No Worries (Fillie)

How did this happen to me?


A rodoviária da cidade estava mais do que caótica e não eram nem oito da manhã. Já tinha desistido de arrastar minha mala atrás de mim com a quantidade de pessoas tropeçando nela e meus ombros agora pagavam o preço pela minha indecisão em não saber quais peças de roupa levar. O cartaz ao lado da fila estampava aqueles olhos escuros e as muitas sardinhas que eu conhecia desde quando ele ainda era um garotinho pequeno e desengonçado que morria de vergonha de apresentar os trabalhos na frente da turma. Cocei o nariz e dei um passo à frente, a fila era lenta. A impressão que eu tinha era que os olhos de Finn Wolfhard iam me acompanhando devagar, um julgamento silencioso daquela decisão estúpida.

Depois de uns três dias jogada no sofá de casa basicamente na mesma posição com a TV ligada sem realmente estar assistindo alguma coisa, resolvi parar de comer a comida que meus apps de desconto sugeriam e dar um jeito na vida. Me demiti do estágio, acho que isso ainda não falei. Cansei de ficar sentada o dia todo atrás de uma mesa no nicho mais abafado do escritório, tendo que aguentar as piadas machistas e homofóbicas de Chuck Bracken o dia todo. Todos os clientes homens para ele eram boiolas e ele adorava bater no peito e dizer que se considerava muito, muito homem e que jamais deixaria qualquer mulher mandar nele. Excesso de auto afirmação somado a um senso crítico muito preconceituoso. Sério, quem precisa disso?

Dois passos depois e eu ainda tinha a sensação de Finn continuar me observando, embora agora não conseguisse mais vê-lo em minha visão periférica.

‘Ele tem o sorriso mais bonito que eu já vi’, ouvi uma garota comentar em algum lugar atrás de mim. Reparei na foto de novo. Ele nem sequer estava sorrindo.

Minha vez no guichê chegou e encarei a atendente que tinha um crachá desbotado bem onde deveria estar o seu nome. Comprei a passagem e a agradeci pelos mais de 250km nos quais eu passaria sentada no ônibus. Aproximadamente 6 horas de viagem, contando as paradas. Conferi o relógio no celular, cerca de 30 minutos até finalmente me ver sentada na poltrona de número 9 indo ao encontro da atitude mais desesperada dos meus últimos anos, pra não dizer da minha vida.

Acho que essa foi a primeira vez que o vi.

Nas doces lembranças da infância, onde tudo parece colorido e borrado como em um efeito blur, me lembro de estar sentada em minha carteira escrevendo ou copiando alguma coisa do quadro em uma caligrafia grande e imprecisa quando Finn Wolfhard entrou na sala carregando uma mochila quase do seu tamanho. A professora deve ter dito alguma coisa sobre ele ter mudado ou de sala ou de escola e, então o coro de vozinhas o cumprimentado o fez ficar levemente vermelho. O lugar atrás de mim estava vago, terceiro lugar onde Lizzie Jones se sentava até aquele fatídico dia em que, por algum motivo desconhecido por mim, ela não havia ido à aula.

Por cima do ombro, percebi que ele estreitava os olhos em direção ao quadro, a ponta da língua no canto esquerdo da boca, o claro esforço em entender e acompanhar o que aquele monte de coisas queriam dizer… Peguei meu caderno e num giro de 90 graus que me renderia uma advertência verbal, embora naquela época eu não conhecesse esse termo, o empurrei na mesa do meu novo colega de sala. E com sorrisos nos rostos, ali foi selado o início da nossa amizade.

Acordei com o fone saindo do ouvido e o sol batendo no rosto. Tinha pouco mais de meia hora que o ônibus havia saído da cidade, as curvas me embalaram imediatamente quase como uma canção de ninar, mas o mesmo não podia ser dito pela mãe do bebê que chorava em algum lugar lá no fundo do veículo. Puxei a precária cortina cinzenta presa na janela buscando meus óculos de sol que percebi com tristeza ter deixado na mala que não estava ali comigo, mas lá embaixo no bagageiro. Me ajeitei um pouco na poltrona aproveitando o fato de não ter ninguém ao meu lado. O ônibus não estava cheio mas ele pararia pelo menos mais duas vezes pelo que eu podia supor de acordo com o trajeto e talvez essa minha sorte não durasse até o fim da viagem.

Era um gesto automático, o que eu mais tinha repetido nos últimos três dias. Lá estava eu abrindo o Instagram e indo conferir os stories de Finn Wolfhard. A ordem era sempre a mesma: se nele não houvesse nada, eu passava para o da banda. Se lá não houvesse nada, eu procurava o de cada integrante. Sempre havia uma coisa ou outra e dessa vez não era diferente. O sol que batia em meu rosto por terra era o mesmo que entrava pela janela do avião. O sorriso enorme do cara que tocava bateria mudou rapidamente para um Finn que dormia de boca aberta com uma touca cinza que tampava a outra metade do rosto. Uma sensação esquisita no meu estômago, uma coisa quente e fria ao mesmo tempo, me fez mudar de posição na poltrona. O vídeo acabava ali, focava na boca aberta de Finn e algumas risadas ao fundo. Nos meus fones, a voz dele começou uma música e meia depois, mais grossa e ao mesmo tempo aveludada, traços marcantes que mostravam que ele não era mais o mesmo garotinho que tinha dançado todos os bailes do colégio comigo.

Fiquei mais de um mês enchendo o saco dos meus pais pra me darem aquele vestido vermelho. Lembro de tê-lo visto na loja quando fomos passear no shopping depois de assistirmos um filme de ação que eu não queria ter ido e o vestido estava lá, cuidadosamente colocado na vitrine ao lado de um modelo muito parecido, mas que vestiria muito bem alguém da idade e do tamanho de minha mãe.

Eu me sentia uma princesa nele, era a verdade. Dei tantas voltas na frente do espelho que até fiquei tonta. Esperneei e fiz a maior birra do mundo quando minha mãe disse algo muito parecido com ‘na volta a gente compra’ porque eu já conseguia me imaginar comandando meu reino ao lado de um príncipe digno de conto de fadas quando ela simplesmente me fez sair dos meus devaneios infantis me puxando pra fora da loja.

Finn estava sentado ao lado de seus pais na mesa no fundo do salão, suas feições quadradas de quem me esperava há um tempão, o cabelo meio bagunçado que indicava que antes de se sentar ali, talvez obrigado por sua mãe, ele certamente estava correndo de um lado para o outro com os outros garotos. Ele estava muito bem arrumado, mas naquela época aos meus olhos ele parecia um garçom, a gravata borboleta torta que sua mãe fez o favor de arrumar quando ele se levantou impaciente pra me encontrar.

‘Você está tão bonita que nem parece você’, ele brincou quando nos afastamos para procurar nosso lugar na fila e lembro de ter dado um beliscão nele por isso.

A foto daquele dia ainda estava no meu mural, acho que uma das únicas que permaneceu mesmo depois de tanto tempo. Lembrar daquele dia me doeu de um jeito esquisito agora que eu estava no ônibus. Por mais ridículo que aquilo pudesse parecer, senti aquela ardência nos olhos. Conferi o celular. Em 15 minutos faríamos a primeira parada.

‘Memory Lane

We're here again

Back to the days

When I'll remember you always

So much has changed

Now it feels like yesterday I went away’

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.