—Se você estiver com muito medo se perder, guardiã Hathaway, eu posso segurar sua mão.

Janine revirou os olhos, fechando a cara com o comentário de seu patrão. Era verdade que não parava de virar a cabeça de um lado para o outro, mas era apenas uma medida de precaução por estarem num lugar tão cheio.

—Eu estou checando ao redor. Meu trabalho é impedir que você se perca.

Ele riu e virou-se para o lado dela, com um sorriso no rosto e os óculos escuros escondendo seus olhos.

Era por volta da hora do almoço e o Grande Bazar de Istambul estava completamente lotado.

Se não prestasse atenção à língua com a qual os vendedores gritavam suas ofertas, era quase como se estivesse de volta ao Cairo, porém dessa vez num lugar mais bonito.

—Ainda é de dia, Janine. – ele comentou – Não precisa ficar tão preocupada assim.

—Só estou preocupada porque se você morrer, eu paro de receber meu salário.

Ele riu novamente e ainda teve tempo para provocar:

—Ateia, cética, irônica, materialista, cínica... Tudo o que sempre desejei que minha garota fosse.

—Corta essa de minha garota. – ela reclamou sem paciência.

Mas, dentro dela, seu coração perdeu uma batida ao ouvir o antigo apelido novamente. Vivendo em Istambul já há um mês e meio, sentia-se muito próxima de Ibrahim Mazur, ao mesmo tempo em que mais longe que nunca.

Os dois tinham sempre uma relação leve e bem humorada, entrecortada às vezes pelas tiradas sacanas por parte dela.

Quando estavam em casa à noite, costumavam jogar tabuleiro com Pavel. Os meninos cumpriram bem a promessa de ensinar Janine a jogar não só xadrez, mas também damas, gamão, Batalha Naval, e é claro, Banco Imobiliário.

Mas, com certeza, nenhum deles esperava que ela pudesse se sair tão bem em pôquer. Segundo seus colegas, a ruiva tinha simplesmente um talento natural para a coisa.

Ibrahim atribuía suas vitórias a uma ainda não confirmada habilidade deslumbrante para mentir.

E, claro, ele gostava de falar. Janine muitas vezes ficava exasperada com a capacidade do patrão em falar sem parar sobre um assunto qualquer do dia-a-dia.

Porque era simplesmente sobre isso que ele falava: pequenos assuntos banais, que podiam ser interessantes ou engraçados, porém nunca profundos.

Ele não era como Pavel, que tinha contado alegremente a Janine sobre praticamente toda sua vida, gostos e opiniões.

Para ela, o melhor de tudo foi ver as fotos de sua família que ele sempre carregava consigo.

Na noite anterior, ele as trouxe para a sala, com os olhos alegres ao mostrar todos os detalhes à amiga.

Havia uma foto de sua esposa, Cassie, que Janine considerou logo uma das mulheres mais bonitas que já tinha visto.

Ela era quase tão alta quanto uma Moroi e seus cabelos loiros estavam presos num rabo baixo. Por baixo dos pesados casacos de pele, ela podia ver que Cassie também era bastante magra. Os olhos dela eram de uma cor incrível entre o azul e o verde e, combinados às suas feições delicadas e ao sorriso largo, a tornavam quase uma espécie de anjo.

Para completar a foto, ao seu lado havia o corpo inerte do urso que ela havia acabado de matar naquela mesma tarde.

—Aqui, essa foto é dos meus sobrinhos.

Ele entregou a fotografia de três crianças à amiga, fazendo-a sorrir imediatamente. Um menino estava sentado entre duas meninas, todos com cabelos e olhos castanhos e sorrisos travessos nos rostos.

—Eles são lindos, Pav.

—Obrigado. – ele piscou e deu uma risada – Puxaram ao tio.

Apontando para cada um deles, disse seus nomes: Karolina, Dimitri e Sonya.

—Karolina é a mais velha, já tem nove anos. Ela é muito gentil, porém extremamente mandona. Já Sonya acabou de fazer cinco anos, mas é muito independente para a idade.

—Parece que seu sobrinho se sente acuado no meio delas. – ela comentou com um sorriso.

—Dimitri é o único garoto na casa, então costuma ter esse ar um pouco perdido. – ele riu – As meninas estão frequentemente fazendo-o brincar de bonecas e casinha com elas, ou qualquer coisa parecida. Mas ele é um garoto muito inteligente, perceptivo e também corajoso. Tenho certeza de que dará um excelente guardião algum dia.

O peito de Pavel inflou com o orgulho pelos seus sobrinhos e Janine não poderia ter se sentido mais feliz por ele.

—Qual a idade dele?

—Vai fazer sete no começo de julho. Vou visitá-lo na semana do aniversário. Sabe, o Abe sempre me dá as minhas semanas de férias junto com os aniversários da minha família.

—Isso é bem atencioso, Pav. – ela comentou em voz baixa, porém sorrindo mais por dentro do que queria demonstrar por fora.

—E essas são minha mãe e minha irmã. – ele continuou ao entregar-lhe outra foto.

A irmã de Pavel era jovem, mais do que Janine esperava que fosse ao descobrir que era mãe de três filhos. O cabelo dela caía solto pelos ombros, cobrindo parcialmente seu rosto. Ela e o irmão tinham herdado da mãe os mesmos olhos castanhos profundos, porém eles não podiam ser mais diferentes entre si. Os olhos de Pavel eram calorosos, firmes e focados. A irmã tinha os olhos parados, perdidos num ponto à sua frente que não era no fotógrafo. Seus olhos eram quase tristes.

A mãe de Pavel, por outro lado, era mais velha do que o esperado, com a cabeça toda branca e rugas ao redor dos olhos e no canto da boca. Mas mesmo através da pele flácida, seus olhos tinham se mantido firmes e seu semblante carregava um ar estranho de mistério, como se estivesse olhando através da foto exatamente para seu expectador. Era algo que lembrava a Janine as histórias sobre as bruxas russas que sua avó gostava tanto de contar quando ela era criança.

—Elas são tão diferentes. – Janine comentou ao alisar a foto com o dedo.

—Ou essa foto está óbvia demais, ou você é uma verdadeira detetive, guardiã Hathaway.

Pavel sorriu para ela, mas seu sorriso era mais melancólico que qualquer outra coisa.

—Como é sua irmã? Ela parece tão triste...

A frase saiu antes mesmo que Janine pudesse pensar em segurá-la. Mas, sem se incomodar, Pavel continuou com o mesmo sorriso triste no rosto ao contar:

—Ela é doce. Sempre foi, aliás. E por mais que eu tente enfiar algum juízo na cabeça dela, é ingênua também. Mas acho que isso simplesmente faz parte da sua personalidade. É boa mãe, boa filha, boa irmã. – ele suspirou – O problema de Olena é ser boa demais. Até com aqueles que não merecem.

—Ela também é guardiã?

—Infelizmente não. – Pavel balançou a cabeça com uma espécie de tristeza resignada – Em Baia, a vila onde minha família mora, as coisas são um pouco, vejamos... Retrógadas. Mulheres não se tornam guardiãs: elas simplesmente cuidam da casa. Às vezes, se casam e também tomam conta do marido e dos filhos. Mas não se engane, as mulheres de Baia são muito conhecidas por sua força de vontade e determinação. Cassandra que o diga. – ele riu – Sem dúvida teria dado uma guardiã descomunal.

—Pela cara desse urso aqui, eu não estou em posição de discordar. – ela riu também ao devolver-lhe as fotos.

Mas, por dentro, seu coração ainda estava apertado. Pavel nunca mencionara um cunhado e ela conhecia muito bem o olhar perdido de Olena Belikov.

Ela era, com toda certeza, uma viciada. Mulheres dampiras que não se tornavam guardiãs tinham uma chance muito maior de acabarem como prostitutas de sangue e Janine queria fazer o possível para enganar a parte de seu cérebro que trouxera essa constatação à tona.

Olhando para Ibrahim, que lia um livro noutra poltrona, aparentemente alheio à conversa dos guardiões, encontrou seus olhos com preocupação. Como se esperasse que ela o procurasse, ele fez um movimento afirmativo com a cabeça, quase imperceptível. Uma expressão triste dominava seu rosto.

E agora que estavam escondidos pelas lentes escuras, Janine se perguntava como estariam seus olhos. Ela já os vira calmos, tristes, cheios de alegria, desejo e até raiva.

Para ela, os olhos dele eram o mundo.

Uma onda particularmente espessa de pessoas cruzou com eles no caminho para o segundo bedesten do Bazar, quase a arrastando para trás junto a eles.

Se Ibrahim queria fazer parecer como se não estivesse prestando atenção à guardiã, sua atitude seguinte deixou extremamente claro que era apenas fingimento. Ele alcançou sua mão com rapidez, escondendo-a totalmente entre a sua.

Ela olhou para cima, como se procurasse por alguma explicação. No entanto, ele continuou a andar, puxando-a agora também.

Entrelaçando seus dedos, como gostava de fazer quando ainda estavam no Cairo, Ibrahim Mazur praticamente arrancou um suspiro de deleite da guardiã Hathaway.

Como poderia nem ao menos ter se dado conta do quanto sentira falta de um gesto tão simples?

—Você é bem quente para um vampiro.

Ela estava falando sobre as mãos dele, obviamente, mas a frase, como sempre, saíra com um milhão de sentidos distintos.

Ele não sorriu e seu corpo não demonstrou qualquer reação ao que ela tinha dito, quase sem pensar.

E ela continuaria a achar que ele não a tinha ouvido se não fosse a maneira com que seu toque na mão dela tornou-se ainda mais forte e intenso.

Além disso, uma certeza inexplicável de que por baixo dos óculos escuros, Ibrahim Mazur sorria a invadiu, fazendo com que tivesse que olhar para baixo a fim de esconder seu sorriso.

Estavam agora num dos pátios do bazar, onde vários cafés tinham sua entrada para o sol incansável que aquecia Istambul.

Ali, o número de pessoas circulando era bem menor e Janine sentia-se exposta ao caminhar tão abertamente de mãos dadas com o homem que era seu patrão.

Com delicadeza, e talvez um pouco triste, ela desfez-se dos dedos que mantinham seguros os seus.

—Está tudo bem. Não vou me perder. – ela se desculpou em voz baixa, guardando as mãos longe do alcance dele, evitando que qualquer um dos dois se sentisse tentado.

Mas, contrariando qualquer expectativa, ele deu um sorriso verdadeiro e apenas chamou:

—Vamos.

Um pouco atônita, ela seguiu seus passos até um pequeno café decorado bem tipicamente. Ficava na ponta da galeria, com quatro mesas dobráveis na porta. Numa delas, um homem Moroi, loiro e bem arrumado, checava um relógio de pulso.

Assim que os avistou, ele sorriu e levantou-se da cadeira. O abraço que compartilhou com Ibrahim era fraterno, porém sua voz estava cheia de provocação:

—Está atrasado, Mazur.

-Não pelo meu relógio. – ele respondeu sem se abalar, tirando os óculos escuros para colocá-los sobre a mesa.

—O meu é um Quartz. – ele exibiu o acessório caríssimo preso no pulso com um belo sorrisinho de vitória.

—Quartz suíço. – Ibrahim, usualmente calmo, puxou a manga esquerda do terno para cima, atraindo quase uma careta para o rosto de seu companheiro.

Sentou-se sem cerimônia, não sem antes apresentar a guardiã Janine Hathaway a Ayadin Lautrec, advogado da família Mazur.

—Onde está o russo, Abe?

—Pavel? Está de folga hoje; acho que esgotei muito o pobre coitado ontem no escritório. Alguns Morois da Arábia Saudita pediram especificamente por uma reunião às três da manhã; e ela acabou durando até as nove.

—Algo de muito importante? – pelo seu tom de voz, Ayadin deixava claro que não era do feitio de Ibrahim seguir os desejos de pessoas como os sauditas em questão.

—Qualquer coisa sobre petróleo. –ele respondeu sem dar muita atenção.

O advogado tomou seu lugar na mesinha redonda à frente de Abe e Janine com uma leve careta de desagrado.

—Espero que você tenha algo de muito importante para me pedir, já que me fez descer até o bazar à uma da manhã.

—Uma da tarde. – corrigiu Ibrahim sem se deixar intimidar pela ameaça.

—Nós somos vampiros, Ibrahim! E Deus nos fez assim exatamente para que não tivéssemos que sofrer com esse sol escaldante.

—Esse é o pior argumento sobre o sentido da vida que já ouvi. Como é que você consegue se sair tão bem na Corte dizendo coisas nesse nível?

Surpreendentemente, quem respondeu à pergunta foi a guardiã:

—Do mesmo jeito que você é bom em negócios, mas é uma droga em Banco Imobiliário.

Janine sabia que tinha sido ridicularmente imprudente dessa vez. Mas, verdade seja dita, ela preferiria perder o emprego a perder a piada.

—Eu não sou uma droga! Estou aprendendo ainda. – ele se defendeu. E a guardiã não tinha ideia se ele estava fingindo ou se realmente tinha se magoado com a brincadeira.

Ayadin riu com diversão e dentes muito brancos antes de elogiá-la indiretamente:

—Guardiã engraçada essa que você encontrou, Abe. Aliás – ele continuou com um sorrisinho que nada tinha a ver com o anterior – Está empregando garotas agora?

O tom dele não agradou nada a Janine. E pior que isso foi reconhecer o tipo de ironia que Ayadin tinha usado.

Guardiãs mulheres costumavam ter suas habilidades constantemente desprezadas por Moroi, em sua maioria homens.

—Eu sei reconhecer talento natural quando o vejo, Ayadin. – Abe a defendeu antes mesmo que ela tivesse formulado uma boa resposta. A verdade era que não estava realmente preparada para lidar com todas as desconfianças e piadas de mau gosto para cima de sua pessoa.

Pela frequência com que isso vinha acontecendo, Janine pensou que seria mais útil ter sempre uma boa resposta formulada na cabeça.

—Ei, eu não estou duvidando das suas escolhas. Só achei novidade, isso é tudo.

—Por que os Mazur sempre tiveram a fama de machistas arrogantes? – ele perguntou com calma.

Janine levantou as sobrancelhas tentando entender o que acontecia com seu patrão. Ele tinha acabado de ofender sua família, e mais que isso, ofendera si mesmo e ainda assim continuava extremamente calmo.

‘‘Ele não se importa porque não se sente parte do grupo. ’’, ela percebeu finalmente.

Ele não tinha qualquer orgulho ou ligação com a família do pai, que muito provavelmente lhe trouxera o sobrenome Mazur.

—Não foram só os Mazur que receberam uma fama desse tipo. Nossos pais construíram bem sua reputação juntos – o outro comentou com um tom levemente amargo.

Diferentemente de Ibrahim, ele não era tão bom em esconder suas emoções. Ou pelo menos não sabia fazê-lo longe de um júri.

—Ironia ou não, é por causa do meu pai que estou aqui hoje. – Ibrahim retomou a conversa.

O outro levantou o corpo na cadeira e Janine pôde perceber que o assunto era muito sério.

—Ele finalmente decidiu criar um testamento e como nosso advogado, o trabalho duro vai sobrar todo para você. Apesar de ter dado finalmente o braço a torcer, ele não vai fazer isso do jeito fácil. É bom que ainda tenha aquele livro sobre Direito das Sucessões, Ayadin.

O outro adquiriu uma postura profissional extremamente responsável que Janine não tinha visto ainda.

—É melhor que comecemos a trabalhar nisso o mais rápido possível. Quando você acha que poderei ir até lá para vê-lo?

—Sugiro que não demore muito. Ele está numa fase estável com os remédios, que parecem ter decidido funcionar por um tempo.

—Algum outro tratamento alternativo?

—Você bem sabe o quanto continuar vivo se tornou uma obsessão para ele.

A expressão dele parecia fria e irônica demais para quem falava de um pai.

Janine podia contar nos dedos todas as vezes em que vira seu pai, mas a ausência jamais a fizeram repugná-lo com a mesma intensidade com que Ibrahim proferia suas palavras.

—Pensei que seu pai estivesse morto. Vocês sempre falam dele como se estivesse num passado distante. – ela comentou com o patrão.

—Ele não está, mas é como se estivesse. – respondeu com paciência – Meu pai foi diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica há quase um ano. Ele simplesmente não suportaria a ideia de todos sabendo sobre sua doença, então para o resto do mundo, está aposentado e vivendo na casa de campo que temos em Hatay.

—Ibrahim, eu sinto muito. – ela respondeu com sinceridade na voz.

Quem estava com a expressão confusa pelo diálogo agora era Ayadin, que alternava o olhar de um para o outro.

—Nós dois juramos fazer a vontade de seu pai e manter a doença dele em segredo. Por que está contando isso a uma guardiã?

—Peço perdão. Não tive a intenção de me meter na vida privada de ninguém. – a ruiva se adiantou para se desculpar, sentindo a pressão dos olhos claros de Ayadin sobre ela.

—Não se desculpe. – Ibrahim cortou sua fala para então se dirigir ao advogado – Você também sabe bem o quanto confio nos meus guardiões. Eles têm total liberdade para saber dos assuntos que eu quero que saibam. A doença do meu pai não é nenhum segredo de Estado e eles têm que estar a par disso para quando me acompanharem a Hatay. O guardião Belikov sabe sobre meu pai, por isso a guardiã Hathaway também deve saber.

—Garoto, você ainda vive na defensiva. – o outro respondeu sem preocupação alguma, esticando os braços atrás da cabeça ao se espreguiçar na cadeira – Bem, os guardiões são seus; faça o que desejar.

Ele checou o relógio de pulso mais uma vez antes de se levantar e também colocar óculos escuros sobre os olhos:

—Tenho uma reunião com outro cliente daqui a vinte minutos, então é melhor eu me apressar.

—Achei que não trabalhasse durante o dia. Sabe, toda essa coisa de ‘‘sou vampiro por um bom motivo’’.

Ele sorriu e abaixou um pouco os óculos numa pose juvenil:

—Para o bem ou para o mal, dinheiro é o hino do sucesso. Vou estar ocupado com alguns compromissos pelo menos toda essa semana. Quando precisa que eu vá a Hatay?

—Quando quiser e quando puder. Não é como se eu estivesse muito a fim de arrumar mais dor de cabeça para o meu lado.

Rindo, ele abraçou Ibrahim quando este se levantou. Despediu-se com um educado aceno de cabeça da guardiã e ainda exclamou enquanto se afastava:

—Se cuida, kuzen.

Ibrahim deu um tchau com a mão e assim que percebeu a expressão no rosto da guardiã, perguntou divertido:

—Quer que eu traduza o que ele disse?

Talvez um pouco envergonhada, ela fez que sim com a cabeça.

—Ele acabou de me chamar de primo.

—Vocês são parentes? – ela parecia surpresa. A falta de semelhança física entre eles era algo inquestionável.

—Não de verdade. – ele riu – Nossas mães eram amigas desde a adolescência e por isso fomos criados praticamente juntos.

—É estranho. – ela comentou. – O sobrenome dele é francês, mas o nome é turco.

—Os pais de Ayadin eram franceses, mas vieram para a Turquia pouco depois que minha mãe também saiu da França para casar com meu pai. Eles simplesmente pegaram um nome típico do país de nascença dele. Por isso ele tem esse nome, mesmo que tenha todo esse ar de europeuzinho.

Ela riu e tentou fazer sua próxima pergunta soar o menos insensível que conseguia:

—Você disse ‘‘eram’’. Os pais dele já faleceram ou também ficaram doentes?

Ibrahim não pareceu se incomodar nada com sua curiosidade.

—Não, Ayadin realmente é órfão. Seus pais morreram num acidente de avião quando ele tinha dezenove anos.

—Ele não vai se sentir mal por você estar me contando todas essas coisas? – ela pareceu envergonhada, sentindo estar adentrando um território que não era permitido para ela.

—Esse é realmente um assunto neutro para ele. Ayadin foi extremamente corajoso na época e superou tudo sem traumas.

Janine não tinha a intenção, mas percebeu que sua expressão tinha se convertido numa careta.

Ao observar a reação que suas palavras tiveram sobre a guardiã, Ibrahim sorriu e olhou para ela com paciência:

—Você não concorda comigo?

Ela desviou o rosto em direção ao sol, cobrindo os olhos com a mão para poder enxergar adiante:

—Não acho que possamos sair de situações desse tipo sem trauma algum.

—Pode parecer impossível, eu sei. Mas realmente existem pessoas que conseguem tal proeza.

Janine Hathaway e Ibrahim Mazur se olharam com a cumplicidade que somente quem já teve que continuar a vida sobre muitos traumas possui.

Naquela mesma tarde, a guardiã se jogou no sofá ao lado de Pavel, que sofria com um jornal turco.

—Foi divertido o passeio?

Ela tinha o olhar focado em lugar algum a sua frente no chão:

—Foi impressionante. Um monte de problemas com o pai do Abe, sabe?

Pavel dobrou o jornal coma testa franzida, o que fez com que ela olhasse para ele tentando entender sua reação.

—O que quer dizer? O Abe é órfão há muitos anos.

—Como assim?

—Você nunca prestou atenção no jeito que ele fala sobre os pais? Tenho certeza de que já morreram há muito tempo. Ou pelos menos há mais de um ano e meio, porque desde que trabalho aqui, ele jamais mencionou qualquer coisa sobre o pai estar vivo. Se não fosse por isso, como teria se tornado o herdeiro da casa e das empresas do pai?

Ela deu de ombros, virando o corpo novamente no sofá vermelho.

—É, tem razão. Deve ter sido um mal entendido.

Ainda com o jornal nas mãos, Pavel lhe deu um amigável tapinha nas costas antes de subir as escadas rumo ao seu quarto.

Janine se deixou ficar sentada, esperando pelo patrão de deveria estar de volta a qualquer instante. Voltara para buscar alguns documentos, mas ainda tinha coisas para resolver fora de casa antes que pudesse dispensá-la totalmente por aquele dia.

Sobre a mesa de centro, Ibrahim tinha deixado o cachecol colorido.

Sem que ninguém percebesse, ela segurou o pedaço de tecido numa das mãos. Com a outra, primeiro correu os dedos levemente pela caxemira, para depois apertá-la com força contra a palma da mão.

Naquela tarde, tinha recebido uma lição sobre confiança da qual não se esqueceria jamais. Apenas não entendia ainda qual seria o propósito dela.

Correu os olhos pela sala de estar da casa, com o aperto no cachecol ainda firme, tendo um suspiro transformado em murmúrio:

—Quem é você, Ibrahim Mazur? E o que quer comigo?