| Cheshire |

A vila do interior de copas era sempre muito bem movimentada, as pessoas mais simples trabalhavam com vigor, preparando a melhor área comercial possível para que os nobres de viajem sempre pudessem se sentir bem recebidos, o chão de terra era sempre limpo para que as pedras não interrompessem as carruagens, os estandes sempre traziam flores, frutas e tudo de melhor que aquela terra produzisse.

Tanta devoção por alguns trocados, por alguma comida ou algum serviço digno, expectativas muitas vezes não correspondidas e tantas outras vezes até mesmo sabotadas.

— Devolva! – Um grito soou ao meu lado e eu imediatamente encarei uma lojinha simples no fim da rua. Um homem moreno segurava uma sacola enquanto uma garota ruiva lhe suplicava, de joelhos. —É tudo o que me resta...

— Já tem muito aqui, uma plebeia como você deveria ter alguma noção, me cabe ao menos um terço do que tens.

— Por favor senhor, eu já lhe entreguei tudo o que pude, por favor, deixe minha família!

Respirei fundo, os dois quase gritavam e ainda assim eram ignorados, mas é claro, ela era uma simples mulher e ele um nobre, em copas as coisas funcionavam assim, pelo menos para eles.

— Qual o seu problema? – Interroguei, parando ao seu lado. –Não me recordo de leis que permitam o roubo!

O homem sorriu transtornado, enquanto a menina baixou os olhos, chorando em silencio. Era comum a mim, como soldado, sempre usar o uniforme, os trajes negros do exército de copas, mas era incomum, para um nobre, ser parado por qualquer outro senão seu próprio ego.

— Ora não diga bobagens... – Ele olhou em meus olhos e pareceu estremecer, meus olhos nem sempre foram como são, amarelos, felinos, me ajudavam a enxergar melhor, mas faziam todos ao meu redor sentirem pavor ao me encarar.

Um poder solitário.

Mas para um país com este, reles soldados não deveriam se preocupar com coisas como solidão, principalmente ao receberem ordens.

— Estou apenas negociando um produto com a minha companheira. Não quer um precioso rubi? Dizem que os mais nobres, os mais corajosos e determinados de copas possuem o brilho do rubi em seus cora-

Segurei-o pela gola da camisa logo o derrubando no chão, ele me lançou um olhar amedrontado e confuso.

—Se há algum brilho em meu coração... – Sussurrei me abaixando lentamente e retirando uma faca afiada do bolso. --Ele é verde como uma jade e quebrado como a honra deste país.

— Você é... Cheshire...

— Eu sou aquele que vai enfiar essa faca no seu pescoço se não devolver essas joias e sumir desta vila.

Me afastei ao vê-lo jogar a sacola de volta para a garota e correr desesperado até sumir de vista.

Eu não deveria me envolver com nobres, mas o tanto de paciência que gastava com missão, me faltavam para sempre manter a máscara do dia a dia.

— Cheshire? – Algumas pessoas sussurraram, assustadas e eu ajeitei o capuz, era sempre igual onde quer que eu fosse, minhas mãos estavam sujas de sangue e minha real honra não mais existia.

A menina recolheu a sacola e me encarou por um instante, talvez tenha pensado em agradecer formalmente, ou talvez tenha considerado fugir, mas no fim apenas ergueu uma rosa em minha direção e correu para dentro da loja ao me entregar.

Ajeitei em minhas mãos a rosa e sorri minimamente, se meu coração estivesse um pouco menos rachado talvez...

— É uma honra ajudar. – Sussurrei e voltei ao meu caminho, precisava encontrar meu primo enquanto havia tempo.

. . .

Suspirei, encarando um bar meio isolado, era uma das passagens secretas que os rebeldes usavam para seguirem livremente sem serem notados ou presos por soldados da rainha.

Copas era um país feito em cima de ganância e pessoas frustradas, pessoas frustradas trabalhavam mais do que deviam e perdiam seu tempo em lugares como esse.

Ao passar por outra porta perto do balcão do bar eu desviei o olhar até uma mulher ruiva sentado em uma das mesas vazias. Ela nada disse, sua função era saber que tudo estava sob controle.

Passei direto, até passar por outra porta, eu parei quando cheguei no quintal discreto, grande, porém cuidadosamente feito para se passar por algo comum, duas grandes árvores se destacavam no meio, e muitas outras menores enfeitavam o lugar, para certamente disfarçar a função das duas principais.

Parei em frente as duas e ergui uma das mãos, eu não precisava de senhas, era uma vantagem mínima em ser Cheshire, todas as portas se abriam para mim.

Fosse para o bem ou para o mal.

As folhas das árvores se agitaram, como se uma ventania houvesse passado por ela, e um portal escuro se abriu, sem pensar duas vezes passei por ele.

. . .

Abri os olhos, sentindo a brisa que vinha do quintal desaparecer e o portal se fechar, a minha frente uma longa rampa branca indicava o caminho para seguir, uma descida em caracol até os esconderijos nos solos inferiores.

Respirei fundo e segui por ela, o local era escuro, algumas poucas tochas, presas a parede de pedra iluminavam o caminho pelo qual eu seguia, com os pensamentos ao longe, a descida era longa, mas minha mente tão dispersa nem sequer notou, apenas me dei conta da realidade ao chegar ao fim da descida.

— Ches! – Ouvi uma voz familiar ao meu lado, havia chegado a uma sala minimamente mais iluminada que a rampa, estava completamente vazia como muitas saídas de portais. —Demorou um milênio!

Revirei os olhos ao notar meu primo se aproximando com uma garota ao seu lado, a menina loira me encarava de modo apreensivo, eu não a culpava, meus olhos assustavam até o mais corajoso dos homens. Mas algo sobre ela me intrigou, meu primo não usava os nossos nomes comuns quando confiava plenamente na pessoa que estava com ele, então ele certamente não deveria conhecer a menina tão bem, ainda assim ele queria protege-la?

—White, eu não poderia ter escolhido hora melhor para sair de um dia exaustivo de trabalho, encontrar nosso comandante saindo de um portal esquecido, receber um bilhete seu e descumprir ordens!

Foi a vez dele de revirar os olhos.

—Pare de reclamar, eu preciso mesmo da sua ajuda... – Ele olhou para o chão. — Você não foi o único que descumpriu ordem, digamos que eu estraguei tudo!

—Esse lugar é como aquele outro que caí ao chegar?

—Sim, respondi e sorri docemente. Você deve ser Alice, eu suponho. – Fiz uma breve reverencia e ela sorriu sem jeito, é claro que era Alice, não havia quem pudesse irritar mais a rainha a ponto de até mesmo nosso comandante ser chamado, apenas Alice e sua família poderiam fazer tal coisa. —Cheshire ao seu dispor. - Meu primo olhou ao redor, ansioso. —Este portal é seguro, White, muitos os usam no dia a dia, mas me parece que não é este o caso. Afinal, não é todo dia que recebemos viajantes por aqui.

—Precisamos da sua ajuda. Alice está preocupada com a família, acho que a rainha os levou... Se nos ajudar podemos salvá-los de modo rápido e assim o problema acaba!

Suspirei encarando os dois.

—Isso parece uma missão quase suicida. – Sorri de lado, aproveitar a vida com alguma loucura não seria má ideia. —Venham comigo, vamos sair deste portal, tem alguns tuneis que levam até uma das celas da rainha, se dermos sorte sairemos vivos.

—Dramático. – Meu primo resmungou e eu sorri gentilmente, os guiando até fora do portal.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.