Nosso Tempo é o Sempre

Aonde está você agora, além de aqui dentro de mim?


A sensação de deja-vú atingiu-o em cheio antes mesmo que abrisse os olhos do breve cochilo ao qual se rendera no caminho de carro. A mão gentil de Jayme tocou seu ombro, avisando que haviam finalmente chegado. Ainda com a cabeça recostada no encosto da poltrona do carona, Niko abriu os olhos e deparou-se com a visão já familiar dos amplos portões de ferro, que mesmo fechados, pareciam aguardar por ele em silenciosa e paciente espera. Jayme já manobrara o carro no extenso estacionamento que havia em frente à entrada. Por cima dos muros não muito altos, era possível entrever o topo de muitas árvores frondosas, o que encerrava em seu interior promessas de sombras frescas e paz.

Niko já conhecia aquele lugar. Não era a primeira vez que o visitava. Na verdade, naquele dia em particular, fazia exatamente um mês desde que ali estivera pela primeira vez. Não pôde evitar, assim como em tantas vezes anteriores, que a mesma lembrança o assaltasse, com algumas essenciais diferenças com o momento presente.

Olhando agora para aqueles portões fechados por onde logo entrariam, Niko recordava nitidamente o momento quando Jayme o levara ao asilo onde morara por um mês durante a viagem de seu filho e de sua nora à Europa. Ao se despedir de Jayme em frente aos portões do asilo, Niko jamais poderia ter imaginado que um mês naquele lugar seria o suficiente para mudar inteiramente sua vida, porque aquele fora o lugar onde o conhecera. Onde o encontrara. Onde o reconhecera.

Félix Khoury.

O amor era o que o esperava dentro daqueles portões, simples assim. A pessoa por quem esperara toda sua vida sem ao menos saber que o fazia. O amor de sua vida, a metade de sua alma... poderia pensar em mil nomes e expressões para tentar designar o que não precisava nem podia ser explicado.

Diante dos portões do asilo, pouco mais de dois anos antes, Niko dera o primeiro passo no interior da imensa e ajardinada casa de repouso, sem imaginar o que as misteriosas engrenagens do destino haviam lhe reservado em seu interior.

Um novo toque em seu braço o dispersou do mar de lembranças que o tragara tão facilmente, trazendo-o ao presente. No último mês isso vinha acontecendo constantemente, a ponto de às vezes até perder a noção do tempo enquanto se refugiava naquelas janelas do passado, tão atrativas e confortadoras.

– Pai... tudo bem?

O tom de voz preocupado de Jayme injetou-lhe um pouco de ânimo, e ele conseguiu sorrir para o filho.

– Sim, Jayminho. – seu filho era um homem feito quase de meia idade, mas Niko sempre o chamara e sempre o chamaria assim. – Estou bem. – o olhar do filho não mostrava que se convencera. – De verdade. – ele assegurou.

Niko procurou aumentar o sorriso, o que foi suficiente para convencer o filho, por ora. Ele retirou o cinto de segurança. Jayme desligou o carro, saiu e deu a volta para ajudar o pai a descer, ainda que ele não fosse assim tão dependente a ponto de precisar disso. Mas Niko aceitou a ajuda com um sorriso terno. Era simplesmente incapaz de recusar qualquer ato ou gesto de amor, de quem fosse. Ainda mais vindo de seu filho mais dedicado. Um fisgar de culpa assomou-lhe ante esse pensamento em relação ao filho mais novo. Ele sabia e compreendia o quanto a vida de Fabrício sempre fora mais atribulada do que a de Jayme, que nunca tivera filhos. E não era como se nunca houvesse acompanhado o pai antes àquele lugar, claro que sim. Especificamente hoje, porém, seriam apenas ele e Jayme. Mesmo desejando que também Fabrício estivesse ali, Niko procurou confortar-se com o pensamento que a boa intenção também era uma forma de presença.

Jayme já pegava no braço do pai para caminharem até os portões quando Niko lembrou-lhe.

– Não vamos esquecer as flores. – A idade ainda não afetara sua memória, felizmente. Às vezes pensava assim, em outros momentos não. Mas estes eram mesmo muito poucos.

– Desculpe, pai, vou pegá-las. – Jayme abriu a porta do carro. No banco de trás, um lindo e farto buquê de rosas brancas repousava. O rapaz retirou-o com cuidado e fechou a porta. Virou-se para o pai, que logo o colheu nas mãos, aninhando-o junto ao peito como se fosse um delicado pedaço branco de paz.

Caminharam lentamente até a entrada coroada pelos portões de ferro, onde um vigia abriu um dos portões assim que se aproximaram. Quando pai e filho entraram no lugar de braços dados, uma extensa paisagem repleta de gramados muito verdes estendeu-se ao alcance de sua visão. Em silêncio contemplativo eles percorreram o caminho de paralelepípedos que atravessava o imenso jardim a perder de vista. Árvores de copas generosas emprestavam sua sombra àquela longa passarela de pedras. Aqui e ali, pelo chão e pelo gramado, a luz do sol dava um jeito de pontuar o caminho, vencendo com determinação as folhagens encorpadas das árvores acima.

Era primavera. Todo o lugar explodia de cor e vividez em volta deles, à medida que avançavam por aquela estrada cinzenta e sinuosa. Niko sentia o olhar preocupado de Jayme sobre si enquanto andavam. Virou o rosto para o filho e sorriu-lhe. Um sorriso terno para assegurar-lhe mais uma vez que estava tudo bem. Com a mão que não segurava o buquê junto ao peito, apertou o braço de Jayme para aumentar esse reforço.

Logo o caminho que percorriam começou a mostrar às suas margens verdes de grama os primeiros blocos de pedra repousados no solo. Não havia uma regularidade rígida na forma como apareciam, e os tamanhos e formatos diferiam. Alguns redondos, outros ovais. Em sua maioria retangulares. Alguns desses marcos no gramado possuíam foto, outros eram cercados e enfeitados com buquês de flores, e a vivacidade da cor de suas pétalas indicava há quanto tempo haviam sido deixadas ali. Era triste notar que pétalas murchas e desbotadas prevaleciam sobre as flores frescas.

– Já estamos quase chegando, pai. – anunciou Jayme e Niko assentiu. Caminhavam há dez minutos. À medida que se aproximavam de seu destino, era cada vez mais difícil para Niko manter o sorriso tranquilo no rosto. As lágrimas já eram mais difíceis de se represar também. Niko não saberia dizer porque parecia importante que lutasse mais um pouco contra elas. Afinal, aquele era o lugar oficial das lágrimas. O lugar perfeito para deixá-las como uma oferta efêmera logo a ser evaporada pelo vento. Como se derramá-las ali dentro tornasse a dor mais leve e menos agoniante.

A cada dez metros, um ou outro banco de madeira adornava o caminho, de um lado e de outro, espaçadamente. De onde estavam agora, já era possível avistar a figura de um homem sentado em um desses bancos, que por acaso, localizava-se exatamente em frente ao destino final de pai e filho.

O homem moreno de meia-idade sentado no banco parecia absorto, com o olhar perdido à frente, mas assim que percebeu a aproximação de Jayme e Niko, levantou-se para cumprimentá-los. Ele não chorava, mas seus olhos vermelhos indicavam que o fizera não muito tempo antes.

Niko aproximou-se dele sorrindo. Sem que precisasse pedir, o buquê de rosas foi colhido de suas mãos por Jayme.

– Jonathan. – murmurou Niko, antes de abraçá-lo. – Que bom que veio.

– Eu não deixaria de vir hoje, Niko. – Jonathan retribuiu o abraço caloroso com força, a voz já embargada. Quando separaram o abraço, Jonathan pôde ver que Niko também já chorava, embora sorrisse.

– Como você está, Niko? – foi a pergunta cheia de preocupação.

– Estou bem. Obrigado, Jonathan. – Ele limpou as lágrimas com as mãos trêmulas, entregando que talvez não fosse totalmente verdade. Agora que já conhecia Niko há bastante tempo, Jonathan podia mais uma vez comprovar o que seu pai costumava repetir. Ele nunca soubera e jamais saberia mentir.

Jayme aproximou-se deles, e Jonathan cumprimentou-o com um meio abraço, de forma a não amassar as flores que levava nas mãos.

– Oi, Jayme. Obrigado por trazer o Niko. Essa era minha vez de trazer vocês, mas acabei tendo um problema e me atrasando...

– Imagina, Jonathan. – respondeu Jayme com um sorriso, mas seus olhos também já estavam vermelhos. – O importante é que estamos todos aqui.

– Sim. Ele gostaria muito disso.

– Ele adoraria. – completou Niko, com novas lágrimas já deslizando pelo rosto. Não se importou em limpá-las dessa vez. – Posso até ouvi-lo dizendo que todos o querem.

Os três riram juntos por entre lágrimas. Eram risadas com um quê de doçura misturada com tristeza. Mas essas lágrimas nem machucavam tanto, talvez pelo fato de serem compartilhadas. Um peso que agora era dividido por três, e o tornava mais leve para cada um, ainda que muito brevemente.

– Essas rosas são lindas, Niko. – elogiou Jonathan, quando Jayme devolveu o buquê para o pai.

– Rosas brancas. – Niko abaixou o olhar para o buquê. - São as preferidas dele.

Um silêncio cerimonioso instaurou-se. Os três se voltaram para o outro lado do gramado e se aproximaram, ficando de frente para o pedaço retangular de mármore branco que repousava à beira da relva ainda molhada pelo orvalho da madrugada, pois a manhã mal começara.

Não havia foto. Somente uma inscrição gravada em uma letra manuscrita de traços clássicos, acima de duas datas.

“Félix Khoury

Ele era ele, e como ele não havia,
nem nunca poderia.
Ele amou e sim, mereceu ser amado.
Ele é amado.
Nosso amor está com ele.
E ele está em nosso coração.”

Ainda que aqueles dizeres na lápide tivessem nascido de um momento de completo caos emocional, Niko conseguia avaliar agora a verdade e a simplicidade daquelas palavras. Não se lembrava de tê-las escrito. Não se lembrava de muita coisa. E às vezes essas coisas pulavam de uma névoa esmaecida da memória e voltavam sem aviso e sem misericórdia para perfurar seu peito e roubar seu ar por alguns segundos.

Dessa vez não uma, mas duas mãos, uma em cada ombro, o trouxeram de volta com seu aperto gentil. Niko fechou os olhos expulsando algumas lágrimas que deslizaram pelo rosto, deixando pequeninas gotículas brilhantes nas pétalas brancas junto ao seu peito. Alguns minutos se passaram até que a voz suave de Jonathan quebrasse o silêncio.

– Niko... Nós vamos à lanchonete comer alguma coisa. – Jonathan lançou um breve olhar para Jayme, que assentiu em silêncio. Niko permaneceu de olhos fechados. Uma sensação morna encheu seu peito. Eles não iam fazer lanche nenhum. Era simplesmente uma desculpa tácita para deixá-lo sozinho com Félix. Niko apenas concordou acenando com a cabeça, agradecendo mentalmente pela consideração velada.

As mãos deixaram seus ombros, e os dois homens se afastaram sem mais palavra. Parado em pé diante da lápide, Niko abriu finalmente os olhos e centrou o olhar no pedaço de mármore no gramado. Seu olhar foi atraído para o vaso de cristal que jazia do lado, na grama, que abrigava um buquê de rosas brancas já começando a murchar.

A vontade prática de resolver isso o fez esquecer da dor brevemente. Niko voltou para o banco de madeira e depositou ali o buquê de rosas. Em seguida, retornou ao vaso, abaixando-se com um pouco de esforço para poder pegá-lo e jogar as flores murchas em uma lixeira próxima. Também próxima havia uma pequena torneira na qual encheu o vaso com água fresca. Voltou ao banco e retirou o papel que envolvia o buquê, colocando-as com cuidado dentro do vaso. Olhou para o resultado de seu pequeno trabalho com orgulho.

Niko escolheu uma rosa do buquê e separou-a das outras, mantendo-a numa mão, enquanto a outra depositava o vaso agora renovado de cor branca e viva, junto à lápide. Olhou para a segunda data gravada após os dizeres. Uma pontada de dor a mais acentou-se em seu íntimo. Ele se fora exatamente um mês antes, em um dia doze. E hoje, também dia doze, Félix Khoury estaria completando oitenta e dois anos.

Está completando oitenta e dois anos. Niko corrigiu-se mentalmente. Quando se tratava de Félix, para ele ainda era impossível conjugar os verbos no passado. Algo lhe dizia que talvez jamais conseguisse fazê-lo, pois sua presença ainda era tão pungente e presente, dentro dele e ao seu redor, que havia momentos em que quase sentia seu olhar sobre si, e que se voltasse rápido o suficiente, teria como flagrá-lo sorrindo para ele, com seu sorriso torto tão característico.

Mas Niko nunca conseguira se voltar rápido o suficiente. Isso não o impedia de continuar tentando, já que o vão em seu coração falava mais alto que sua razão.

Niko trouxe a rosa que separara do buquê junto ao nariz e aspirou seu perfume suave. Esfregou pensativamente o caule liso. Aquela perfeita rosa branca, assim como as demais do buquê, tivera todos os seus espinhos retirados na floricultura, a seu pedido.

– Parabéns, meu amor. Espero que goste das rosas. – ele murmurou, já sentindo a garganta embargada. Engoliu as lágrimas penosamente, mas isso só fez com que mais delas aflorassem. Um estoque permanentemente renovado a cada respiração. A cada bater do coração. A cada abrir dos olhos a cada manhã. As pausas magnânimas existiam, é claro, mas nunca era decisão sua os momentos delas aparecerem para lhe brindarem com alguma paz.

Parecia ser o momento ideal para uma oração, um ato que sempre conseguia trazer-lhe um pouco de alento em meio à dor constante. Com a flor junto ao peito, Niko fechou os olhos e recitou em voz baixa uma prece. O gosto salgado das próprias lágrimas em seus lábios sabia-lhe acre, mas rezou a oração até o fim, não se importando mais em segurar o choro. Esse era o único tributo que poderia oferecer-lhe, então que fosse tudo de si. Já deixara sua alma em consignação com ele desde o primeiro momento, e nenhum fechar de olhos poderia mudar isso.

Finda a oração, Niko andou até o banco de madeira e com um suspiro cansado sentou-se nele, a posição em que encontrara Jonathan mais cedo. A solidão silenciosa era um bálsamo benvindo. Ele ergueu a rosa diante dos olhos, observando sua perfeição na forma das pétalas alvas que ensaiavam um completo desabrochar.

O amor que levara uma vida inteira para encontrar desabrochara dentro dele tão lindamente quanto aquela rosa agora o fazia. Para Niko não era nem um pouco difícil evocar nos próprios lábios o sabor do primeiro beijo tímido de Félix, trocado bem no meio do jardim do asilo. O primeiro de muitos, a primeira troca de carinhos e a certeza que suas almas estavam definitivamente conectadas. O contato físico só viera validar essa certeza e servir de conduto para a troca de calor entre os corpos de ambos. Tudo o que acontecera a partir daquele primeiro mágico encontro de lábios e de almas fora uma consequência natural e obrigatória.

Ainda com a rosa branca entre os dedos, e com o olhar perdido para muito além do que um pedaço demarcado de terra poderia jamais determinar, Niko permitiu-se divagar para aquela mesma data, dois anos antes. Um momento feliz era a lembrança que permitia encontrá-lo, e fechando os olhos mais uma vez, Niko foi.

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