudo começou quando o seu horóscopo semanal dissera que ele deveria praticar uma boa ação até sexta-feira ou um incidente terrível destruiria sua carreira profissional por inteiro.

Certo, talvez toda essa história tivesse começado bem antes, nos tempos de colégio, quando sua mãe o proibira de levar qualquer tipo de animal para casa, independente da espécie e do tamanho. A partir desse dia, Junhui criara um tipo de complexo: toda vez que via um animalzinho abandonado, perambulando pelas ruas, ele automaticamente sentia uma vontade absurda de pegá-lo em seus braços, leva-lo para casa e cuidar dele como se fosse seu próprio filho. E, quando se mudara para Seul, ele só passava vontade mesmo; morar sozinho já requeria uma renda que, às vezes, ele não tinha, então não conseguia se acostumar com a ideia de ter que sustentar mais um serzinho e permitir que ele vivesse num apartamento minúsculo, sem janelas e com uma vista horrível para um grande muro de concreto cinza e chato.

No entanto, quando ele viu as duas esmeraldas hipnotizantes pela primeira vez, Junhui se viu obrigado a ir contra todos os seus preceitos e gritar um dane-se gigantesco à todas as regras do prédio sobre barulho excessivo depois das dez da noite. Ele sabia que aquele era amor à primeira vista, a sensação quente tomando conta do peito e as borboletas fazendo festa em seu estômago, o sentimento imutável apresentando-se na sua mais pura forma. Lembrava-se de tê-la pego em seus braços depois de muito esforço, tomando cuidado para não apertar suas patinhas gélidas com muita força. Ela já tinha nome: Nêmesis, que combinava com a cor do seu pelo e dado em homenagem a uma deusa grega qualquer, cuja função Junhui não sem importava em lembrar estava apaixonado demais para tal formalidade. Com um sorriso de orelha a orelha, ele levou-a para casa na mesma noite e prometeu-lhe que nada jamais lhe faltaria.

E, claro, ele arcou com todas as consequências que vieram depois: as reclamações no interfone, a ira do síndico e os rasgos gigantescos no braço do sofá novinho da sala eram pouca coisa se comparados a quantidade de comida que a gata comia. Junhui tivera que abdicar do seu cinema no fim de semana e do café na saída do trabalho para poder alimentar a nova filha. Entretanto, no final das contas, valia a pena — ele amava Nêmesis, havia feito a sua boa ação semanal e salvado a própria carreira! Não havia como ser pior do que isso, certo?

Errado. Muito errado, aliás, pelo que a situação atual indicava.

Veja bem, Wen Junhui amava Nêmesis e ainda ama, mais do que tudo — nada jamais mudaria isso. E, depois de meses cuidando da gatinha, ele teve a certeza de que ela também sentia o mesmo; Nêmesis já miava de felicidade quando o dono chegava em casa e vivia pedindo carinho antes de tirar seu cochilo da tarde. Claro, de vez em quando eles tinham suas desavenças e Nêmesis se irritava a ponto de arranhar os braços de Junhui com afinco, mas não era tão grave assim.

Quer dizer, não tão grave ao ponto dela sumir por semanas e reaparecer no andar de cima do prédio, aproveitando o conforto e o calor do colo do dono do apartamento 408.

— Acho que eu já devo ter te dito umas cinco vezes, mas lá vai a sexta: essa gata é minha e eu não vou a lugar algum até ela voltar pra casa comigo. — O Wen repetiu com toda a firmeza que tinha e não se importou nem um pouco com a carranca emburrada do rapaz a sua frente.

Jeon Wonwoo era um sujeito legal, para falar a verdade. Tinha uma moto bacana, era muito educado, sabia como começar uma conversa e era extremamente bonito, mas não era como se Junhui fosse dizer isso em voz alta. Já haviam se encontrado algumas vezes: uma no elevador, quando o Jeon lhe dissera que o casaco que o chinês usava havia ficado excepcionalmente bom nele; outra na recepção, quando o Wen se oferecera para ajudar a levar as compras de Wonwoo até a porta de seu apartamento (mesmo os pacotes estando leves demais); e a última, nas escadas de emergência, quando o prédio ficara sem luz por mais de 15 horas e Wonwoo decidira ver como Junhui estava, só por precaução — e, surpresa!, o Wen teve a mesma ideia.

Entenda, eles tinham tudo para ter a melhor relação “vizinho x vizinho” do mundo. E isso poderia ter se concretizado se, numa bela manhã, Junhui não tivesse ouvido miados idênticos aos de sua gatinha desparecida vindos do andar de cima. No início ele pensou ser só uma alucinação consequente da falta que Nêmesis fazia, mas, quando os miados insistiram e se tornaram cada vez mais altos e reais, ele se viu obrigado a pausar a comédia romântica que assistia e correr para o quarto andar, não ligando para o que faria caso estivesse enganado.

E, para a sua infelicidade (ou felicidade, dependia do ponto de vista), ele estava totalmente certo.

— Cara, você pode passar a noite na minha porta porque eu não vou me importar, sabe? Essa gata é minha, eu a encontrei na rua e com certeza tive e tenho o direito de tê-la trago para a minha casa. Estava sem coleira, como você me comprova que a gata era sua? — Wonwoo apoiou-se no batente da porta, porém não permitiu que a porta abrisse mais do que deveria. Vai que Junhui é o tipo de louco que entra na casa dos outros sem permissão?

O problema estava bem ali, parado na porta de frente do apartamento e segurando Nêmesis como se fosse uma peça de porcelana chinesa: Jeon Wonwoo não queria devolver a gata. Ele tinha razão, em parte —havia achado a gata por conta própria, a levado para casa e provavelmente já tinha até comprado uma caminha onde ela pudesse dormir confortável; ele tinha uma lista completa de motivos para estar revoltado. Mas, ainda assim, a regra é bem clara: é de quem viu primeiro, e Junhui não teria coragem de se posicionar contra uma lei tão básica do jardim de infância.

— Eu estou procurando por ela há meses, cara. Enfiei anúncio de “procura-se” até no poste da casa da minha prima, não é possível que você não tenha ficado sabendo. Até o porteiro sabe disso. — talvez o tom de Junhui carregasse mais mágoa do que o necessário, porque Wonwoo hesitou assim que o chinês terminou sua fala. Não era todo dia que seu vizinho surtado aparecia na porta da sua casa te acusando de ter roubado a gata desaparecida dele.

— Eu não soube de nada, tá legal? E sabia que fazer esse tipo de acusação é crime? Eu poderia te processar por, sei lá, calúnia agora mesmo.

— Nós estamos falando de uma gata, Wonwoo, o tribunal inteiro iria rir da sua cara. — Wonwoo bufou e murmurou um “mesmo assim” convencido. Nêmesis soltou um miado agudo enquanto brincava com os botões do casaco do Jeon. — Agora, dá pra você devolver a Nêmesis? Tenho certeza de que ela não come direito há dias!

— Em primeiro lugar, Wen Junhui, essa não é a sua gata. — o rapaz não sabia quando os dois tinham chegado no nível de intimidade em que a outra pessoa pode te chamar pelo nome completo quando está brava, mas Junhui não iria reclamar. Seu nome ficava excepcionalmente mais bonito quando dito com a voz grossa e cansada de Wonwoo, mas não era como se estivesse disposto a admitir. — E eu não sou um monstro, caramba! Acha mesmo que eu não mimei essa bola de pelos como se fosse um bebê recém-nascido?

Junhui bufou. Tratar Nêmesis como uma princesa era o mínimo que qualquer ser humano decente devia fazer. A gatinha, por outro lado, tentava arranhar os pequenos cachinhos do cabelo de Wonwoo — aquela conversa de humanos estava chata demais. “Seria fofo”, Junhui pensou, “se você não estivesse nos braços desse ridículo”.

— De qualquer jeito, ela deve estar sentindo saudade do pai dela. — Junhui aproximou-se ainda mais de Wonwoo e estendeu os braços. Em resposta, Wonwoo segurou a gata com ainda mais força e colocou-a mais perto de seu peito. — Qual é, cara, deixe-me pelo menos ver como ela está.

— Ela está bem, Junhui, muito obrigado por perguntar. Agora, se você puder me dar licença, eu e a Elizabeth precisamos terminar de assistir à trilogia dos Senhor dos Anéis. Até ou-

— Elizabeth? Quem é Elizabeh?

Wonwoo revirou os olhos, impaciente. Por um momento, Junhui sentiu-se levemente ofendido ao cogitar a ideia de que aquele ato poderia ser algum tipo de código discreto para “você é burro ou se faz?”. Quando entendeu o que o coreano queria dizer, entrou em desespero:

— Você deu um outro nome pra ela? Eu não acredito nisso. — ok, agora ele estava muito magoado. Não era apenas a ideia de Nêmesis ter um segundo nome que o entristecia, mas o compilado de absurdos que aquela situação revelava: ela tinha um nome novo, uma casa nova e um dono novo. Quem sabe ela até tivesse um passatempo novo também? Arranhar cortinas já era coisa do passado, de qualquer forma. — Nossa, eu nem sei o que dizer.

Wonwoo, percebendo a tristeza no olhar do mais velho, apertou Nêmesis (ou Elizabeth, mas isso não importava muito no momento) mais um pouco, fazendo com que a gatinha miasse alto demais. Certo, talvez Junhui estivesse mesmo muito triste pelo fato de sua gata desaparecida ter ressurgido no andar de cima, sob outro nome e dono, e é claro que Wonwoo não tinha coragem suficiente para fechar a porta do apartamento na cara dele e fingir que nada havia acontecido — qual é, o cara estava quase se despedaçando em lágrimas ali mesmo, o Jeon não ia ser tão babaca. Com um suspiro, ele começou:

— Ela não atende quando eu a chamo assim. — olhou de relance para a gata, que lambia a manga de seu casaco — Quer dizer, ela geralmente não faz nada que eu mando, então eu duvido que ela vá se acostumar com a ideia de ter um novo nome.

— Eu também não iria me acostumar, para ser sincero. — Junhui coçou a nuca. — Elizabeth é um nome muito feio

Esqueçam toda a história de que Jeon Wonwoo nutriu qualquer espécie de sentimento que se assemelhe à compaixão por Wen Junhui. Esse chinês merece comer o pão que o diabo amassou.

— Falou o cara que acha Nêmesis um nome totalmente adequado para um felino. — Wonwoo soou mais brincalhão do que o esperado e arrancou uma risadinha tímida de Junhui. O mais novo sorriu brevemente, porém retomou a compostura séria. — Mas, sério, ela é minha gata.

— Eu pensei que nós estivéssemos tendo um progresso, mas deixa pra lá.

Wonwoo riu, porém repreendeu-se mentalmente por isso. Que tipo de pessoa ria quando um cara alto e esquisito está tentando roubar seu bichinho de estimação, alegando que o havia adotado primeiro? Talvez Junhui tivesse aquele efeito sobre as pessoas: seu sorriso era radiante demais, sua risada era excessivamente charmosa e o jeito como ele escondia o rosto com as mãos quando estava envergonhado era ridiculamente fofo, o que ocasionava num compilado de reações estranhas em qualquer um que conversasse com ele por mais de cinco minutos — ou, mais especificamente, no idiota do morador do 408.

— Não estamos, na verdade. Mas, se isso te deixa feliz, eu deixo você segurar a Elizabeth um pouquinho. — Wonwoo ofereceu, esperando que Junhui rejeitasse qualquer desfecho que não envolvesse ele levando a gata para casa. — E é só um pouquinho, ouviu?

Junhui fez um bico e, irritado, murmurou um “para de chamar ela assim”; porém não recusou a proposta e abriu os braços como se estivesse pronto para dar o seu melhor abraço em Nêmesis. Quando a gatinha já estava em seus braços, soltou um grunhido contente e passou a encher o pelo escuro e brilhante com beijinhos delicados e animados, fazendo com que Nêmesis miasse algo que se assemelhava a um “eu também senti saudades, humano fedido”. Wonwoo ponderou por breves segundos a possibilidade de permitir que Junhui levasse a gatinha para casa, sendo ele dono dela ou não: se aquilo o faria sorrir daquele jeito, os prós eram maiores que os contras.

— Você realmente gosta dela. — Wonwoo permitiu que o comentário escapasse, ver Elizabeth nos braços do chinês não era tão incômodo quanto ele pensava que seria. — Talvez...

Junhui ergueu o olhar. A gatinha estava entretida demais pelas bolinhas brancas do moletom do Wen para prestar atenção em como o coração de seu primeiro dono acelerara ou no quão desconcertado ele deixava Jeon Wonwoo ao encará-lo como se fosse um artefato de um museu.

— Talvez o quê?

E, pela primeira vez em toda a sua vida, Jeon Wonwoo não soube o que dizer. Claro, se formos colocar tudo nos papéis, ele quase nunca sabia muito bem como se expressar: já havia se metido em incontáveis confusões por causa de uma frase mal formulada ou pela ausência de uma palavra necessária e este não era um fenômeno raro — Wonwoo era péssimo falando sobre qualquer coisa que não se encaixasse no pacote “equações complexas, estatística e séries do Netflix”. Mas, veja bem, nunca havia sido daquele jeito. Ele nunca ficara sem palavras por causa da voz, do olhar e da presença de alguém, ainda mais se este alguém fosse seu vizinho há pouco mais de dois anos. Quem sabe ele devesse convidar Junhui para tomar um café? Ou comer as sobras do bolo de aniversário de seu irmão mais novo, talvez? Ou simplesmente arrancar a gata dos braços do chinês e alegar que não queria vê-lo nem banhado a ouro?

— Nada, esquece. — decidiu desviar de assunto. Passou a mão pelos próprios cachos bagunçados e procurou se distrair de uma vontade louca de convidá-lo para jantar num restaurante aconchegante e fazer coisas que os casais dos filmes fazem num primeiro encontro.

— Uh, sei. — Junhui disse, por mais que não houvesse motivo. O nervosismo de seu vizinho era tão óbvio que chegava a ser engraçado. — Então, posso levar a gata para casa?

Note, Junhui não sabia o porquê de ter pedido permissão. Nêmesis era a sua gata de estimação, ele havia a adotado primeiro e ainda tinha todo o direito de leva-la para casa, Wonwoo querendo ou não. No entanto, ao ver sua gatinha tão bem tratada e alimentada, cogitou a ideia de deixar que ela ficasse com o Jeon pelo que seriam uma ou duas semanas. Ou um mês, quem sabe — apenas o suficiente para que ele pudesse visitar sua gatinha periodicamente e, talvez, levar uma risada calorosa de Wonwoo como brinde.

— O quê? Ah, claro. — Wonwoo meneou a cabeça positivamente. — Acho que ela é sua, no final das contas. Ela até mia quando ouve a sua voz.

— Mas ela também faz isso quando ouve a sua, você sabe. Não quero que me dê a gata por obrigação. Quer dizer, ela é minha e isso é meio que imutável, porém isso só... Não parece certo.

E, por um momento, a linha de pensamento de Junhui fez sentido. Nêmesis escolhera dois donos pois sentia-se igualmente confortável com ambos, nem um pouco a mais e nem um pouco a menos. Ela não fugira, não reclamara e com certeza não parecia nem um pouco disposta a abandonar um deles. E ela devia estar certa: na cabeça de um felino, a ideia de ter duas pessoas te mimando o tempo inteiro parecia ser alguma espécie de sonho prestes a ser realizado. Wonwoo e Junhui entreolharam-se e Nêmesis miou contente.

— Você está me dizendo que a gente devia cuidar dessa gata, tipo, ao mesmo tempo? Isso não faz sentido.

— Pensa comigo, Wonwoo. Vai funcionar que nem aquelas guardas compartilhadas: você fica com ela por um tempo e depois pode leva-la pra minha casa. A gente divide por igual e ninguém sai perdendo.

— É meio esquisito aplicar essas coisas de casais divorciados numa gata assim, do nada; mas até que faz sentido. — Wonwoo cruzou os braços. — Contanto que as contas do veterinário sejam divididas igualmente, eu não tenho objeções.

Junhui riu. — Muito bem, senhor Jeon, acho que nós estamos começando a nos entender melhor. Acho que Nêmesis está contente por ter ganhado mais um papai, não é mesmo, meu amor?

— Fico feliz por isso. Ei, quer entrar para tomar alguma coisa? — Wonwoo convidou e deu seu melhor sorriso, decidido a entrar no jogo que o Wen havia iniciado. Talvez tivesse soado forçado demais pois Junhui não pôde evitar gargalhar. — Assim poderemos conversar sobre o nosso acordo em paz, se é que me entende.

— O que você acha, Nêmesis? Será que devo me deixar levar e cair nos encantos deste homem? Seu novo pai não presta, escute bem. — Junhui sussurrou no ouvido da gatinha como se esperasse alguma resposta verbal. — Eu adoraria, Wonwoo, mas só se você me prometer que aceita jantar comigo nesta sexta-feira.

— Espere aí, Wen Junhui, deixe-me ver se eu entendi certo. Está me convidando para um encontro?

Junhui sorriu brevemente e ajeitou Nêmesis em seus braços.

— É uma oportunidade única. É largar ou pegar.

Wonwoo riu.

— Se você quiser, não sei, assistir a uma comédia romântica comigo e com a Elizabeth, eu posso pensar no seu caso.

— Eu adoraria, de verdade. — Junhui fez uma pausa, os orbes negros brilhando com o entusiasmo. Ficava ainda mais bonito assim, Wonwoo contemplou. — Mas, Wonwoo...

— O quê?

O nome dela é Nêmesis.

O Jeon revirou os olhos, impaciente.

— Elizabeth continua sendo um nome muito mais bonito, de qualquer forma.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.