November in Paris

Kyo - Sarah


A neve caia sorrateiramente lá fora, tapando a visão por um branco mórbido. O grande destaque daquela cidade havia sido ligeiramente apagado pela neblina que estava disposta a não baixar tão cedo. A visão, no entanto era linda; Aquele branco cobrindo as cores, dando um ar de imensidão infinita alheia. Não era possível ver o que viria a seguir, as ruas não estavam mais tão transitadas, e o brilho naquela época do ano não era mais tão intenso, pelo menos não tão quanto aquele frio cruel.

As pernas dela eram descuidadosamente descobertas, apenas três quartos desta eram privilegiadas pelo aquecimento que aquela bota batida podia ceder. Seus fios elegantemente acastanhados cobriam uma parte de sua face, destacando muito bem sua pele facilmente confundida com aquele gelo todo ao seu redor. O moletom branco que a esquentava não era o suficiente, mas algo dentro dela era maior que todo aquele incomodo gelado, e seu queixo, apesar de pedir por colisão de suas arcadas dentárias, conseguia ser engolido por um rosto oco de emoções. Este mesmo que percorria as ruas congeladas sem desespero, sem destino. Sentia-se conectada com aquele sentimento de solidão que estava se instalando em cada passo que ela adentrava as ruas desertas, estava se conectando com aquele frio todo, que às vezes a fazia perguntar-se se podia ser da mesma temperatura que seu interior. Ela não o sentia, não estava sentindo nada além da dor lhe corroer aos poucos por dentro, como se seus órgãos tivessem sendo esmagados. Aquela dor costumeira que ela conseguira conviver por tanto tempo.

Ao longe então, ela avistou o prédio de paredes descascadas por tinta velha onde morava. Pensou várias vezes em dar meia volta e andar mais um pouco pela enorme cidade, mas ela não podia simplesmente girar com os calcanhares. Aquele dia, aquele novembro, era apenas para aquilo, e ela tinha que o fazer, mais uma vez.

A escadaria era grande, mas ela havia se perdido na cidade e andado quilômetros, então nada significaria. Sua lentidão aparente diante de qualquer olhar não a incomodava, ela já estava morrendo psicologicamente. Seu corpo estava mais pesado que o normal, o que a fez se perguntar se era efeito de sua consciência que já demonstrara sinais de estar carregando pedras.

Girou a chave duas vezes na fechadura, escutando o barulho sutil da porta ranger logo em seguida. Adentrou ainda cautelosa a própria casa, deixando sua bolsa a escanteio.

Caminhou até a enorme porta de duas folhas a sua frente, abrindo sem se importar com o rígido vento que adentrou o cômodo sem pudor algum. Ao contrário de quem for que estivesse quentinho dentro de seu apartamento, ela não gemeu de frio. Já tinha se acostumado com a temperatura ridiculamente baixa.

Olhou a imensidão branca a sua frente, ela amava aquele lugar: as ruas de paralelepípedos, as casas que se mantinham em estruturas antigas, a torre que agora era vista apenas sua sombra. A torre. Mas nada que a fazia ficar admirada, no entanto, faria mudar de roteiro. Ele era permanente. Ela queria se soltar daquelas correntes que já machucavam sua pele; queria se libertar daquela angústia que sentia quando se deitava na cama e tentava dormir. Não havia mais sono. Ela não conseguia pensar em mais nada além daquilo. Ela havia falhado... Falhado a vida inteira, afinal.

Tocou a grade de proteção a sua frente, sentindo pela primeira vez o gelado sensibilizar sua pele. Seus pés se elevaram para serem pousados sobre a fina barra de ferro que sustentava a segurança daquela sacada. Com um pouco de dificuldade e segurando numa caída de telhado que existia naquela pequena varanda, conseguiu se manter sobre a mesma, sentindo o vento lhe tocar o rosto mais intensamente, assim como o tecido fino de sua saia esvoaçava poeticamente. Fechou os olhos, tentando sentir o toque da brisa gélida percorrer cada detalhe daquele corpo sem vida, mas era vago, ela não o sentia mais.

Os seus ligamentos gritaram instintivamente para que fugisse daquele frio todo, mas ela não obedeceu. Seu corpo já estava demonstrando sinais de perigo, ela estava correndo perigo sobre aquela grade, mas tudo que não lhe fosse de seu alcance tinha sido afogado automaticamente por seus conceitos, e não seria agora que iria seguir as ordens de seu racional - ela já havia o perdido faz tempo. Era tudo obra de sua imaginação, esta que queria estar ainda viva.

– Sarah? - escutou aquela voz melódica lhe chamar. Fechou os olhos por míseros segundos, tendo como imaginação que o som viera da própria. Sentiu então um calafrio lhe percorrer toda a extensão da espinha, fazendo-a se lembrar daquele azulado oceânico que tanto amava. Daquele brilho que um dia tinha sido definitivamente o motivo de muitos sorrisos por aqueles lábios finos e rosados.

– O que você está fazendo, meu amor? - escutou mais uma vez, desta mais próxima. Como se um choque tivesse despertado seus sentidos, ela abriu os olhos subitamente, sentindo aquele cheiro conhecido lhe dopar as narinas. Este que como uma maldição estava sendo tirado pelo vento e indo parar justo em seu olfato. Ela não queria senti-lo. Só dificultaria as coisas.

– Sarah, desce daí. Vai congelar.

Para ter certeza de que ele não fazia parte de sua insanidade particular, sentiu suas mãos quentes entrar em contato com suas pernas congeladas e descobertas. Elas a incentivavam a descer, mas ela não queria, ela tinha que o fazer. Porque tinha que ter chegado naquele exato momento? Era com isto que sua mente se preocupava agora. Ele sempre chegava para impedi-la.

– Amor... - pediu com a voz baixa.

– Por favor, vai embora. – pediu ríspida, já sentindo o nó se formar no meio de sua garganta.

– O que está acontecendo, Sarah? - insistiu, ainda com as mãos sobre sua perna. - Porque me quer longe?

– Se afasta Corey. - pediu o encarando. Então mais uma vez aquela carga elétrica foi dada, diretamente em seu coração. Aquele par de oceanos azuis a encaravam intensamente, marejados por conseqüências, qual ela era dona. Era a única coisa que conseguia fazer direito, deixar olhos alheios marejados. Ela não o merecia.

O rapaz decidiu obedecê-la, temendo o pior se não o fizesse - se é que teria algum ponto positivo existente em tudo aquilo. Há metros de distancia sentiu seus olhos escaparem algumas lágrimas, estava sendo tomado pela mesma dor que a mulher que amava. Seu interior era sensível demais a ponto de imaginar que ambos estavam conectados, tanto pela dor quanto pela felicidade.

Ele estava sentindo um bolo lhe enforcar a garganta, estava prestes a extravasar simplesmente para que a mulher não fizesse o que tanto estava disposta a fazer, mas aquilo só tornaria as coisas mais complicadas, no entanto. Um deles tinha que manter o controle, e teria que ser aquele que ainda estava com pés firmes ao chão – por mais que fosse uma tarefa impossível.

O rapaz adentrou a sala novamente, procurando por um pedaço de papel qualquer e uma caneta. Sentindo seus ligamentos gritarem em reprovação, não se importou e tirou por fim seu agasalho reforçado. Deixou apenas que a camiseta lhe oferecesse proteção, esta que era inútil. Com as mãos já tremulas tanto pelo frio quanto pelo nervosismo, sentou próximo aquela porta, apoiando o pedaço de folha ao piso.

– O que você está fazendo? – escutou sua voz, já não tão doce mais, invadir seus tímpanos.

– Escrevendo uma carta de despedida.

– O quê?

– Se você pular... Eu também terei que fazer. Você sabe disso.

Com o máximo de cuidado que podia ter, ela se virou daquela grade ainda segurando o pedaço de madeira que sustentavam as telhas congeladas. Suas narinas estavam vermelhas, assim como seus olhos – esses que infelizmente eram os únicos que não conseguiam esconder sua insatisfação interior. Ela o encarava sentando como uma criança naquele chão, escrevendo num pedaço razoável de papel qualquer coisa que lhe fosse de sua autoria naquele momento. Sua cabeça era atormentada agora, confusa, já pedindo por súplicas aquele ser para que simplesmente sumisse.

– Você vai morrer!

– Muito obrigado pela observação, querida. – comentou, deixando um sorriso sarcástico lhe contorcer os lábios. Naquela altura ele tentava manter o controle, e fazer piadas era uma sugestão para tal – por mais que não tivesse graça a seu principal destino.

– Vai embora, Corey! Eu não quero você perto de mim mais. – ela falou raivosa tentando o afastar, por mais que suas palavras fossem de extrema falsidade. – Não era pra você ter voltado aqui.

O rapaz, no entanto, tentou lutar contra o desabamento súbito em seu interior ao ouvir sua voz em um tom distinto do que costumava escutar, mas algo em seu interior era mais forte e mentalmente lhe soprava que era apenas uma maneira de fazê-lo desistir dela.

Talvez aquela ligação não fosse mesmo uma criação de sua imaginação emocionalmente abalada por aquele amor fulminante que jamais sentira por outro alguém. Talvez aquela química existente apenas em fantasias existisse sim na realidade, pois ele sabia o que ela sentia e não a deixaria que seus olhos vissem aquilo, mais uma vez.

– Eu não vou deixar você pular sozinha.

– Não se preocupe. Eu já estou morta, Corey. Sabe disso.

– Não agora, Sarah, eu estou aqui. – ele falou então, deixando-a em silêncio. O rapaz se levantou calmamente, dando passos lentos e pequenos mais a frente. – E sei que você ainda me ama.

– Vai embora, Corey. Se eu te amasse não teria feito o que fiz.

– Ama, porque se não amasse, não estaria aqui. Sempre na mesma hora, no mesmo dia e no mesmo mês. –falou por fim, fazendo-a engolir em seco. – Desce, Sarah. – pediu lhe estendendo a mão, apesar da distancia.

O nó na garganta da mulher só se intensificara, fazendo-a não agüentar reprimir mais todo aquele choro que queria se libertar. Os sons agudos de seus gritos torturados infectaram ouvidos alheios, cheio de dor. Não sentira que sua dor estava indo embora junto com o som gutural, no entanto.

O rapaz fechou os olhos, apertados. Vendo que não era mais uma ameaça, se aproximou com passos lentos e não contendo mais sua vontade de tê-la em seus braços, abraçou suas pernas, o único pedaço de seu corpo que era possível.

– Vai ficar tudo bem, meu amor. Vai ficar tudo bem, eu prometo. – disse meio a voz chorosa que saia de suas cordas vocais. – Não pule. De novo.

Ela não tinha mais forças, suas mãos não conseguiam mais segurar aquela placa de gelo, assim como sua pele exposta não agüentava mais o frio. Ela queria estar dentro de seu apartamento, em volta dos braços dele. Dono da única humanidade que ainda existia em seu interior. Em sua alma que ainda vagava este mundo a todo novembro.

Com cuidado deixou que as mãos do rapaz segurassem sua cintura, e com a ajuda dele desceu dali. Seus dedos petrificados limparam suas lágrimas já congeladas em seu rosto angelical. O corpo do rapaz estava precisando de aquecimento, mas ao invés daquilo uma placa de gelo lhe atingiu.

– Corey... – murmurou ao abraçar seu corpo congelado também. Ele não respondeu nada a mais, só queria sentir o corpo dela colado ao seu, como estava naquele momento. Vendo que o queixo de sua menina começara finalmente a bater, conduziu-a até a sala, fechando a porta rapidamente em seguida. Ambos precisavam de aquecimento. Ele precisava.

Sarah adentrou seu quarto, procurando desesperadamente por sua cama e cobertor. Deitou ali, sentindo seu corpo pedir por suplicas. Segurando suas próprias pernas encolhidas, viu aquele ser entrar já devidamente agasalhado novamente. Seus cabelos antes impecavelmente arrumados haviam sido bagunçados, mas aquilo o deixava mais bonito. Pelo menos na visão periférica da mulher.

Ele sentara na beira da cama, procurando pelos pés da moça. Começou então deslaçar aquela imensidão de fileiras feitas pelo cadarço enorme da bota preta que a calçava. Quando finalmente os tirou de seus pés, foi rapidamente até um armário e apanhou uma coberta; A cobriu com a mesma, vendo seu corpo agradecer finalmente pelo aquecimento.

– Deita aqui comigo, Corey. – pediu ao sentir suas pequenas mãos acariciarem seus cabelos. Ele não respondeu, apenas o fez, se enfiando nas cobertas junto com a mesma, que se virou para encará-lo de perto. Na verdade queria encarar algo mais especifico. Aquela imensidão azulada que lhe transmitia paz agora estava diferente, abatida. Seu olhar era profundo, mas profundo do que jamais fora. Parecia que tinha o poder de olhar através dos olhos sua alma, como se quisesse a sugar para si, ou talvez, apenas lê-la.

Sarah não agüentou mais apenas apreciar aquela feição a milímetros de distancia da sua, e tocou seus lábios aveludados delicadamente. Fechou os olhos para sentir aquela sensação de bem estar que já havia se esquecido de como era. Sentiu então a língua quentinha dele pedir passagem para entrar em contato com a sua, e sem pensar duas vezes ela permitiu, sentindo o gosto da sua saliva se misturar com a dele. As mãos dele acariciavam sua nuca, arrepiada.

Ele sentira falta daqueles toques, que só eram perfeitos quando se tratava daquela francesa mal educada. Ele não tinha nem sombra de dúvidas, havia se tornado outra pessoa, e conseqüentemente opiniões alheias o fazia ter certeza daquilo. Aquele fantasma tinha que ir embora.

– Porque voltou Corey? – perguntou, encarando os olhos azuis do homem a sua frente se intensificarem.

– Porque eu quero ficar aqui.

– Você não pode mais ficar aqui.

– Porque você se foi? Como pode ser tão egoísta? Acabar com a própria vida.

– Eu só terminei o que já havia começado Corey. Você sabe que eu não era feliz.

– Mas eu era... Com você aqui. Agora eu só sou esse louco, conversando com uma morta!

Sua voz se alterou, assim como seus braços jogaram longe aquelas cobertas. Ela tremeu, vendo-o transbordar raiva, jogando tudo que via pela frente para os ares.

O buraco no peito estava abrindo a cada grito vindo do rapaz, aquele que a amava; aquele que apesar de tudo, ela também amava. Mas havia sido tarde demais quando, numa tarde chuvosa de novembro, eles se conheceram. Sarah já havia perdido seus propósitos, seus ideais.


.

– Sabia que se você pular... Eu irei me sujar também, não é? – a voz grossa dele acordou-a de seu transe, fazendo-a se assustar profundamente.

– Você não tem nada haver com isso, o que está dizendo?

– Eu estou perto... Se você pular serei julgado.

– Nossa, que comovente... Está preocupado em não se sujar a tentar salvar a vida de uma mulher, prestes a pular da torre Eiffel.

– Pelo menos tem estilo, torre Eiffel é legal e alta... Sabe que não terá chances.

– É desse jeito que você costuma convencer as pessoas?

– É eu sei... Não sou muito bom com essas coisas, também já passei por isso. Tentei me matar uma vez, mas fui impedido por uma pessoa que, naquela época, era tudo pra mim... Estou aqui, não sou tudo pra você, óbvio, mas quero ser a pessoa a tentar te fazer mudar de idéia. Seja o que for que te abala, tenha paciência, só não se mate. Não na minha frente, não agüentarei o sentimento de fracasso depois...

– Fracasso?

– Mas é claro! Como acha que eu me sentiria se não conseguisse evitar uma bela moça de acabar com tudo assim? - disse assim, ascendendo seu cigarro entre os lábios. – Desce que eu te pago um café.

– Eu nem te conheço, e pelo que vejo não é francês.

– E você, francesinha, tem um sotaque horrível.

– Obrigado por me elogiar no momento em que eu mais preciso, americano de merda.

– Olha... Sempre ouvi falar que os franceses eram mal educados, eu só não imaginava me surpreender.

– Se não quer ser julgado então saia daqui! – disse ríspida, vendo-o tragar profundamente o cigarro. Ele a olhou de esgoela, apoiando–se na grade logo a sua frente para jogar a bita do tabaco ainda pela metade. Sorrindo pra si, ele começou a tirar seu casaco, acompanhando do tênis sujo que vestia.

– O que pensa que está fazendo, é maluco por acaso?!

– Vou fazer uma cena de filme agora, mas tem que me prometer que não irá escorregar como Rose, ok? Estou quase lá! – disse então, tirando enfim o ultimo par do sapato.

A mulher franziu o cenho, segurando ainda mais firme as grades, já que não tinha mais atenção em seus próprios braços. O homem loiro de olhos azuis subiu ao mesmo lugar, vendo-a entrar em desespero.

– Prazer Rose, sou o Jack. Sabia que nosso filme rendeu um milhão nas bilheterias? Pois é, somos fodas.

– Você é retardado!

– Não sou eu quem está prestes a pular da torre Eiffel...

– Olha só que lindo, ele também sabe as falas. – ironizou, revirando os olhos.

– É claro que eu sei... Já tive meus momentos sensíveis a frente da televisão... E até posso te ensinar a cuspir também, se quiser.

A brisa rigorosa que lhe batia ao rosto, em segundos, havia se tornado mais leve sobre os conceitos de Sarah. Sentiu quase que automaticamente, seus lábios se entortarem a meio fio de sua face, denunciando um meio sorriso – qual não passou despercebido.

– É impressão minha ou você achou graça?

– Porque está estragando todos os meus planos? O que vai ganhar com isso? Jesus, não se pode nem se matar em paz hoje em dia.

– Não com a minha presença... Agora, por favor, será que dar pra descer... Sinceramente, esse lance de titanic e frio não está dando na minha teia.

E em um pulo ele desceu daquela grade congelada, a pegando em seu colo. Colocou-a sobre o chão, vendo-a o estapear em seguida.

– Você é um idiota, metido a querer se intrometer na vida dos outros. Vá cuspir com seus pombos e me deixa em paz.

– Não enquanto você não ir tomar café comigo.

– Não quero te ver nunca mais! - disse enfim, saindo a passos apressados do lugar. O homem vestiu suas vestes novamente, o mais rápido que pode, tropeçando nas mesmas por conta da pressa. Desceu os relances da escada aos pulos, sem medo de cair; Passou por algumas pessoas, trombando com as mesmas, mas não se importou de gritar um “desculpa”. Não sabia francês mesmo. Ele só não podia perdê-la de vista.

Mas lá estava ela, a meio fio ainda da escada. Suas mãos atrás do corpo, colado a parede. Os fios de cabelos congelados, derretendo, embaraçados como se houvesse acabado de tomar um sereno. Seus olhos escuros, profundos ao tom de chocolate, encarando-o.

– Porque está correndo? –perguntou, com a voz embargada.

– Aquecendo.

Ela sorriu, vendo os dentes tortos dele visíveis logo após também.

– Dizem que café é mais eficaz enquanto a isso. - respondeu, vendo-o arquear as sobrancelhas.

As mãos ainda frias dela agarraram seus braços fortes dele, tentando o impedir de destruir o que ainda restava do quarto, daquele que pertencera a ela, ainda viva.

Encarou aqueles olhos claros intensamente, transparecendo seus sentimentos apenas com o contato visual. Ele entendera, ele sempre entendia... Desde o primeiro dia, aquele primeiro em que ela tentou se matar, aquele primeiro em que o tivera pra si. Ela sabia que aquele homem, definitivamente, seria seu.

Agarrou-o então, lhe atingindo os lábios; Ele retribuiu, apertando seus braços com as mãos grandes e pesadas. Colando seu corpo ao dela violentamente, eles caíram à cama logo atrás. Corey passou suas mãos por toda a extensão do tronco da mulher, acariciando especialmente sua barriga. Ela lhe retribuía da mesma forma, atenciosa, mas nada surtia efeito... Ele não estava a sentindo... Apenas aquele gosto de podridão a sua boca. Ela estava morta, morta ali em seus braços; Morta naquele cemitério francês a quilômetros distante do bairro suburbano em que Sarah morava. Novembro havia chegado e ele estava lá, naquele apartamento lilás, esperando por ela; Ela estava ali, seu fantasma.

– Está tudo errado Sarah!

– Eu nunca te escondi isso, querido.

–A Rose não se mata no final.

– Eu não sou a Rose, Corey.

– Mas era pra ser... Porque aceitou ir tomar café comigo? Porque me deixou de ter aquela noite?


.

– Então quer dizer que não posso saber o nome da francesa. – disse então, tomando um gole de seu café quente.

– Sim, e nem eu do americano...

– Achei justo fazer assim.

– O que te trás a Paris, americano? – frisou.

– Shows. – disse então, vendo-a arquear a sobrancelha.

– Shows? Que tipos de shows?

– Os meus shows.

– É famoso então?

– Ridiculamente famoso.

– E como não te conheço?

– Se você gostasse do gênero tenho certeza de que conheceria.

–Já te acho pouca coisa para ser tudo isso.

– Escuta... Costuma ser mal educada com todo mundo ou sou eu mesmo o problema?

– Sou uma francesa... Não disse que franceses são mal educados?

– Francesinha – enfatizou mais uma vez – Porque estava querendo acabar com sua vida?

– Nossa, que pergunta complexa.

– Pois é... Ainda estou tentando imaginar a resposta, se você quer saber.

– O mundo talvez.

– O mundo?

– É... Ele e as pessoas. Não me dou bem com ambos.

– Acho que um dia irei entender... – falou então, ascendendo mais um de seus cigarros. – Eu gosto de Paris... Tem essas mesinhas aqui fora e tudo mais, não preciso sair para fumar.

– Essa é a única coisa boa?

– Tirando a beleza, sim. A comida daqui é horrível... Sem ofensas, claro. E ha malucos prestes a pular da torre Eiffel. Ainda bem que escolheu o primeiro nível. – disse então, fazendo-a rir. Ele a encarou naquele mesmo momento, vendo seus dentes brancos perfeitamente alinhados. Escutando o som suave, mas forte, de sua risada. Os olhos fechados, lhe realçando os traços as pontas.

– Quer conhecer a parte mais bonita de Paris? – perguntou, engolindo os risos para reorganizar a própria voz, esta que saiu, por querer, sedutora. Ele arqueou uma de suas sobrancelhas, surpreso com a pergunta da mulher.

– Estou começando a achar que é realmente doida.

– Não foi essa a minha pergunta, americano.

– Oh, claro, mas antes preciso saber... Qual é a parte mais bonita de Paris?

– O meu apartamento. – respondeu então, vendo o rosto do homem a sua frente, pela primeira vez, inexpressivo. Ele tragou o cigarro ao vão dos dedos precisamente, sem deixar de encará-la. O bolo de fumaça que estava pronto para sair, fora o tempo suficiente para ele pensar, e dizer que sim.

– Acho que ainda tenho bastante tempo por aqui...


– Você se lembra meu amor? A gente tropeçava nos nossos próprios pés, e arrancávamos nossas próprias roupas sem ao menos sabermos os nossos nomes. Eu sabia desde que estávamos em cima daquela torre, que você seria meu. – ela sussurrava ao pé do ouvido do rapaz, que naquela altura tentava não encarar aqueles olhos escuros, sedutores. – Eu me entreguei a você sem ao menos saber quem você era de verdade... Eu já era sua, americano. Mas parece que nem tudo é o que pensamos, e no final das contas, eu tinha mesmo que me matar. Peço-lhe desculpas hoje, amanhã e sempre... Sei que fui fraca. Não pulei de uma torre, veja pelo lado bom, pelo menos a queda foi rápida e sem chances de pessoas serem julgadas. E olha só! Estou sendo educada com um americano. – continuou, vendo as lágrimas rolarem pelo rosto pálido de Corey. – Sabia que eu lhe escrevi uma carta de despedida, bem do jeito que você sempre faz aos novembros? Porque ainda vem aqui Corey? Você sabe que a Rose e o Jack não ficam juntos no final.

E então o grito estridente dele não pode ser segurado, e a metros longes Sarah preferiu se distanciar. Ela estava o enlouquecendo;

– Vou te contar um segredo... Eu não posso ir se você não deixar. Não temos como voltar atrás, eu morri. Então não venha até o lugar mais bonito de Paris, promete? Eu não quero causar mais transtorno em sua vida, você sabe que o que é bom não pode durar pra sempre... Se não se torna ruim. Você precisa me deixar ir, Corey.

– Não deveria ter aceitado o meu pedido de café.

– E você não deveria ter me impedido de pular.

– Eu pensei que iria ser pra sempre.

– Todos nós pensamos, mas a verdade é que, o sempre é sempre nos desapontar no final.

– Como pode ser tão fria?

– Eu te amo Corey, e estou fazendo isso por você. Não pode mais vir aqui, não pode mais sofrer por mim, eu preciso ir. Não agüento mais as tardes chuvosas de novembro.

– E se você não pular? Você pode ficar.

– Eu vou desaparecer Corey... Você sabe que eu vou simplesmente sumir quando amanhã chegar. E eu não posso fazer isso definitivamente sem ter que estar aqui aos novembros, sabendo que algo meu aqui está... Perdido. – ela se aproximou dele, espalmando suas mãos sobre o rosto do rapaz – Feche os olhos querido, o dia amanhecerá e você poderá voltar para o seu lugar... Americano.

Corey elevou suas mãos até as dela, fechando os olhos para sentir melhor o toque macio da mulher.

– Eu não posso Sarah.

A mulher fechou a cara, transmitindo insatisfação apenas com os olhos negros. Ela franziu seu cenho, vendo-o encará-la com as expressões mortas;

Ainda com as mãos sobre o rosto do rapaz, não pode evitar, aquela vontade que estava sentindo não pode ser simplesmente reprimida, ela precisava, ele precisava acordar; Sentindo suas ações tomarem o modo impulsivo, Sarah distanciou a mão de pianista da barba por fazer do loiro, e lhe atingiu logo após com sua força já descontrolada.

– Acorda Corey! – gritou, fazendo a cabeça de Corey rodopiar em 360 graus.

Mas o rosto não ardia... Não havia nem hematoma. Apenas a impressão de que houvera sido atropelado a 100 quilômetros por hora. Sarah lhe atingiu novamente o rosto, continuando com seus gritos, estes que já estavam beirando a descontrolado. Se fosse possível, todos naquele prédio também ouviriam, mas, definitivamente, só Corey tinha esse poder. Só ele a via, como se tivesse sonhando, como se tivesse preso naquela realidade alternativa, que havia criado por necessidade.

– Você não entende?! Não há mais nada aqui pra você! Não há mais nada aqui pra mim!


.

O sangue escorria pela calçada, preenchendo-a em uma poça vermelha, esta que assustava a todos os curiosos que paravam para bisbilhotar o que houvera acabado de acontecer, com aquela jovem mulher, que ainda poderia ter tudo pela frente. A tarde de novembro estava pesada.

O homem de olhos azuis estava paralisado do outro lado da rua, vendo os olhos negros de sua menina ainda abertos, sendo fechados apenas com um toque por algum dos bombeiros que a colocavam no saco mortuário.

Ele elevou seu cigarro à boca com dificuldade, suas mãos tremiam freneticamente. As pernas vacilavam bambas como jamais estivera, nem em seu primeiro show, ou seu primeiro casamento – este falho, por azar. Sarah não poderia ter partido também.

Com passos apressados ele caminhou até a mulher, já vestida ao saco preto. Antes que o zíper fosse fechado, ele se agachou logo a frente dela, deixando o cigarro de lado.

– Te encontro aqui... Aos novembros.

E então o zíper fora fechado, e a ambulância se arrancara com o cadáver, fazendo o movimento da rua se dissipar aos poucos. O homem ainda ficou ali, a meio fio, sentindo os mínimos ligamentos congelarem. Os flocos de neve o atingir. Paris era fria, e parecia ainda mais àquela hora.

Antes que decidisse, por fim, girar com os calcanhares para dobrar a esquina então, sentiu a brisa gélida passar por si como se uma pessoa tivesse o trombando, lhe causando arrepios e espasmos involuntários. E do modo mais nítido e real possível ele sentiu os pelos de sua nuca se eriçar, como se ela tivesse sendo tocada; Ele sentiu o hálito quente ao pé de seu ouvido; Ele a escutou.

– Ici n’est pas le plus bel endroit Paris... – a voz de um passarinho sussurrante logo ali, ao seu lado. Era Sarah, era a voz da francesa, lhe dizendo que o lugar já não era o mais bonito de Paris.

– Não existe mais o novembro. – ela disse então, se afastando. – Eu não existo mais Corey.

Ele recuou, negando com a cabeça. Ele sentira o teor da verdade lhe atingir com gosto o meio da face, literalmente. A insanidade havia o domado como uma doença contagiosa. Ele a queria ali e por este simples fato tinha as passagens aéreas dentro de sua carteira, todos os anos. Mas porque novembro? Novembro era significativo demais, e ele parara para perceber isto, finalmente. Era o mês em que haviam se conhecido, era o mês que ela havia se matado. Novembro era quando ela estaria viva, viva em si apenas... Porque o corpo de Sarah já havia sido desfeito há muito tempo. O fantasma... O próprio fantasma que ele havia criado de sua menina estava tentando o salvar daquele buraco fundo que houvera cavado, e infelizmente, caindo dentro logo após. Talvez, de fato, Sarah quisesse que Corey deixasse sua dor por ela ir embora, porque de um jeito ou de outro, ele estava vivo.

Corey limpou as lágrimas, puxando o ar vagarosamente, enquanto se aproximava novamente de seu fantasma particular. Afagou os cabelos já não tão sedosos, colando suas testas.

– Vou te libertar. – decidiu, vendo-a encará-lo no mesmo instante. – Mas te encontro mais tarde.

– Sim... Quando a sua missão aqui acabar, estarei te esperando.

Ele beijou sua testa, apertando os olhos para gravar seu ultimo toque, ou apenas para minimizar os rasgos no peito tatuado. Mas logo não havia mais ninguém em seus braços, não havia mais lábios aos seus; Não havia mais frio, nem calor. Só o nada daquele prédio de paredes desgastadas e madeiras esburacadas, velhas. Girou com o calcanhar, sentindo o vazio dentro de seu corpo consumi-lo com intensidade. Aquilo aconteceria.

Sentiu a brisa gélida lhe atingir o rosto com intensidade, como se alguém tivesse o ultrapassando; Era ela. A voz que lhe soprou o pé do ouvido:

Accédez à votrelieuaméricaine.


...

Dia seguinte

Sua mala já estava pronta. O apartamento lilás já estava trancado, com as chaves prontas para serem entregues ao seu novo dono. As passagens aéreas fora apertadas contras as mãos pesadas de Corey, este que caminhava pelas ruas de Paris. Mas antes de ir embora então, precisava subir os 300 degraus que levavam até o primeiro nível da torre Eiffel. Ele precisava se despedir mais uma vez, antes de decidir que não voltaria à França tão cedo.

A vista ampla do Champ de Mars era de um verde bonito, coberto de neve agora. Algumas pessoas passeavam lá embaixo, se destacando a pontos pretos por seus agasalhos reforçados. Ele ficaria maravilhado como na primeira vez, se o seu desabamento interior não fosse tão perceptível para si ainda.

E todo aquele entorpecimento que lhe cobria o seu eu fora violentamente quebrado com o som dos suspiros afobados, ofegantes. Dos passos apressados, arrogantes. A mulher desesperada, acovardada. No entanto, não esperava achar ali, Corey, e ao constar que não poderia estar sozinha naquele nível da torre Eiffel diminuiu a sua velocidade no mesmo instante, limpando as lágrimas que cozinhavam seus olhos tão claros como os dele.

– Está tudo bem? – perguntou. A mulher sorriu fraco, se aproximando da grade como se nada tivesse acontecido, como se nunca tivesse a intenção de ultrapassá-la; ultrapassá-la para se jogar. Jogar-se como Sarah havia tentando o fazer, ha quatro anos atrás.

Mas Corey sabia que havia alguma coisa errada, e sabia de inicio, que se não tivesse ali, ela realmente tentaria o fazer.

– Porque quer fazer isso? – Perguntou, quebrando o silêncio esmagador. A mulher de cabelos presos a um coque alto o encarou, assustada.

– Je ne vous comprends pas.

– Desculpe, eu não falo francês. – continuou, constrangido por não conseguir se comunicar como queria.

– Américains. – concluiu, revirando os olhos.

Corey arqueou sua sobrancelha, aquela palavra ele compreendia e muito bem.

– Français. – respondeu a mesma língua. Alguma palavra conhecia, conseqüentemente.

– Eu não sou francesa. – ela disse então, vendo-o surpreso logo após. A mulher tirou de dentro da sua bolsa um maço de cigarros, acendendo um em seguida. – Sou brasileira.

– E o que faz aqui?

– Viagem a trabalho.

– Costumam pular da torre Eiffel a trabalho?

– Como sabe que eu iria pular?

– Apenas sei, acredite.

Ela o analisou por alguns segundos, soprando a fumaça do tabaco longe.

– Quer tomar um café? – perguntou então, vendo-o hesitar para trás. – E eu te conto porque queria fazer isso.

– Desculpa, mas não vai dar. Tenha um vôo para daqui... – olhou seu relógio de pulso. – Meia hora. – disse enfim, pegando a pequena mala apoiada ao chão. A mulher sorriu sem jeito, assentindo então. – Mas antes de eu partir, quero que saiba que pode ter existir alguém que irá sofrer muito com sua partida, e desejará que outras pessoas nunca passem por isso. – concluiu, vendo a moça absorver suas palavras silenciosamente, como se a verdade houvesse a tocado. Ele desejara aquilo, porque nada era mais sincero do que havia acabado de dizer.

Corey despediu-se então, começando já a descer a leva de degraus, com a pressa lhe comichando. Não queria perder seu vôo, não queria perder a chance com o recomeço que lhe esperava em sua casa, aquela de Des Moines, Iowa - onde nascera.

Onde devia ter ficado naquele Novembro.


Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.