No light, no light

A Guardiã e o Perseguidor na Terra do Sol


—Bom dia, raio de sol!

A voz alegre e melodiosa de Roxie chegou aos seus ouvidos antes mesmo que a forte claridade que vinha da janela atingisse seus olhos.

—Mas o que...? – apertando o travesseiro contra o rosto, Janine Hathaway tentou abafar um muxoxo de desagrado.

—Anda logo! – a amiga gritou enquanto pulava ao seu lado na cama – Vamos sair para passear!

—Do que está falando? – a ruiva perguntou. Desenterrando o rosto das roupas de cama, apoiou-se nos cotovelos para olhar melhor a expressão contente de Roxanne.

—Os Voda e os Badica, além de Alicia Zeklos, vão fazer um tour para conhecer as pirâmides. E adivinha só quem eles serão obrigados a levar junto por medida de segurança?

Janine sorriu. Ela e Roxie podiam reclamar o quanto quisessem de seus patrões, mas no final das contas, eram eles que acabavam lhes bancando todos aqueles passeios maravilhosos.

Naquele mesmo instante, a porta se abriu subitamente e o guardião sério que Jenny conhecera naquela tarde no restaurante escorregou a cabeça para dentro do quarto.

Assustada, a ruiva sentou-se na cama em um pulo, puxando os lençóis para cima num súbito acesso de timidez.

—Ryder. – ele disse com a cara fechada– Eu pedi que viesse chamar a guardiã Hathaway, não que aproveitasse para colocar as fofocas em dia.

Como uma criança, Roxanne fez uma careta e revirou os olhos escuros. Cruzando os braços em frente ao peito, dirigiu-se a passos duros e firmes para a porta:

—Não sei se alguém já lhe ensinou boas maneiras, Hans, mas é falta de respeito entrar no quarto de alguém sem bater primeiro.

—Para fora. Agora. – sua voz não era exatamente má, como Janine esperava que fosse. Seu tom era, na verdade, apenas duro como uma pedra.

—Eu já estava de saída. – Roxie respondeu, agora com um sorriso cínico.

Hans se afastou para lhe dar passagem, e antes de sair, Roxanne deu a Janine um olhar cômico que misturava raiva e desespero.

O guardião ainda voltou a encarar a ruiva sentada na cama, sem alterar a expressão. Era a primeira vez que se dirigia diretamente a ela.

—Você tem quinze minutos para estar na porta do hotel, pronta para sair. – anunciou antes de fechar a porta com força.

Janine revirou os olhos azuis enquanto se punha de pé, murmurando: ‘‘Bom dia para você também. ’’

Observou-se longamente no espelho oval sobre a parede da suíte que ocupava. Suas bochechas estavam mais pálidas que o normal e seus olhos continuavam fechados de sono.

Depois que Ibrahim a deixara em casa na madrugada anterior, encontrou o apartamento silencioso e escuro, à exceção da sala onde Hugo tinha adormecido com Os Três Mosqueteiros sobre o rosto.

Sentada na beirada da cama, passara o que pareceram minutos intermináveis relembrando cada momento das últimas horas. A boate, o resgate da prostituta de sangue, os beijos... Tão simples e tão singelos...

Ficara imóvel na contemplação dos seus sentimentos até o momento em que seu corpo não aguentara mais o próprio peso. Então, mecanicamente, trocara as roupas úmidas da noite anterior por um pijama de verão e deixara-se afundar nos lençóis e travesseiros brancos do hotel.

Deixando para trás todos os problemas que não conseguia resolver e todos os sentimentos que não conseguia entender, não levou nem cinco minutos para pegar no sono.

E enquanto escovava os dentes, pensou que se lhe fosse permitido, dormiria facilmente por outras várias horas.

Mas, com certeza, não poderia afirmar que seu tempo de reflexão fora totalmente inútil. Conseguira pelo menos chegar a uma conclusão sobre a noite anterior: fizera mal em deixar suas inseguranças virem à tona e expusera-se demais a Ibrahim.

Tomara também a resolução de não deixar que isso acontecesse novamente. Se quisesse ser uma guardiã; e mais importante, se quisesse ser livre, não poderia se dar ao luxo de ser fraca.

Levou pouco mais de dez minutos para se aprontar, além de fazer uma maquiagem leve para esconder a palidez advinda da privação de sono.

Na cozinha do apartamento de luxo, encontrou Hugo Badica empoleirado sobre o balcão tomando uma xícara de café.

Ao vê-la, ele arrumou os óculos em cima do nariz e lhe deu um sorriso tímido.

—Bom dia, Janine. Quer um pouco de café?

—Sim, claro. – ela sorriu de volta, apoiando-se também contra o balcão.

Esperou enquanto ele lhe enchia uma xícara para depois a entregar com cuidado.

—Obrigada, Hugo.

—Disponha. – ele respondeu no mesmo tom cordial. Abandonado sua própria bebida sobre a pia, esfregou as mãos uma nas outras ansiosamente. – Janine...

Ele principiou incerto de quais palavras deveria usar. Para encorajar o garoto, Janine fixou seus olhos nele e fez um aceno com a cabeça para mostrar que estava ouvindo.

Enquanto esperava que ele escolhesse como deveria começar o discurso, tomou mais alguns goles de café.

—A Gabriella me contou sobre o problema na boate... E também sobre você e Ibrahim Mazur. Ela disse que vocês voltaram juntos para o apartamento dele para cuidar de uma prostituta de sangue.

Janine permaneceu atônita e sem palavras. Mesmo sabendo que ela não passava de uma simples guardiã a quem a Moroi nada devia e o quanto Gaby era próxima do irmão gêmeo, não conseguia deixar de sentir sua confiança traída.

—Por favor, não fique brava com a Gaby. – ele logo pediu, talvez imaginando o que se passava na cabeça da dampira – Eu ainda estava acordado quando ela e a Ally voltaram ontem à noite, e fiquei preocupado porque você não estava com elas. Juro, eu tive que forçá-la a contar o que tinha acontecido. Ninguém mais sabe sobre isso.

Agora um pouco mais calma, Janine conseguiu deixar sua xícara de café pela metade sobre o balcão e entrelaçar suas mãos para impedi-las de tremer.

Do que tinha tanto medo?

Do julgamento de Hugo? Isso nunca fora um problema antes.

De ele contar seu deslize para os pais? Não, se Hugo planejasse fazer isso com certeza não estariam tendo essa conversa e nem se preparando para um alegre passeio pelas pirâmides.

A verdade é que sentia sua privacidade invadida. Aquela noite fora o momento em que suas piores fraquezas e confusões subitamente afloraram e quando tivera suas emoções mais fortes ao lado de Ibrahim.

E, por mais que tentasse negar, fora o momento em que principiara a perceber que realmente confiava naquele seu estranho perseguidor.

Nada disso deveria ser do conhecimento de Hugo.

Respirou fundo.

—E...? – tentou fazê-lo terminar de falar.

Ele passou as mãos pelo cabelo loiro e bagunçado e sua pele naturalmente pálida pareceu ganhar um pouco de cor.

—Eu... – pigarreou para tentar se impedir de gaguejar – Eu fiquei preocupado com você. Tentei ficar acordado até você chegar, mas acabei pegando no sono no sofá da sala mesmo.

—Eu vi. – ela respondeu calmamente, sem alterar a expressão nem ao menos para dar um sorriso.

Sabia como Hugo era tímido e como admitir que se importava com ela deveria ter exigido coragem da parte dele. Mas naquele momento só conseguia se sentir traída, exposta e com raiva.

Se aquilo era a ideia que ele tinha de uma declaração, não havia conseguido impressioná-la.

Hugo não era idiota, e claramente percebeu que seu esforço fora em vão. Pigarreou mais uma vez antes de continuar, dessa vez tentando espantar o despeito e o constrangimento.

—E, bem, eu conheço Ibrahim Mazur. Ele esteve em diversas reuniões de negócios com meu pai na Corte. Então você deve concordar que sei mais sobre ele do que você. – ele parou para respirar e olhá-la nos olhos, totalmente impassíveis – Por favor, Janine, fique longe dele. Mazur é perigoso, ardiloso e capaz de tudo para conseguir o que quer.

—Isso não me surpreende. – ela fez pouco caso do assunto, balançando os ombros – Todos no mundo dos negócios não são assim, por acaso?

Hugo não esperava tal resposta da parte dela e recuou um pouco o corpo, abrindo mais os olhos claros.

Janine entendeu completamente sua reação. Afinal, por que estava defendendo Ibrahim Mazur?

Nem ela mesma sabia.

—O que foi que ele fez com você para conseguir comprá-la? – o Moroi verbalizou seu espanto.

Tal pergunta conseguiu deixá-la realmente furiosa. Dando-lhe um olhar gelado, respondeu friamente:

—Não sei que ideia você tem de mim, mas não sou o tipo de garota que pode ser comprada.

Janine cuspiu a última palavra como se fosse veneno. Hugo havia acabado de rebaixá-la a uma prostituta de sangue.

Contornando o balcão, despejou o resto do café frio na pia e o encarou com raiva.

—Eu confio em Ibrahim. E não será você quem vai mudar minha mente sobre isso.

Com as palavras soando tão duras quanto às dela, Hugo desceu do balcão e se afastou lentamente para a porta da cozinha.

—Ótimo. Faça o que quiser, Janine.

Com isso, deixou a guardiã sozinha. Apoiada contra a pia e os braços cruzados em frente ao peito, que subia e descia rapidamente por conta da respiração acelerada, Janine permitiu-se dar um pequeno sorriso de triunfo e rebeldia.

Havia acabado de ganhar uma discussão com um dos seus Moroi.

—Ei! Está pronta? – Roxanne apareceu de súbito no vão da porta, arrancando Janine de seus pensamentos de vitória. Prestando mais atenção à amiga, ela emendou – Por que está sorrindo desse jeito?

Janine esfregou as mãos sobre o rosto tentando se controlar e balançou a cabeça.

—Não foi nada. Está na hora? – perguntou tentando mudar rapidamente de assunto.

—Vai estar assim que você der um jeito nesse cabelo. – Roxanne então começou a puxá-la de volta para o quarto, totalmente resoluta.

—O que tem de errado com meu cabelo?

Janine soava confusa quando a amiga a fez sentar-se sobre um banco estofado com veludo verde em frente ao espelho oval.

Gesticulando bastante com as mãos, ela explicou seu ponto de vista.

—Eu sei que é mais recomendado que deixemos nosso cabelo preso durante o trabalho... Mas não precisa ser num coque apertado todo santo dia, Jenny.

Ainda confusa com toda aquela história sobre seu cabelo, Janine franziu as sobrancelhas.

—E o que você pretende fazer então?

Sorrindo, Roxanne soltou todo o cabelo da amiga e com a franja, fez duas tranças finas que juntou atrás da cabeça. Sem soltar as pontas, buscou numa nécessaire sobre a escrivaninha um prendedor com uma linda rosa de pano de roxo como enfeite. Com o resto do cabelo, fez nova trança, que dessa vez prendeu com um elástico lilás simples que ela levava no punho.

—Bem melhor agora, não concorda? – Roxanne perguntou orgulhosa de seu talento como cabeleireira.

—Está lindo, Roxie. Obrigada. – tocando delicadamente a rosa com as pontas dos dedos, a ruiva olhou para amiga pelo espelho.

Janine realmente não sabia qual era a necessidade de ter tanto cuidado com o cabelo numa manhã de trabalho; mas aquele simples ato de embelezamento parecia ter alegrado Roxanne de tal maneira que ela simplesmente sorriu e não teve ânimo para expor seu ceticismo.

—Agora, é melhor irmos logo. – Roxie tratou logo de ganhar o corredor, acompanhada de perto pela ruiva – Antes que Hans venha nos puxar à força.

As duas riram enquanto o elevador descia ao andar térreo. Os dez Moroi estavam dispersos pelo saguão, sendo vigiados o tempo todo pelos três guardiões: Stan, Hans e Mark, o outro colega de Roxanne.

Os casais Voda e Badica estavam conversando animadamente em poltronas coloridas ao redor de uma mesinha de centro coberta de revistas. Michael, o filho mais novo da família Voda, estava sentado no braço da poltrona da tia Priscila, que o mantinha entretido com uma revista cheia de fotos de animais selvagens.

Peter Voda jogava todo o seu charme de garoto de quinze anos recém-desabrochado para a puberdade para cima de Alicia e Gabriella, que o aturavam com toda a paciência e boa vontade que tinham disponíveis.

Hugo continuava emburrado, sentado sozinho a um canto do saguão, com o enorme e colorido chapéu de turista enterrado até as orelhas.

Janine fez uma careta e revirou os olhos discretamente ao passar por ele. Naquele momento, ela não mais o via como um Moroi para quem trabalhava e a quem devia respeito. Agora era como se estivessem de volta à Academia e ele fosse um garoto idiota que a tratara mal.

Mas nem por isso o deixaria de defender durante um ataque Strigoi. De fato, a guardiã não sabia se conseguiria odiar alguém a ponto de negar ajuda. E com certeza ela desejava nunca ser capaz de tal coisa.

Para o bem ou para o mal, a compaixão estava enraizada demais no seu verdadeiro ser. Era o mundo que distorcia suas qualidades naturais com toda sua insensibilidade e insensatez.

A van que os transportaria durante o passeio era também dirigida por outro guardião, um rapaz egípcio usando óculos escuros e com um sorriso encantador.

Roxanne sentou-se ao lado da amiga no último banco do veículo, concentrada em checar com um espelhinho se o batom vermelho continuava intacto.

Distraída e com a cabeça apoiada na janela, Janine simplesmente deixava os olhos passearem pelas cenas do Cairo que se estendiam à sua frente. Todo aquele movimento e todo aquele calor pareciam de alguma forma fazer-lhe bem.

O Cairo era sol, poeira, vozes elevadas, cores vibrantes desgastadas pelo tempo, música ritmada, maciez de linho, simplicidade e mistério. E de alguma forma, era lindo.

Sem perceber, sua mente trouxe até ela a imagem de Ibrahim Mazur. Aquela terra árida, exótica, doce e agitada parecia completá-lo, misturar-se a ele, fundindo dois seres em um só.

E com um sorriso, Janine pensou que como o Cairo, Ibrahim Mazur também era lindo.