No light, no light

Os signos do Zodíaco em Istambul


Parte ll

As Rosas Negras de Istambul

''Ele era carismático, magnético, eléctrico, e todo mundo sabia disso. Quando ele caminhava a cabeça de cada mulher se virava, todos se levantavam para falar com ele. Ele era como este híbrido, esta mescla de um homem que não conseguia se conter.''

(National Anthem, Lana del Rey)

Era de manhã e Ibrahim Mazur encontrava-se parado no meio da pista de pouso de um pequeno aeroporto particular nos arredores do Cairo. Com as mãos nos bolsos, fitava o horizonte em tons de azul a sua frente sem temor, com sua absoluta calma e usual tranquilidade.

Ao vê-lo em sua camisa púrpura de seda, a guardiã Janine Hathaway inspirou profundamente antes de dar um passo de cada vez em sua direção.

Um passo de cada vez em direção a sua nova vida.

Ao vê-la, ele sorriu naturalmente. Quando estava perto o suficiente para que o escutasse, não se conteve em provocar.

—Você está com cara de quem quer me dar uma surra.

A guardiã abriu um sorrisinho e perguntou, cruzando os braços em frente ao corpo:

—Turquia, hein?

Ele riu com gosto, mas repetiu o consolo que lhe havia dado por telefone:

—Como eu disse, você vai amar Istambul. É uma cidade encantadora.

Janine concordou com a cabeça e se deixou ficar ao lado dele em silêncio por um segundo.

—Obrigada, Ibrahim. – ele olhou para a ruiva com uma expressão desentendida, mas ela logo continuou – Por ter pago a internação da Roxie no Maadi.

Abe abriu a boca para contestar, mas novamente ela o cortou:

—Eu sei que foi você, Ibrahim. Ninguém mais usa cachecol de caxemira no Cairo.

Novamente, ele riu enquanto endireitava o acessório.

—Estou me sentindo como se tivesse sido traído pelo meu melhor amigo.

Janine riu da piada com ele, que voltou a perguntar:

—Como ela está?

Tornando-se séria de um segundo para o outro, a guardiã respondeu:

—Fui visitá-la de manhã antes de vir para cá. Nenhuma mudança significativa no quadro dela, mas ela está realmente melhor alojada. – Janine sorriu com carinho, e até com uma pontada de melancolia – Tem um quarto só para ela e enfermeiras passam o tempo todo para checar como ela está indo. Se estivesse acordada, teria amado toda essa atenção.

—Fico feliz em ouvir isso.

E no seu rosto, Janine já sabia que ele era verdadeiro em cada palavra.

—Eu achei que ficar no Cairo seria uma vantagem, pois eu poderia estar sempre perto da Roxanne... – suspirou com preocupação – Isso muda um pouco já que vou para outro país de qualquer jeito.

—Não se preocupe. – ele sorriu compreensivo – O Egito e a Turquia são praticamente vizinhos, então posso trazer você aqui nos dias de folga sempre que quiser.

Os olhos dela se arregalaram e com uma surpresa quase infantil, não se conteve em perguntar:

—Sério?

—Eu prometo. Roxanne acabou se tornando muito especial para nós três, e ninguém quer ficar longe dela. Mas também não é saudável para você ficar se martirizando no hospital o dia inteiro.

Quase envergonhada, Janine olhou para baixo por um segundo antes de encará-lo novamente.

Era então isso o que parecia estar fazendo? Vivendo sob um sentimento doentio de auto-punição e culpa.

—Eu não estava tentando me punir, Ibrahim. – ela se defendeu – Eu sou a única pessoa que a Roxie tem. Ela é minha amiga já há muitos anos e se tornou uma irmã para mim também. Eu só não conseguia deixá-la sozinha.

—Eu sei. – ele respondeu com bondade – Mas você ia acabar ficando doente se continuasse a agir daquele jeito e eu não iria suportar assistir a isso.

Pega totalmente desprevenida por suas palavras, Janine sentiu seu corpo involuntariamente dar um passo para trás. Por que passara a entrar sempre em modo de proteção quando estava perto dele?

—Qual foi a verdadeira razão para ter me contratado como guardiã, Ibrahim Mazur?

Com um sorrisinho de lado, numa cara de quem já esperava aquele tipo de pergunta, não em se deixou abater e devolveu a indagação:

—Só respondo se antes disser qual a verdadeira razão para ter aceitado trabalhar para mim.

Janine fechou a cara ao perceber que ele tinha novamente conseguido virar o jogo, o que naturalmente o fez rir. Desviou o olhar para outro lado e não lhe deu resposta alguma.

Logo depois, com o canto do olho, o viu checar o relógio de pulso dourado e então olhar para os lados como se estivesse esperando por alguma coisa.

—Pavel já deveria estar de volta. – comentou em voz baixa.

—Aonde ele foi? – finalmente sentiu que a pressão do diálogo anterior tinha se esvaído e que estava livre o suficiente para voltar a conversar com Abe.

—Ligar para a Cassandra. Mas isso foi há vinte minuto.

Janine tentou controlar o riso. Nunca havia conhecido a esposa do guardião Pavel Belikov, mas já tinha certeza absoluta que ela era o tipo de mulher que fala muito. E muito alto.

—Pobre coitado. – Ibrahim acrescentou.

—Você fala como se morresse de medo dela. – Janine comentou rindo.

—Cassie me apavora. –ele confessou, também sorrindo.

A ruiva levantou as sobrancelhas, não acreditando que alguém como Ibrahim Mazur tivesse medo de qualquer pessoa no mundo. Ele mesmo já era um tipo de perseguidor criminoso bastante assustador.

—Logo depois que contratei Pavel, há mais ou menos um ano e meio, tive que viajar com ele para a Rússia para pedir permissão para a Cassandra.

—Você está brincando. –Janine era sempre cética em relação a qualquer história absurda que ele lhe contasse.

—É sério! – ele se defendeu – Quando cheguei a casa deles, Cassie estava sentada no tapete da sala tirando a pele de um lobo que por acaso, ela tinha acabado de matar.

—Ela matou um lobo? – suas sobrancelhas se levantaram novamente.

—Ele estava comendo as galinhas dos moradores do vilarejo onde eles moram. –explicou melhor.

‘‘Ah, ela teve um bom motivo. Pelo menos ela não é uma assassina cruel de animais selvagens. ’’, Janine pensou. Não que isso tornasse a história muito mais normal.

Abe continuou o relato:

—Bem, assim que ela me viu, abriu o sorriso mais encantador do mundo e apontou uma faca do tamanho do meu braço na minha direção e disse: ‘‘Se alguma coisa acontecer com o meu Pavel, caço você até as profundezas do inferno e arranco a sua pele igual à desse lobo.’’ Acho que ela achou que eu seria o guardião dele, e não o contrário.

Janine riu e, verdadeiramente interessada, perguntou:

—E depois? Como conseguiu fazê-la deixar Pavel acompanhar você até Istambul?

—A conversa melhorou bastante depois disso. Sei que, no fundo, ela tem muito medo. Viver pensando que a qualquer momento o marido dela pode ser capturado por Strigoi, morto ou transformado não deve ser nada fácil. Mas ela também sabe que Pavel é um ótimo guardião, completamente capaz e responsável.

—É o preço que qualquer pessoa paga ao se envolver com um de nós. Temos sempre que conviver com os riscos. – Janine respondeu, com a expressão séria e o coração triste.

Pensava em Roxanne, desacordada numa cama de hospital. Desde que saíram da Academia, sabiam estar correndo perigo constante e, no fundo, temiam muito que qualquer coisa de mal pudesse acontecer com a outra.

Então Janine sabia exatamente como Cassandra Belikov se sentia.

Ibrahim sorriu e voltou a falar para distraí-la:

—No fim, acho que ela acabou me achando uma pessoa decente o suficiente para cuidar do amor da vida dela. E o resto da minha visita a Baia foi bastante tranquila.

—Nenhuma outra ameaça de morte? – ela perguntou divertida.

—Surpreendentemente, nenhuma. Eu, ela e Pavel passamos o resto da noite brincando com jogos.

—Coisas do tipo ‘‘vamos ver quem consegue empalhar um urso mais rápido’’?

Ibrahim revirou os olhos com a piada péssima e respondeu à pergunta:

—Claro que não. Nós jogamos Banco Imobiliário.

Janine riu, tendo certeza de que o vencedor teria sido Abe. No entanto, teve uma grande surpresa quando ele acrescentou:

—Pavel ganhou duas rodadas e Cassie a última. – e ao ver a expressão descrente dela, se defendeu – O que foi? Fazer negócios é muito mais difícil no jogo que na vida real.

Janine concordou com a cabeça, ainda um tanto cética quanto a esse resultado. Mas nenhum deles teve oportunidade de continuar, porque Pavel apareceu, com os passos rápidos,carregando sua bagagem de mão. Cumprimentou primeiro Janine com um sorriso, para depois voltar-se para o patrão:

—Desculpe a demora. Cassie mandou lembranças.

—Nenhuma ameaça de surra, esquartejamento ou morte dessa vez? Puxa, eu e sua esposa estamos realmente progredindo na nossa relação.

Pavel revirou os olhos e disse para Janine, tentando impedir que Ibrahim contaminasse a opinião da guardiã sobre sua esposa:

—Cassie é um amor de pessoa.

—Tenho certeza de que é, Pav. – ela respondeu com uma compreensão exagerada e um sorriso.

Mas, quando Pavel virou-se satisfeito para o outro lado, Janine fez veemente que ‘‘não’’ com a cabeça, o que fez Ibrahim praticamente se engasgar com o próprio riso.

—Aliás – Pavel voltou-se novamente para Janine, sorrindo de orelha a orelha – Fico muito feliz que tenha aceitado a oferta do Abe, Jenny. Vai ser realmente uma honra trabalhar ao seu lado.

—Será uma honra ser sua colega também, Pav. – ela respondeu enquanto davam um aperto de mão caloroso.

Ibrahim sorria para os guardiões como um pai orgulhoso de duas criancinhas pequenas durante uma demonstração de afeto fraternal.

—Bem, todos prontos então? – Ibrahim pigarreou, reassumindo a compostura.

Janine e Pavel concordaram e Abe indicou com a cabeça o jatinho ao lado do qual eles estiveram o tempo todo parados.

—Você só pode estar brincando! – Janine deu uma risada nervosa, enquanto observava Abe subir as escadas– O quão rico você realmente é?

Ele virou para trás simplesmente para piscar para ela e dizer:

—O suficiente para alugar um jato particular, mas não o bastante para ter lanchinhos de graça durante a viagem.

Pavel a ajudou com sua pequena mala cinza. Não tinha muita coisa, mas esperava que Ibrahim pudesse lhe indicar um bom brechó em Istambul. Se bem que com o salário que ele lhe tinha prometido, ela nunca mais precisaria comprar roupas de segunda mão na vida

A viagem a Istambul não durou mais que duas horas. Durante todo o tempo, Pavel e Ibrahim estiveram sentados frente a frente, entretidos com uma partida interminável de xadrez. Janine, do outro lado do corredor, passou o tempo tentando controlar a dor de cabeça irritante que sempre a acometia quando viajava de avião.

—Acho que tenho algum remédio para dor de cabeça na mala. Tem certeza de que não quer nada? – Pavel sugeriu pela terceira vez enquanto sobrevoavam o Mar Mediterrâneo.

—Eu estou bem, Pav. De verdade. – respondeu enquanto massageava as têmporas.

—Você não parece bem. – ele insistiu

—É normal. Eu só detesto voar. – Janine suspirou.

—Outra característica do signo de Aquário? – Ibrahim perguntou, sem tirar os olhos do jogo.

—O que? – a guardiã parecia completamente perdida – Desde quando você sabe... Ah, deixa pra lá.

Ibrahim e Pavel riram. Depois de capturar um bispo do adversário, Pavel explicou:

—Fui eu quem contou.

—Não me diga que você também acredita nessa história de signos. – Janine deu a Abe um olhar descrente.

—Claro que não. É coisa do anticristo.

A resposta arrancou uma gargalhada de Pavel e um suspiro ainda mais profundo de Janine.-Olha, eu não acredito naquela baboseira que colocam no jornal de manhã dizendo que cor cada signo deve usar ou o que deve comer para o almoço. Mas algumas características realmente costumam dar certo comigo.

—E qual seria seu signo? - ela virou a poltrona giratória de maneira a ficar de frente para os dois, com os braços cruzados em frente ao peito.

—Escorpião.

—Não é possível! – Janine lançou os braços para o ar – É o signo da Roxanne também. Ela não parava de falar sobre as características dos escorpianos quando estávamos na Academia.

—Então você já sabe muito sobre a minha personalidade, guardiã Hathaway? – ele tinha um sorriso provocador e tinha até largado a partida por um instante para ouvir sua resposta.

—Claro que sei. Viciado em sexo.

Pavel riu e Ibrahim parecia um tanto atônito com a ousadia da guardiã.

—Não acredito que fui reduzido a um protótipo tão baixo. – ele respondeu, fingindo estar profundamente magoado.

Pavel abriu a boca, talvez para apoiar Janine em sua tese sobre o patrão, mas um olhar de Abe o fez pensar melhor e desistir do comentário.

Janine perguntou então:

—Qual é o seu signo, Pav?

—Libra. – ele sorriu – Quer dizer que eu e você podemos ser ótimos amigos.

—Eu seria sua amiga até se você fosse de Capricórnio e eu estivesse no inferno astral.

Dessa vez, tanto Ibrahim quanto Pavel largaram o jogo para olhar assustados para a ruiva.

—O que foi? A Roxie falava muito sobre signos. – ela se defendeu.

Os dois foram obrigados a aceitar e voltaram para seu jogo. Logo, Pavel exclamava inconformado:

—Como foi que você comeu minha rainha com tão poucos movimentos?

Foi a vez de Janine lançar um olhar assustado para o colega, que corou até a raiz dos cabelos.

—Isso não saiu como deveria. – ele murmurou desconcertado.

—Tudo bem, Pav. A culpa é do Ibrahim que é escorpiano.

Ibrahim, que estivera rindo, tornou-se sério e se defendeu:

—O verbo certo é ‘‘capturar’’. Ninguém ‘‘come’’ peças de xadrez.

—Sei lá. – a ruiva deu de ombros – Nunca aprendi a jogar nenhum jogo de tabuleiro.

—Essa é uma das coisas que vamos ter que trabalhar quando chegarmos em casa, guardiã Hathaway.

—O que deve acontecer a qualquer momento. – comentou Pavel enquanto espiava a paisagem pela janela – Já consigo ver a Basílica de Santa Sofia daqui.

—Também quero ver! – Janine soltou-se do cinto e foi se espremer entre Ibrahim e Pavel para conseguir ter ao menos uma parte da vista espetacular.

—E então, guardiã Hathaway? O que achou? – Abe perguntou ao ver que seus olhos azuis tinham um brilho diferente.

—É lindo. – ela respondeu apenas, com um pequeno sorriso.

Dentro de meia hora, os três já estavam em solo turco, dentro de uma limusine que os levaria à casa de Ibrahim.

—Até que é diferente do Cairo. – Janine, cujos olhos nunca deixavam a janela, comentou em voz baixo.

—São países distintos, guardiã Hathaway.

Ibrahim, sentando no banco oposto ao dela, remexia em alguns papéis que tinha acabado de tirar de uma pasta. Pavel, ao lado do patrão, também observava a paisagem, já que havia um motorista para levá-los e ele podia dedicar-se exclusivamente à ocupação de passageiro.

—Eu sei que são. – a ruiva revirou os olhos – Mas é o estereótipo, sabe. ‘‘Só tem muçulmano, mulheres usando burcas, muita poeira, estados totalitários e homens-bomba’’.

Ibrahim sorriu com a visão dela fazendo literalmente aspas com as mãos.

—Posso garantir que a Turquia é muito mais que um estereótipo. – ele pensou um pouco e acrescentou – Embora a parte da poeira seja bem verdadeira.

Janine riu e teve que se controlar para não deixar o queixo cair quando o carro atravessou portões de ferro cheios de floreios e detalhes, passando por um jardim de ladrilhos coloridos com uma fonte no centro.

Contornando a fonte de pedra, chegaram à porta da casa.

‘‘ Casa é pouco, isso está mais para mansão. ’’, foi o pensamento de Janine quando saltou do veículo com uma mão segurando a mala e a outra apoiada na cintura.

Paredes vermelhas subiam quarenta metros de altura, sustentadas por colunas brancas em estilo dórico. Uma enorme porta de madeira trabalhada, aberta, deixava entrever o interior da casa, com o assoalho de madeira, as janelas amplas e a escada que subia para o segundo andar.

Nem bem tinham saído do carro, uma mulher humana saiu apressada do interior da casa, abraçando Ibrahim com força assim que ele pisou na varanda situada na parte anterior da casa.

—Ibrahim! Como você está, meu querido?

—Estou bem, anne.

Ele a abraçou de volta com a mesma intensidade enquanto Janine, de pé ao lado de Pavel, observava tudo com um olhar confuso.

Daria à senhora alguns bons cinqüenta anos. Ela tinha o cabelo loiro escuro salpicado de prata preso num coque, olhos pequenos, o corpo cheio e não era nada alta.

No entanto, a figura dela era a de uma mulher competente, focada e enérgica.

Soltando-se do abraço, ela o segurou longe apenas o suficiente para poder olhá-lo nos olhos enquanto perguntava:

—Como foi o casamento do seu primo?

Ibrahim respondeu sorrindo:

—O casamento foi lindo, anne.

—Ouvi dizer que vários guardiões se machucaram durante a cerimônia. – ela continuou com verdadeira preocupação emanando dos olhos.

Suspirando, Ibrahim finalmente respondeu. E Janine não demorou a perceber que ele claramente pouparia a mulher dos detalhes mais fortes.

—Tivemos uma invasão Strigoi durante a cerimônia, mas conseguiram controlar a situação. Provavelmente, mais um dos ataques políticos que vêm acontecendo tanto.

—Disseram que uma moça dampira se machucou gravemente e que está internada até hoje.

O coração de Janine pareceu se apertar no peito. Ela estava falando de Roxanne.

‘‘As notícias realmente correm aqui no Oriente Médio. ’’, foi o pensamento que invadiu sua cabeça ao mesmo tempo em que Ibrahim a olhava de relance enquanto começava a formular sua resposta.

—A guardiã Ryder infelizmente acabou em coma, mas está sendo muito bem cuidada. Temos esperança de que em breve se recupere totalmente.

—Com certeza, querido. – ela sorriu e respondeu sem contestar. Aquela foi a primeira das muitas demonstrações de confiança absoluta que Janine veria por parte daquela mulher para Ibrahim. Mudando para um assunto mais leve, ela fez nova pergunta– Você transmitiu meus carinhos à Hathor?

—Eu dei os parabéns, anne, mas sinto em dizer que deixei essa parte de ‘‘transmitir carinhos’’ para a esposa dele.

A mulher deu um olhar reprovador para Abe pela insinuação que acabara de fazer. No entanto ela não ficou mais que cinco segundos brava e já lhe dava um beijo em cada bochecha:

—Senti sua falta, küçük prens.

Ela soltou Abe e adiantou-se para abraçar Pavel, que deixou a mala no chão para lhe abrir os braços:

—E como está meu garoto russo favorito? Fizeram boa viagem?

—Melhor impossível, Mabel. – ele respondeu também, naturalmente sorrindo.

Ela então se virou finalmente para Janine, que, um pouco encolhida, sentia-se um tanto constrangida com tanta demonstração de afeto.

—E quem é essa garota tão bonita, Ibrahim?

—A nova colega de trabalho de Pavel, guardiã Janine Hathaway.

—É um prazer. – Janine estendeu-lhe a mão, que a outra apertou ainda com uma atitude precavida.

—Mabel Brooks, a governanta-chefe da família Mazur há três décadas. – virando-se para o patrão, cruzou os braços ao perguntar – Você nunca contrata guardiãs mulheres, Ibrahim.

Com a usual calma de sempre, segurou a mala de Janine, terminando de abrir a porta com a mão livre.

—Não, anne, meu pai nunca contrata guardiãs mulheres. E já está mais do que na hora de mudar esse padrão, não acha?

A mulher suspirou e pareceu resignar-se:

—Você está certo, meu menino. Os quartos lá em cima já estão arrumados. Não demorem a descer; o almoço está quase pronto.

Com isso, ela voltou para dentro tão rapidamente quanto saíra e continuou seu caminho até desaparecer por um corredor.

Janine deixou Ibrahim e Pavel entrarem na frente, usando-os como guias. Passaram por uma enorme sala, onde a guardiã pôde ver de relance sofás de veludo verde, uma lareira e vários quadros de aparência um tanto antiga.

Os dois seguiram em linha reta até a enorme escada de madeira.

—Isso foi inspiração de ‘‘E o vento levou’’?

Ibrahim riu, mas Pavel olhou para trás com as sobrancelhas arqueadas, o que fez a guardiã exclamar:

—Ah, qual é, Pav! É um clássico do cinema!

Ibrahim revirou os olhos enquanto continuavam a subir.

—A deficiência de Pavel que estou corrigindo é a falta de bons filmes.

—Abe nem parece o mafioso que é quando está assistindo a seus filmes românticos da década de 40. – ao terminar a provocação, abriu rapidamente a primeira porta de madeira ao lado esquerdo da escada, onde Janine pensou que fosse seu quarto, e se jogou para dentro antes que o patrão tivesse tempo de retrucar.

—O filme é de 39. – mesmo sem poder se fazer ser ouvido, Ibrahim ainda assim fez questão de dar a última palavra.

Balançando a cabeça, desistiu da discussão e chamou Janine para que ela o acompanhasse. Continuaram pela esquerda até o final do corredor, quando ele abriu a última porta de madeira.

—Só pode ser brincadeira! – dessa vez Janine não conseguiu controlar seu espanto ao ver o quarto que lhe fora designado.

A suíte que ocupara no Cairo já era, em sua opinião, um desperdício por ser tão grande. Agora, a da casa de Ibrahim deveria ter pelo menos o dobro do tamanho.

Tudo no quarto remontava à claridade: o chão era completamente coberto por um carpete creme, a enorme cama de dossel tinha a roupa de cama branca. O guarda-roupa branco com quatro portas ocupava uma parede inteira. Opostas a ela, havia três grandes janelas de vidro que davam para o jardim e a fonte na frente da casa. Uma porta entreaberta levava para um banheiro também enorme e muito iluminado por janelas basculantes de vidro.

Vendo sua expressão incrédula, Abe deu um sorrisinho e colocou calmamente sua mala em cima da cama. Começou a falar, tomando cuidado com as palavras:

—Eu... Só quero que você saiba que... O que a Mabel disse não foi por mal. Ela só demora um pouco para confiar nas pessoas.

—Mabel não me ofendeu, Ibrahim. –ela se sentiu livre o suficiente para se sentar na beirada da cama. Afinal, agora ela era sua – Mas eu realmente tenho uma pergunta.

Ele fez sinal de que estava ouvindo e então ela continuou.

—Porque você a chama de Anne?

Ele sorriu ao explicar:

Anne é turco para ‘‘mamãe’’. A Mabel foi criada da minha mãe antes dela se casar; depois se tornou a governanta da casa do meu pai. Na prática, foi ela quem me criou.

Janine sorriu com a confissão dele.

—Ela me passou uma boa primeira impressão, de verdade. Teria menos confiança nela se aceitasse qualquer pessoa à primeira vista. E ela também parece saber confiar nas pessoas certas.

Com as sobrancelhas arqueadas, ele perguntou:

—Por que diz isso?

Ela sorriu da expressão confusa dele ao responder:

—Porque dá para ver como ela confia cegamente em você.

Sentindo-se perfeitamente vitorioso com a resposta e satisfeito com o comentário anterior, ele se afastou até a porta com um sorriso no rosto. Olhou para o relógio de pulso outra vez:

—Com o fuso, já é meio-dia. Você quer almoçar agora? – ele perguntou.

—Não, obrigada. Acho que vou desfazer as malas primeiro; não tem lá muita bagagem.

—Certo. Pavel também costuma sempre almoçar mais tarde, então vou pedir para ele chamar você quando estiver descendo.

Ela agradeceu e com um sorriso, os dois se despediram.

—Ah, Ibrahim! – chamou antes que ele fechasse a porta por completo – Do que foi que a Mabel chamou você?

Janine pensou ter visto a sombra de um enrubescimento passar por seu rosto.

Küçük prens. Quer dizer, literalmente, ‘‘pequeno príncipe’’.

Depois que Ibrahim fechou a porta, Janine caiu para trás na cama e riu ao pensar que não poderia ter ouvido um apelido de infância que fosse mais fiel a ele em todo mundo.