Os suspiros assustados de Pacífica corriam pela Mansão Northwest.

Geralmente, quando chegava em casa após um dia inteiro no colégio, passava direto pelo hall, passava direto pela sala de estar, passava direto pela copa onde seus pais almoçavam em lazer à varanda, voava escadaria acima e se trancava diretamente dentro do seu quarto. Às vezes saía novamente só tarde da noite. Às vezes, só aparecia na manhã seguinte para um café da manhã apressado e um aceno de mão à família, e ia direto ao chofer que a dirigia ao Colégio Municipal de Gravity Falls, cumprimentando-o com aquele sorriso de bom dia ensaiado e repetido de todo santo dia.

Mas, naquela tarde de novembro – dia primeiro, logo após o Halloween –, ela chegara da escola, passara direto pelo hall, passara direto pela sala de estar, mas parou quando chegou na copa. Tinha escutado um nome que fez os seus pés quase derraparem no carpete.

“[...] Mabel Pines”.

A voz tinha vindo da televisão ligada.

Pacífica parou tão rápido que os seus pais tiveram que parar para observar o acontecimento histórico. Ela girou o rosto na direção da tela. Passava o noticiário nacional. A imagem aérea mostrava uma bolha densa de fumaça cobrindo um prédio em chamas. Caminhões de bombeiro perfilavam todos os meios-fios, suas milhares de mangueiras se espalhavam trançadas pelo gramado e, de cima, pareciam um ninho de cobras brancas e grossas. Pessoas corriam, e, mesmo com o jornalista falando por cima do áudio, havia gritaria. Muita gritaria. Um desespero pétreo, que Pacífica sentiu formigar na sua pele.

— Querida — a mãe chamou. Ela tinha ajeitado a sua postura – recruzado as pernas e sustentado um pires e xícara sobre o joelho, coberto por um vestido delicado de seda rosa. Deu um sorriso largo e manhoso para filha. Um sorriso que Pacífica nunca veria, já que seus olhos estavam parafusados na tv. — Você vem pro nosso jantar hoje?

Pacífica não respondeu.

Na tv, o âncora continuava: — Não houve mais pessoas desaparecidas relatadas até o momento.

Pacífica atirou o olhar para a manchete no rodapé da tela: INCÊNDIO ESCOLAR EM PIEDMONT, CALIFÓRNIA. PERITOS SUSPEITAM DE ATO CRIMINOSO.

— Esses Pines desaparecidos de que eles mencionaram, eles têm grau de parentesco com o Stanley Pines que tinha a Cabana do Mistério lá no final da cidade? — o pai perguntou, alisando o final do bigode com o indicador e dedão e levantando a cabeça de um tablet que estava no seu colo, também fisgado pela notícia e pela atenção incomum da filha.

Pacífica girou a cabeça para o pai e a mãe, sua boca fazia um “o” perfeito. — Tem mais de um Pines desaparecido?

A mãe lembrou-se de que tinha que beber do chá. Após descer a xícara dos lábios, seu sorriso se abriu mais ainda para a filha.

— Você conhecia algum deles?

— Quem? — Pacífica perguntou, segurando um gaguejo. O osso do seu maxilar tremia.

— Os Pines desaparecidos — disse a mãe, a voz mais açucarada do que um milkshake barato de uma loja de conveniências.

Tsc! — reclamou Pacífica, descansando uma mão na cintura. — Quais dos Pines! Quais foram os nomes?

A mãe colocou um dedo sobre o lábio inferior, a boca fazendo biquinho no que ela parecia entrar num pensamento profundo. — Acho que Mason...

— Mason, Mabel e Stanford — o pai respondeu na frente, a voz orgulhosa o dobro de altura do que as das outras mulheres da casa. — Também foi encontrado restos humanos carbonizados no local. A suspeita é que o corpo seja de um professor desaparecido da escola.

Um grito de susto ficou enlatado na garganta de Pacífica. Seus olhos estavam arregalados sobre o pai e a mãe. O trio permaneceu naquele silêncio perplexo até a tv ganhar a atenção de todos novamente:

Alguns alunos que estiveram presentes durante o incidente, deram depoimentos que desafiam ainda mais a investigação.

Em seguida, foram exibidos três trechos de pequenas entrevistas que pareciam terem sido feitas na manhã seguinte ao ocorrido.

O primeiro era de um adolescente alto com um casaco roxo e amarelo do time de Piedmont: “Tinha esse outro menino na confusão que eu nunca tinha visto antes. Acho que ele nem é desse colégio. Ele andava no meio do fogo e nenhuma chama pegava nele!”

“Tinha gnomos e árvores que andavam!” O segundo era um garoto mais novo com uma camiseta hippie tingida em tie-dye numa espiral psicodélica: “Eu juro que eu vi Dipper Pines voando, bicho! O cara tava putaço, flutuando em volta de uma energia azul!”

Dipper e suas esquisitices...”, pensou Pacífica.

A terceira entrevista foi com uma garota morena, de cabelo curto, na altura dos ombros, usando uma jaqueta de couro. O seu card de nome havia escrito: Sara Beatrice. “O menino de outra escola que estava nessa festa era meu amigo. O nome dele é Wirt”, afirmava ela, aflita, levantando uma fotografia do menino aberta no seu celular na altura da câmera. “Ele também está desaparecido. Ele e Mason Pines namoravam!”

Pacífica finalmente conseguiu suspirar. A sensação que teve foi de que ficara segurando a respiração por uma hora inteira. “O que está acontecendo? Ford e Stan foram para Gravity Falls para evitar que Bill Cipher voltasse. Algo deu errado?! Dipper, o que você foi fazer agora?”

— Querida, você está bem? — a mãe perguntou, a voz mais baixa, mais trêmula, verdadeiramente preocupada. — Pacífica, você está pálida!

— Estou ótima! — Começou a se retirar do aposento a longas passadas, religando o piloto automático até seu quarto.

— Apareça no jantar de hoje! — relembrou a mãe assim que a filha já estava na esquina do corredor, a voz na sua melhor tentativa de soar autoritária.

Uma pena a cabeça de Pacífica estar ocupada demais para ter escutado.

“Mabel sumiu”, repetia nos seus pensamentos, como se tentasse fazer sentido de uma palavra estrangeira na qual ela se esforçava para lembrar a tradução.

Seus passos foram diminuindo de velocidade assim que chegou à metade da escada.

“Ela está desaparecida.”

Então, parou completamente o trajeto.

Ficou ali, de pé, inerte, com a mão segurando com força no corrimão de marfim.

Após bons e longos segundos de pensamento, Pacífica retirou o celular do bolso de trás do jeans e o destravou. O nome “Mabel” brilhava na tela, fixado no topo da lista de contatos. Pacífica estava a um clique de distância de ligar, porém abaixou a mão, voltando com o aparelho para o bolso. Se fosse tão fácil assim, a família dela já teria a encontrado. Largou a bolsa de ombro no meio da escada, deu meia volta e correu de volta para o térreo.

Dessa vez, passou pela cozinha, sempre era desabitada à tarde, surrupiou do porta-chaves a chave do carro da mãe e fugiu desapercebida pela porta dos fundos.

*

O automóvel da sua mãe era o menos usado da casa. Um Aston Martin 1964 prata, uma herança de família que raramente era pilotada pelo medo de “danificar o valor histórico da máquina”. Os Northwests apenas o tiravam da garagem durante o 4 de Julho, para que pudessem se mostrar no desfile municipal do Dia da Independência. Pelo restante do ano, ficava guardado num casebre a um quilômetro de distância da mansão, também propriedade do seu pai.

Saber deste trunfo fazia do carro a arma do crime perfeita para Pacífica. Ninguém nunca dava falta da chave, ou ia caminhar até o casebre todos os dias para checar o automóvel. O velho Aston Martin era o cúmplice mais fiel das suas escapadas, estava sempre à disposição quando Pacífica precisava sair para um encontro (sem ter que contar para os pais e evitando perguntas e proibições), ou quando queria simplesmente explorar a cidade sem ter que ser constantemente carregada e supervisionada pelo chofer pra lá e pra cá.

Pacífica agora já tinha atravessado boa parte da cidade com ele. Seu cúmplice estava estacionado a alguns passos de distância dela, com uma das rodas em cima do meio-fio, inclinado um pouco fora da linha divisória do estacionamento. Tinha parado em frente ao Greasy’s, restaurante da Susan Wentworth, e se enfiado na cabine telefônica – tão antiga que deveria estar naquela esquina desde quando a rua fora fundada, mas miraculosamente ainda funcionando.

A mão que nãos segurava o telefone ocupava-se com um cigarro aceso. Ela girava o fumo entre os dedos anelar e indicador, enfeitando o interior da cabine de fumaça e aroma de tabaco pouco a pouco, esperando. Seu pé batia incessante no asfalto enquanto a linha chamava no seu ouvido. Tuuu... Tuuu... Tuuu...

“Anda. Atende!”

Tú, tú, tú!, caía a linha.

— Droga.

Pôs e retirou o telefone do gancho de novo, inserindo mais dois centavos na lateral do painel e girando a manivela. Digitou de novo o mesmo número, puxando-o da cola que tinha aberta no seu celular. Não havia sido difícil encontrar o telefone da casa dos Pines na Califórnia. Mabel tinha postado uma foto no Instagram na qual tinha a localização ativada. A foto parecia ter sido tirada na varanda da sua casa. Foi questão de Pacífica abrir o Google Maps, pegar o número da casa que mais se parecia com a que estava na foto e jogar o endereço no catálogo virtual que tinha no site da cidade. E lá estava o telefone residencial.

Não poderia arriscar fazer aquela ligação do seu celular. Temia que aquela situação pudesse ser tão séria quanto da vez em que agentes governamentais vieram até Gravity Falls em 2012 para investigar os Pines. Com três membros da família Pines desaparecidos num incêndio misterioso, os números celulares de Dipper e Mabel, assim como o residencial, já deviam estar sendo monitorados pela polícia àquela altura. Se este fosse o caso, Pacífica não queria ter que se envolver e comprometer seu anonimato (por mais que essa fosse sua vontade). Os Northwests já haviam se envolvido em escândalos demais. Se a polícia descobrisse que a filha de Preston Northwest houvesse ligado para o número de algum Pines naquele momento, seria questão de meia hora até um mutirão de detetives do FBI aparecer batendo na sua porta.

— Alô? — Uma voz feminina finalmente atendeu da outra lina.

Pacífica sufocou um grito. Havia sido tão inesperado que ela acabou sendo pega desprevenida, ficando suspensa pelo silêncio por um segundo a mais.

— Alô?! — A voz madura da mulher do outro lado pressionou, já impaciente.

— A-Alô? Residência dos Pines? — disse Pacífica.

— Sim? — a mulher atendeu, rouca como de quem não dormia há dias.

“Deve ser a mãe da Mabel,” assumiu Pacífica.

— Senhora Pines, falo do Oregon, sou uma funcionária da Cabana do Mistério e, como o Seu Pines está fora da cidade, preciso tirar algumas dúvidas com ele. É em relação à administração do estabelecimento.

A mãe não deu nem um “um momento” ou “vou chamá-lo” de volta, mas Pacífica sabia que ela fora buscar o anfitrião assim que ouviu os passos da mulher pela casa do outro lado, e ela perguntar “Cadê o Stan?” para uma terceira pessoa.

— Pra você — falou a mulher. Teve o som do telefone sendo pego por outra pessoa. — Uma funcionária da Cabana. — Também se ouviu um fechar de portas e o silêncio de um lugar isolado.

— Okay, ela já foi. Agora quem é você e por que está fingindo ser uma funcionária minha? Sabe que eu já não contrato mais ninguém desde que literalmente fechei a Cabana do Mistério anos atrás — disse Stanley ao fone.

— Que merda está acontecendo agora, Stanley? — Pacífica chiou ao bocal.

Stan fez um silêncio de quem estava tentando reconhecer um som.

Metidinha? — perguntou Stan com o seu tom descarado. — É você?!

— Sim, sou eu. Acho que o motivo de eu estar ligando deveria ser óbvio até mesmo pra você.

— Tá falando do sumiço do trio do barulho? Suspeitei que alguém daí acabasse vendo o noticiário mais cedo ou mais tarde.

Pacífica suspirou, frustrada e subitamente fraca.

— Por favor, Stan, só me diz que isso ainda faz parte do plano. Que Dipper teve alguma das suas ideias de jerico e decidiu forjar um incêndio com Ford para despistar Bill Cipher ou algo assim. — Pacífica não tinha consciência do que fazia, mas cruzava os dedos com força.

Stan também respirou forte, não aguentando mais ter que manter aquela postura descontraída por muito tempo.

— Garota, eu queria muito que também fosse um caso desses. Se isso tudo for um plano, aqueles dois não me incluíram nele. A última vez que vi Stanford, ele falou que ia só recolher a fita métrica do tempo na escola de Dipper e voltaria assim que pudesse.

Pacífica teve um aperto frio no estômago.

Aff... — Massageou a testa para expulsar as rugas dali imediatamente. — Você não acha que Bill Cipher... — era difícil falar — fez alguma coisa com eles?

— Eu daria todo o meu seguro-desemprego para alguém se significasse impedir esta possibilidade. Na real, não faço ideia do que pode ter acontecido com aqueles três.

— Alguma pista de onde eles poderiam estar?

— Nenhuma, filha. Tudo que eu sei era que Ford esteve desesperado com a correria dessa semana. Dois dias atrás ele me falou que desconfiava que a data limite para que Bill Cipher regenerasse totalmente seria ontem.

— Ontem no dia da festa?

— Sei o que parece. Que Cipher possa ter lavado eles. Mas eu não pularia para conclusões assim. Ford também estava desconfiando da certeza de ser mesmo Bill Cipher voltando desta vez.

— O que mais poderia ser senão isso?

— Ué, aquele triângulo conspiratório não vivia com aquele papo de escravização mundial? Até onde eu estou vendo, o mundo ainda está intacto, não está?

— Devidamente. Não é do feitio de Bill Cipher descontar a raiva dele só em quatro pessoas.

— Falando do aluno desaparecido? O “Wirt”.

— Alguma informação importante que poderia ajudar no caso?

— Não era namorado do Dipper?

— Foi o que eu também ouvi.

— Sei lá, também dei as minhas investigadas e, pelo que parece, o garoto era bem normal pra todo mundo que o conhecia. Ele e Dipper namoravam. Pode ter só sido o azar dele estar no lugar errado, na hora errada e com a companhia errada.

— Uhum. — Pacífica se interrompeu para poder dar um novo trago do cigarro.

Coçou o queixo com a ponta da unha cuidadosamente pintada de roxo, entrando em profunda introspecção.

— Ford deixou algumas coisas para trás, sabe? — continuou Stanley. — Ee nunca sairia numa viagem longa sem levar com ele. Livros, blocos de nota, até o computador dele está aqui.

— A polícia não levou ainda?

— Vão levar hoje.

— Será que vão conseguir descobrir algo relevante?

— Eu duvido muito. Na Terra eu acho que só o Einstein conseguiria entender a língua do meu irmão, e olha que Einstein nem tá vivo mais!

Pacífica refletiu. Achou que aquilo, a ligação, iria deixá-la mais calma. Mas o tempo passava e a expectativa de consolo só conseguia se afastar da realidade.

— ... Einstein morreu mesmo, não morreu? — perguntou Stanley, inseguro ao notar o silêncio da outra.

— Estou preocupada.

— Também estou, garota.

— Assim que a polícia terminar de analisar os equipamentos de Ford, me ligue!

— Já tá anotado.

— Agradecida.

Stanley ficou em silêncio. Pacífica estava prestes a meter o telefone de volta no gancho quando ele chamou a sua atenção mais uma vez, como se prevendo o ato:

— Pacífica.

— Sim? — Aninhou o telefone de volta à orelha.

— Ela está bem.

Pacífica fechou os olhos bem fechados. Inclinou a cabeça até descansá-la contra a vidraça da cabine. Sobre a calçada, a neve suave fazia pontinhos de branco no cinza e no preto.

— Ela não sumiria assim sem me avisar antes, Stanley.

— Tenho certeza que não.

Pacífica tragou forte e prendeu a fumaça bem lá no fundo da sua caixa torácica.

— Obrigada.

Stan não respondeu, mas ela sabia que ele também agradecia ao seu modo.

— Acho que, pro nosso nível, isso é algo que está muito fora do nosso alcance, não é? — disse ele, deprimido mas terrivelmente honesto.

— Era o que eu temia. Acho que não há nada que podemos fazer a não ser esperar.

Houve mais uma hesitação entre os dois, quase constrangedora.

Stanley suspirou finalmente. — Se cuida, garota.

— O mesmo, Stan. — Pacífica assentiu e desligou em seguida.

Ela apagou a bituca no suporte do telefone e saiu da cabine. Uma camada densa de ar lhe recepcionou de volta com um abraço gelado. Pacífica puxou as mangas do seu cardigã para cobrir melhor os braços, e ajustou o xale emplumado sobre seus ombros antes de voltar para dentro do carro. Olhando pelo retrovisor, levou seus bons cinco minutos para checar o delineador, o rímel, onde o suor tinha danificado o pó, e retocou a maquiagem. Também voltou a afofar as mechas loiras que desciam sobre seu busto e dar mais dois tapinhas de gloss sobre os lábios. A ansiedade estava deixando sua boca mais seca do que o normal aquele dia. Não podia parecer abalada assim quando visse os pais novamente. Lembrando dos pais, Pacífica abriu o porta luvas e pescou sua cartela de balas de menta. Levou três balas à boca. “Deve dar conta do cheiro de cigarro”. Então, finalmente, deu partida e voltou a correr na rodovia.

“Isso tem a ver com as pesquisas do irmão gêmeo de Stan”, refletiu Pacífica enquanto dirigia, ainda com dificuldade de tirar a preocupação da cabeça.

Estava numa parte intensamente arborizada de Gravity Falls. Os pinheiros torreavam de ambos os lados da estrada, que não passava mais nenhum motorista a não ser ela. Conduzia o Aston Martin a 30km/h. Sem pressa. Penetrava o bosque denso com apreensão.

Pacífica nunca gostara da visão do Oregon durante o inverno. Os pinheiros pelados eram depressivos. E tudo só piorava com as circunstâncias nas quais a cidade tinha passado recentemente. Como a cidade havia mudado depois da fuga e rebelião dos monstros. A quebra da barreira protetora que cobria a cidade.

Em certas partes, ainda havia árvores derrubadas aos lados das estradas, o asfalto danificado e rompido em crateras, postes de luz estourados que ainda deixavam certos quarteirões sem eletricidade de tempos em tempo, marcando a cidade com pontos nervosos de escuridão às noites mais escuras da estação. As pessoas também passaram a sair menos. Mesmo que todos os monstros de Gravity Falls já tivessem partido e fugido do estado, o medo que a revolta deles instalara ainda persistia.

E, de alguma forma, Pacífica sempre soubera que aquilo tinha a ver com Dipper. E sua tese só havia se confirmado nos últimos dias, quando ela acordara de manhã cedo com memórias de coisas nas quais nunca tinha acontecido com ela antes. Na verdade, memórias de outra vida. Outra linha temporal. Eram amigos próximos, mesmo com Dipper sempre parecendo esconder alguma coisa, uma parte dele que fazia de tudo para não expor nem mesmo para a sua família.

Pacífica e Dipper eram muito parecidos nesse quesito.

E Pacífica também sempre trabalhara duro demais para manter diversos segredos da sua família e amigos. Não iria botar tudo a perder agora. Era como Stanley havia dito: aquela confusão parecia estar muito além da capacidade dela. Provavelmente era uma daquelas confusões sobrenaturais em que Dipper e Mabel sempre estavam se metendo. Confusões essas que ela nunca procurara se envolver. Isso iria “contra a virtude dos Northwests”. “Deixe o problema dos outros com os outros, Pacífica”, a voz do pai ainda lhe dava broncas no seu subconsciente.

“Esqueça isso, Pacífica”, dizia a si, respirando fundo, as mãos se apertando em volta do volante. “Você vai voltar pra casa, jantar com os seus pais, terminar o dever de casa e ir pra cama. Amanhã é um novo dia. Mais um dia...”

Incomodada com aquela linha de pensamento, Pacífica ligou o rádio. A música Sex & Candy de UNIONS encheu o interior do veículo de paz.

De bobeira no centro da cidade

E tive tanto tempo para sentar e pensar sobre mim mesmo

E então, lá estava ela

Como uma torta de cereja dupla, sim, lá estava ela

Maravilhosa!

O peito dela se comprimiu, mas não era dor, era algo a mais. Uma sede que seus sentimentos tinham de vez em quando, a saudade de uma pessoa. Ela.

A música fluía ao redor dela, envolvendo o seu corpo e seu coração numa memória. O carro, aquela música, o sabor de menta e fumaça, os cachos coloridos e suéteres despojados...

~ ~ ~

TRÊS MESES ATRÁS.

Os carvalhos estavam por toda parte. Ainda era verão, mas as árvores já se mostravam prontas para frutificar. O sol majestoso Californiano ziguezagueava em meio aos galhos altos e lançava à grama fragmentos de luz.

Com as costas deitadas sobre um longo tecido xadrez vermelho e branco, Pacífica podia ter uma visão de tudo ao sua volta. O céu, azul e limpo; as lâminas de grama se dobrando sob seu peso e pinicando de leve a sua pele; o capô do Aston Martin despontando detrás de um arbusto, estacionado discretamente na encosta do bosque; o aroma fresco de morangos que estavam dispostos na travessa a um braço de distância. Mesmo sob a camada cinzenta dos óculos escuros que usava, Pacífica se impressionava em como tudo tinha cor, vida e personalidade. Se impressionava com o quanto a natureza podia se alterar, quase como se tivesse vontade própria e passasse por fases, mudando sua aparência ao seu bel-prazer. O dia seguinte poderia ter mais folhas, menos folhas, mais ou menos verde, brisas ou vendavais.

Sempre admirara isso ainda que em silêncio. Às vezes se via completamente tomada por aquela força descomunal que o ecossistema tinha, e em como tudo e todos eram sempre afetados pelas mudanças que o mundo simplesmente decidia realizar.

A outra coisa que sempre admirara em silêncio era Mabel. Que estava ali, com ela, ao seu lado. Sentada com as pernas cruzadas sobre a toalha do piquenique; os olhos seguindo o movimento lento de vaivém que o vento fazia com os dentes-de-leão. Raios de sol drapejavam sobre suas mechas, tingidas de todo tipo de cor.

Pacífica lutou contra a preguiça e esticou o braço até que seus dedos encontrassem as pontas do cabelo de Mabel. Enrolou um cacho ao redor do indicador.

— Já te contei o quanto eu amei a decisão que você teve com seu cabelo?

Mabel levou uma mão para afastar uma mecha da frente do rosto e virou para Pacífica, brincadeira impressa no olhar. Música cavalgava no ar, vindo do celular dela. Sex & Candy de UNIONS:

De bobeira no centro da cidade

E bebi tanta cafeína e estava pensando sobre mim mesma

E então, lá estava ela

Com sapatos plataforma de suede, sim, lá ela estava ela

Como um delicioso coquetel

— Só o tanto de vezes que você já me falou que queria fazer igual — respondeu Mabel, com um sorriso suave se espichando pelo seu rosto.

— Não sei se ficaria legal pra minha aparência. — Pacífica tocou o próprio cabelo louro, alisando-o.

— Sei. — Mabel soprou uma mecha laranja da frente do seu olho. — A aparência da sua família que você quis dizer.

— Eu só acho que já estou boa no estilo que sou.

Pacífica ajustou os óculos rosas sobre o nariz.

— Você me entende? — perguntou à Mabel.

Mabel suspirou, abanou a mão no vestido e pétalas brancas e finas de margaridas se espalharam no ar. E então ela tirou uma tiara de flores de entre as pernas, levantou-a bem no alto, inspecionando o próprio serviço, e se reclinou sobre o gramado, ficando bem ao lado de Pacífica.

Apoiada nos cotovelos, Mabel colocou a tiara de margaridas sobre a franja da outra, as duas estavam agora face a face. — E eu acho que você não valoriza o bastante o potencial que você tem. — Mabel lambeu os próprios lábios, ainda açucarados com os morangos que haviam comido. Seus dedos dedilharam o queixo de Pacífica de leve.

— Você não fala sério — disse Pacífica.

— Será que não? — Mabel provocou colocando um dedo sobre o lábio inferior.

— Está dizendo que eu não sou honesta comigo mesma?

— Bem, não sou eu que estou mentindo para meus pais de que fui para um acampamento de verão quando na verdade fui encontrar com a minha namorada secreta em outro estado.

Pacífica não conseguiu segurar o riso. Mabel arregalou os olhos.

— Honestidade demais? — perguntou a de cabelo colorido.

— Sim. Mas não ache que isso seja uma coisa ruim, não pra mim. Honestidade é tudo de que eu sinto falta na minha vida. Obrigada.

— De nada?

Pacífica entrelaçou os dedos com os de Mabel. — Promete que vai continuar sendo sincera comigo assim?

— Hm, só se você conseguir ser o mesmo comigo.

Pacífica suspirou cansada e afastou o olhar por um breve instante.

— Você sabe como os meus pais são. Eles iriam surtar caso soubessem de nós. Ainda é muito cedo, Mab’. Um dia saberão, todos irão saber. Eu prometo.

— Eu também não deveria estar te julgando. — Mabel rolou para o lado, virando a barriga pra cima. As duas ficaram estiradas no gramado, as nuvens deslizando com calma pelo céu acima delas. — Eu também não venho sendo a pessoa mais honesta do mundo com os outros.

— Ainda não conseguiu contar pro seu irmão sobre nós?

Mabel sacudiu a cabeça em “não” e deu um suspiro decepcionado.

— Fala sério, o Dipper é super de boa — Pacífica defendeu. — Você sabe que o seu irmão é gay. Inclusive ele já se assumiu pra família antes de você e todo mundo apoiou! Literalmente todo mundo iria te aceitar, Mab’.

— Não... não é sobre isso — Mabel sussurrou, como se envergonhada por dizer.

— Sobre o que é então?

Mabel pausou. Pacífica sabia que ela estava organizando os pensamentos antes de falar, e sabia que para alguém extrovertida como Mabel uma tarefa assim era difícil.

— A verdade é que eu me sinto ainda meio criança perto do Dipper.

— Como assim?

— Faz meses, anos inclusive, que o Dipper parece não se abrir mais tão bem comigo. Quando éramos mais novos, eu sentia que sabia absolutamente tudo sobre ele. Mas hoje a banda toca diferente. Sempre sinto que ele está privando alguma coisa de mim, acho que ele não me acha madura o suficiente o quanto ele é.

— Mabel, você sabe que o Dipper não é assim, né?

— Hum. Qual mais seria a explicação?

— Mabel, alguma vez o Dipper já foi metido com alguma pessoa? Porque eu sou metida, e muito. Olha que reconheço isso. E o Dipper nunca me aparentou ser do tipo prepotente ou orgulhoso. Eu o conheço também.

— Então o que tem de errado comigo que ele não se abre? Ele está triste. Sou irmã dele, sei quanto ele está.

— Mabel. — Pacífica ficou sentada de repente, com a voz séria. — Já falei que não há nada de errado com você. Tem que parar de se rebaixar desse jeito.

— ... — Mabel tragou o ar com força.

— Acho que vocês deveriam conversar. Se o Dipper não está te contando nada então o motivo é simples: Ele não quer te preocupar. Ele te ama demais, Mabel. Te preocupar seria como te machucar, entende?

— Eu não sei do que ele estaria preocupado. Ele tem um namorado secreto no qual ele nunca me apresenta.

— Ah, então é sobre isso — Pacífica deu um sorriso companheiro a Mabel. — Você não conta pra ele sobre nós de birra. Porque ele também não fala da vida amorosa dele com você.

Mabel suspirou e deu de ombros. — Pois é.

— Ah, Mabel... — Pacífica passou a palma da mão pela cintura de Mabel, suas pupilas azuis se dilatado. Uma mecha loira escorreu para fora do seu ombro e caiu sobre o braço de Mabel. Ela pegou o cacho de Pacífica e girou-o pelo indicador.

— Só me promete que vamos tentar criar coragem e se abrir com a nossa família logo? — Mabel fez biquinho.

— Prometo — disse Pacífica. E Mabel selou o pedido com um selinho na ponta do nariz de Northwest.

Mas um mês se passaria, e Pacífica não teria cumprido a promessa. Dois meses se passariam, e Pacífica teria desistido de criar coragem para contar para os pais. E no terceiro mês ali estaria ela, de volta à rotina. Prestes a abrir mão de novo. Em ter que abandonar aquilo e voltar para sua vidinha de etiqueta. De “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite” e “agradecida”. De risinhos com timbres já decorados. De chá e bolacha. De quarto, escola, sala e quarto outra vez.

O término da música retirou Pacífica do seu delírio. Ela afundou o pé no freio e o carro travou com um impacto descomunal! A borracha dos pneus cantou no asfalto e todo o automóvel se empinou no meio da estrada. Ela estava de volta à paisagem apinhada do Oregon. O calor da memória fora substituído pelo frio da realidade. E Pacífica sufocou-se com a dor e o pânico, como se estivesse tendo um choque térmico.

— Não — disse assim que a lataria parou de chacoalhá-la.

Pacífica esticou o braço para debaixo do banco e trocou de marcha. Girando o volante com rapidez de que um pirata gira o leme para desviar de uma tempestade, o Aston Martin 1964 fez meia-volta na pista.

Passou a acelerar à toda velocidade na direção oposta. Não podia deixar as coisas terminarem assim. De novo, não.

Pacífica manobrou o carro e entrou num atalho na trajetória, um caminho de terra escondido dos moradores. Toda a lataria vibrou quando as rodas passaram por cima da trilha desregular de seixos e cascalhos. No seu rádio agora tocava uma nova música: Step Out, de José González.

Ohh!

Coração em chamas, deixe tudo para trás

Saia, é hora de sair

Ohh!

Sombrio como a noite, deixe que o raio te guiar

Não deveria dirigir assim, ainda mais durante o inverno, quando as estradas ficavam mais deslizantes. Mas Pacífica não dava a mínima. Tinha algo mais importante a fazer. Sempre houve algo mais importante a ser feito na vida dela. E momento de fazê-lo havia acabado de começar.

Dando a curva, Pacífica enveredou-se por um novo caminho. Pregado num tronco de árvore, residia a placa antiga e empoeirada:

CABANA DO MISTÉRIO (VENHA CONFERIR!) → 2km.

*