“De certo modo é plausível pensar nas nuances que as aparências carregam. Ondulações imprevisíveis que todo homem já se perguntou: será que estou sendo enganado?”

Sobre o Homem Moderno, séc. VI

“Aconteceu de manhã, estou dizendo! Surgiu da cloaca como uma serpente d’água, deslizando para fora de toda aquela merda. Diabos! Tinha umas três braças de comprimento e pegou todos os coveiros de surpresa. Tinha pinças afiadas e antenas sobre a cabeçorra blindada. Era horrível! Talvez fosse parente do prefeito Mandey, pois matou Jacke que, como é de conhecimento de todos, comeu a senhora prefeita um dia desses. O quê? Não, não parente dele por vingar o adultério. Parentes porque o monstro e o prefeito eram idênticos. Com todos os diabos, estou dizendo, aconteceu de manhã...”

Relato de um coveiro sobre um monstro a um bruxo, Redânia, séc. VII

O quarto era pequeno. Tão pequeno como próprio dono do aposento.

Reksandr de Novigrad se sentia preso numa gaiola. Não podia esticar as pernas sem bater com as esporas no pé da mesa, não podia virar sem cotovelar uma estante. O intendente se apressou em se livrar da infinidade de papeis que tomavam a mesa, dispondo do espaço para pôr, de forma pretensiosa, suas pernas para cima, pouco ciente de que tal ato tornava-o ainda menor do que já era.

Estavam em um aposento militar improvisado de escritório burocrático. Aparentemente tudo é improvisado em Amores. Até a mobília. Cômodas serviam de armários, candeeiros serviam de porta-moedas, mesas serviam de encosto para outras mesas. Era uma configuração estranha, mas que se mostrava harmônica de um modo certo, pois tudo estava à mão do intendente. Assim como esse anúncio em suas mãos.

“A todos aqueles que interessar: Vossa Majestade, Rei Foltest de Teméria, por intermédio do Intendente Pyrran Guart de Amores, oferta uma recompensa de cinco mil ducados temerianos pela cabeça lacerada do monstro que aterroriza os arredores montanhescos do Monte Carbon.”

“Tenho que me acostumar com sua cegueira.” – disse de repente Pyrran, como se só tivesse percebido agora, olhando para o bruxo à medida que entendia o anúncio em sua direção.

Reksandr segurou o contrato.

“É o que todo mundo diz.”

O intendente observava o bruxo à medida que este, ciente do silêncio e de que era analisado, devolveu o contrato de cocatriz para o pequeno servidor municipal.

“Pode perguntar.” – o bruxo quebrou o silêncio primeiro.

“Não é uma pergunta." - rebateu o Intendente Guart, dobrando o anúncio - "Já vi muitos homens. De todos os tipos. E pensei, comigo mesmo, que já tinha experimentado a presença das mais variadas culturas e aparências. Ouvido e falado com os mais variados daqueles que se dizem seres humanos. Por incrível que pareça, falei com bruxos. Uma vida de encontros, disfunções e deliberações políticas, econômicas ou... você sabe. Mas se algum dia eu já tenha visto um bruxo cego, estaria mentindo. Posso dizer agora que já vi de tudo.”

Reksandr de Novigrad sorriu, o que mais parecia um arreganhar de dentes, o que evidenciou as cicatrizes horrendas sob os seus olhos.

“Pode perguntar.” – disse o bruxo.

“Vou perguntar, mas, antes, tem algo que eu quero saber.”

“Qual das espadas serve para homens?” – tentou adivinhar Reksandr.

“Qual é o seu nome, senhor bruxo?”

Reksandr franziu o cenho.

“Surpreendente.”

“É o que todo mundo diz sobre mim. Às aparências, meu caro, todos nós escondemos muitas nuances.” – o intendente gargalhou.

“Reksandr. De Novigrad.”

“Novigrad! Isso sim que é um lugar para se nascer.”

“É o que você pensa. E o seu, senhor intendente?”

“Meu nome, caro Reksandr de Novigrad, como bem deve ter ouvido, é Pyrran Guart, intendente e encarregado administrativo temporário de Amores.”

“Guart... já ouvi falar dessa família.”

“Comerciantes. Mascates. Seda e marfim de Kovir. Prata e bronze de Poviss.”

“E o que um dos filhos da riqueza faz na política? Ainda mais na política de tão baixo prestígio?”

“Eis a pergunta de um milhão de coroas.”

O bruxo sorriu, mas não disse nada. Não se importava. Estava lá pelo contrato. A recompensa é alta. Não deve ser uma simples cocatriz. Pyrran puxou um outro contrato da gaveta. Estava amassado, desgastado e parcialmente apagado.

“Isto foi afixado pelas encruzilhadas e tabernas até a exaustão pelos últimos três meses. Nenhum bruxo apareceu... até ontem.”

“Faço por meio deste saber àqueles que interessar: a cocatriz é um alarde mentiroso, uma bandeira falsa. Não existe tamanha besta descontrolada que tanto falam, bastando um sicário bruxo para dar cabo do monstro. O boato que corre como fogo, sobre as necessidades especiais de um certo alguém, é deveras maldoso, horrendo e de muito mal gosto. Faço saber que aqueles que espalham tamanhas mentiras terão seu julgamento. Em nome da Rosa.”

“Até ontem.” – disse o bruxo, segurando o aviso anônimo – “Do que se trata?”

Pyrran ignorou a última pergunta.

“Até ontem ninguém havia aparecido. Estranho, eu diria. Sim, decerto os bruxos tem se tornado cada vez mais raros. Seus números diminuíram com os anos, tornando cada vez mais difícil encontrar caçadores de monstros quando se precisa de caçadores de monstros. A demanda tem diminuído, pelo menos deste lado de Monte Carbon, mas a oferta tem despencado vertiginosamente, de modo que quando um desses seres das trevas aqui se aloca, temos que recorrer aos feiticeiros.”

“É uma questão de sorte.” – disse Reksandr.

“Dos feiticeiros?” – perguntou o intendente.

“De vocês.” – o bruxo apoiou os cotovelos nos joelhos – “De todos aqueles que precisam da lâmina de um bruxo. De toda a humanidade.”

“Sorte, meu caro, é o maior motivo das grandes desgraças. A prova disso é essa cocatriz.”

“Você disse que um bruxo apareceu aqui ontem.” – iniciou Reksandr, levantando os olhos leitosos.

“De fato apareceu.” – Pyrran Guart fez uma careta – “Enfadonha, eu diria. Uma tempestade em forma de mulher.”

“Mulher?” – Reksandr torceu os lábios – “Sinto dizer Pyrran, mas você foi enganado. Não existem bruxos mulheres. Não se aceitam meninas para a iniciação.”

“Então prove-me que aquela beldade que ontem aqui esteve, bem diante de mim como você está, tem um pau entre as pernas.”

“A questão não é essa.”

“Pois sim! Veja, meu caro, que em nenhum momento eu duvidei de sua inteligência. Era um bruxo. Ou melhor, uma bruxa, em toda sua generosa voluptuosidade de encher os olhos. Trajava negro sobre tons de cinza, numa vestimenta maleável e lasciva, cota de malha e botas de montaria. Além daquele pingente de lobo com as presas arreganhadas. Sem falar nas espadas.”

Reksandr de Novigrad se conteve para não mudar sua expressão neutra. Lobos... mas em Teméria? Estranho.

“Chegou de manhã, montada em um alazão negro como mortalha. Eu estava na paliçada cuidando para que os recrutas da milícia não matassem uns aos outros quando ela chegou. Ela exigiu saber quem era o intendente ou estaroste ou quem quer que fosse que mandasse naquela, nas suas palavras, “merda de vila”.

Reksandr ficou calado. Pyrran aproveitou a brecha e continuou o monólogo, empolgado.

“Beldade. Linda como um sonho de verão, cujos cabelos encaniçados brilhavam como o sol do meio dia. Admito que fiquei tentado, pois, assim como todo bastardo dessa pequena comunidade, fui enfeitiçado por sua aparência. Tanto que muitos cavaleiros rivianos, os quais você viu no salão comunal, ofereceram-lhe escolta para a caça à cocatriz. Até um séquito foi formado. Demorou, pois ela foi rodeada por todo tipo de glutão e mal-educado, mas eu tive um momento à sós com a lindeza. E só então tive ciência da situação.”

“Ela cobrou o pagamento adiantado.”

“Pior. Ela veio à mando de Radowid, Rei da Redânia.”

Reksandr ficou em silêncio. Política. Supresa.

“Nada? Nenhuma palavra?”

“O que dizer?” – o bruxo deu de ombros – “Reis.”

“Pois muito bem, Reksandr. Não qualquer rei, mas um puta de um rei, com R maiúsculo de Radowid. Ela não só apresentou palavras, mas também um mandado com tantos carimbos que alguns eu duvidei até que existiam.”

“Pensei que Amores fosse de jurisdição temeriana.”

“Pois é. Eu também.” – Pyrran esticou os dedos, gemendo – “Os marcos fronteiriços pós-guerra são quase inexistentes. Ninguém sabe onde começa ou termina alguma coisa até um nova guerra entre os reinos nortelungos acontecer e decidir isso. Desde a saída dos Negros, qualquer rei de bosta que tenha um tinteiro pode expedir mandados e salvo-condutos, mas aqui não estamos falando de qualquer monarca.”

“Então porque eu estou aqui, intendente? Poderia ter me falado que já haviam se candidatado à caçada quando eu estava lá fora. Nem dar-me-ia o trabalho de sair da taberna ou ouvir todo esse monólogo.”

“Deveras... mas eu precisava chamá-lo. É obra do Destino.” – Pyrran Guart tomou postura, com os cotovelos sobre a mesa – “A cocatriz existe, de fato, e é enorme. Tão grande quantos os segredos que esse contrato aparenta esconder. Há coisas que, por agora, devem ser mantidas em segredo, Reksandr. Todos sabem que sob os véus sapientes do oculto nada que não deve ser falado será falado.”

“E quais seriam essas coisas?”

“Se fosse tão fácil assim retirar o véu, acha que eu não contaria? Não, meu caro. Existem coisas em jogo e a cocatriz é a menor delas, embora ela tenha envolvimento com toda a situação.”

“E como espera me convencer do contrário?”

“Gatos não precisam de convencimento.”

Reksandr de Novigrad, que até aquele momento não tinha mudado sua expressão facial, sorriu de maneira desagradável.

“Bem que você disse, intendente.”

“O quê?”

“As aparências guardam muitas nuances.”

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.