Qualquer morador da cidade de São Paulo descreveria aquela rua, apelidada carinhosamente de Coffe Valley, como calma e pacata. Boa para famílias, alguns diriam. E talvez estivessem cobertos de razão. Mas Ofélia Benedito e Veridiana Williamson descreveriam a rua com qualquer adjetivo, exceto calma, exceto pacata. Porque qualquer pessoa que precisasse manter os olhos atentos à nove crianças jamais descreveria algo como calmo.

Felisberto Benedito e Archibald Williamson, em contrapartida, talvez fossem como qualquer outro morador de São Paulo. E por isso passavam seus finais de tarde, após sair da fábrica, jogando conversa fora, vez ou outra dividindo um charuto que o dinheiro permitira comprar. E por isso, mesmo quando as crianças começaram a nascer, os vizinhos nunca cogitaram sair daquela rua. Divertiam-se com as confusões das crianças, ao contrário de suas esposas.

Quando Felisberto e Ofélia se casaram e mudaram para a casa de número 38, Veridiana já estava à espera de seu primeiro filho com Archibald. Darcy Williamson nasceu em uma manhã ensolarada de domingo, e Ofélia se orgulhava de ter sido a primeira pessoa a segurar o grande bebê nos braços. Apenas dois anos depois Ofélia teve a chance de ser mãe, e sua pequena Elisabeta Benedito nasceu em uma madrugada chuvosa.

Um pouco depois de Elisabeta, Veridiana foi mãe de Ernesto, e um ano depois, de Camilo. E como se estivesse cansada de correr atrás do prejuízo, Ofélia logo tratou de encomendar Jane, Mariana e Cecília. Darcy já tinha dez anos quando as vizinhas e melhores amigas finalmente encerraram os trabalhos, e como mágica, deram à luz à Charlotte Williamson e Lídia Benedito, no mesmo dia, com um intervalo de apenas algumas horas.

Os Williamson e as Benedito eram grandes amigos, se é que este era o melhor termo para descrever aquela relação. A verdade é que passavam quase todo o tempo juntos, na escola ou brincando na não tão pacata rua. Quando chovia, era comum que todos se acomodassem na sala dos Benedito ou dos Williamson. Mais comum ainda era que voltassem da escola cheios de amigos, e as nove crianças rapidamente se multiplicavam.

Apesar de terem idades tão diferentes, as crianças logo encontravam brincadeiras em comum, e foi só quando chegaram à adolescência que as diferenças começaram a aparecer. E não foi uma surpresa para nenhuma das duas famílias quando as personalidades fortes de Darcy e Elisabeta começaram a entrar em conflito. Acostumados à verem seus primogênitos comandando os irmãos, os pais sabiam que era questão de tempo até que as discussões passassem de meras brincadeiras para grandes dramas.

Darcy costumava ser muito mais calmo que Elisabeta, mas em uma característica que se assemelhava muito ao pai, tinha a tendência à ser um pouco arrogante e sabichão. Como mais velho, era comum que usasse usa posição para que os irmãos fizessem sempre as mesmas escolhas que ele. A medida que crescia, costumava ignorar os mais novos, dizendo que precisava ajudar os pais ou fazer coisas de adulto.

Já Elisabeta era explosiva, determinada, e adorava desafiar a suposta autoridade que Darcy exercia. Quando pequena comandava os grandes motins contra as ideias de Darcy – sempre menos aventureiras do que ela pretendia. E, mesmo quando maior, fazia questão de ser parte das brincadeiras dos mais novos, ansiando para que todos tivessem memórias de infância tão boas como as dela.

É claro que aquelas personalidades tão diferentes não foram capazes de manter a amizade que tinham na infância. E, com o passar dos anos, Darcy e Elisabeta, as crianças que mal podiam se desgrudar, quase não interagiam. Mesmo agora, como dois adultos, Darcy com vinte e cinco e Elisabeta com vinte e três, era comum que pequenos encontros familiares levassem a uma disputa de forças até que alguém os interrompesse.

Darcy era agora um homem forte, de olhos azuis. Os cabelos e a barba agora se recuperavam de sua temporada de um ano no exército. Ganhara massa muscular, seus bíceps marcados nas camisas de linho que usava desde adolescente. Era um belo homem, chamando atenção por onde passava. E, após sua temporada fora de casa, voltara mais sereno, amoroso até.

Elisabeta também crescera. O corpo sempre esbelto agora continha algumas curvas. Os olhos verdes continuavam brilhando com as surpresas da vida, levava quase sempre um sorriso no rosto. Estava finalmente seguindo seus sonhos, conseguira um emprego no jornal local e escrevia colunas duas vezes por semana. E agora caminhava tranquilamente pela rua de sua casa, tão tranquilamente que pulou para trás ao ver um pedaço de tijolo se espatifar no solo, bem à sua frente.

— Ai! – gritou.

— Você não olha por onde anda, não? – Darcy disse, do topo de uma escada, os cabelos bagunçados pelo vento.

— Eu? Você é quem está tentando assassinar as pessoas no meio da rua. – Elisabeta reclamou. – Achei que seu trabalho era proteger as pessoas.

— Proteger as pessoas que querem ser protegidas. Não moças distraídas que não olham onde colocam os pés. – Darcy desceu os degraus com cuidado. – E além disso, você já sabe que não sou mais um soldado.

— É verdade. Eu havia esquecido que agora você voltou a dar despesas para os seus pais. – um brilho divertido surgiu no rosto dela.

— Não estou dando nenhuma despesa, Elisabeta. Ao contrário de você, eu trabalho desde...

— Os dezessete anos. – Elisabeta imitou o tom de voz de Darcy. – Como você não cansa de dizer.

— Eu só estou decidindo o que fazer agora. – ele disse, categórico.

— Não é da minha conta, de qualquer forma. – Elisabeta sorriu, irônica. – Desde que você pare de tentar jogar pedras na minha cabeça.

— Não joguei nada na sua cabeça. – Darcy resmungou novamente. – Se tivesse jogado, teria acertado. – ele disse, em voz baixa.

— O que foi que disse? – Elisa franziu o cenho.

— Nada. – Darcy mentiu.

— O que é que você está fazendo ai em cima, afinal? – Elisabeta olhou para o topo da escada.

— O telhado precisa de reparos. Há meses, diga-se de passagem. Mas Ernesto é um acomodado e Camilo faria uma lambança. – Darcy reclamou, fazendo Elisabeta rir.

— Ernesto disse que arrumaria o telhado. – Elisabeta deu de ombros.

— Ah, é claro. Como arrumou o jardim, a cozinha e todo o resto da casa. – Darcy ironizou.

— Se você desse uma chance à ele... – Elisabeta sorriu como um gato.

— Você sempre teve essa mania irritante de defender Ernesto. Ele pode responder por si mesmo, Elisa. – Darcy deu as costas para ela, subindo novamente os degraus. – E ele está de namorico com sua amiga Ema, se quer saber. Você não vai ganhar nada bancando a advogada.

— E quem foi que disse que eu quero alguma coisa com Ernesto? – Elisabeta indignou-se.

— Por qual outro motivo você faria questão de defender tudo que Ernesto faz? – Darcy olhou para baixo, com um sorriso irônico.

— Porque Ernesto é meu amigo! – Elisabeta gritou. – E não é um arrogante como você, Darcy, que não consegue passar um mês em casa sem implicar com seus irmãos. – ela bufou.

— O que disse? – Darcy desceu novamente as escadas, parando em frente à ela.

— É isso mesmo. Você passou um ano longe de casa e tudo funcionou perfeitamente bem. Os seus pais estão ótimos, seus irmãos trabalham, sua irmã cresce lindamente a cada dia. E agora você volta e passa o dia querendo se mostrar mais importante ou necessário que todos eles. – Elisabeta cruzou os braços.

— Eu não estou fazendo isso, mocinha. – Darcy também cruzou os braços. – Meu pai está fazendo hora extra na fábrica, meus irmãos trabalham para pagar os pequenos luxos e não ajudam em nada em casa.

— Você é inacreditável. – ela disse, revirando os olhos. – Não consegue ver nada de bom no que os outros fazem.

— É você quem não consegue ver nada de bom no que eu faço. – Darcy acusou. – Eu estava aqui arrumando o telhado para que na próxima chuva a minha irmã não precise trocar o colchão de lugar. E amanhã eu tenho uma entrevista de emprego para que meu pai não precise trabalhar tanto, e meus irmãos não precisem comprometer os salários deles.

Elisabeta abriu a boca para responder, mas Darcy a interrompeu.

— E você vem com esse discurso de que a minha família não precisa de mim. De que não fiz falta nenhuma em casa. – Darcy desviou o olhar, sem querer demonstrar qualquer emoção. – Você não me conhece, Elisabeta.

— Eu não disse nada disso. – foi a única coisa que ela tentou dizer.

— Disse, você sabe que disse. Agora, se me dá licença.

Darcy virou as costas novamente, subindo as escadas, e Elisabeta sentiu o coração afundar no peito. Era sempre assim entre eles, sempre alguma discussão sem sentido. Mas, desde que Darcy voltara de sua temporada fora, ele sempre parecia sair por cima das discussões. Ela sempre dizia alguma coisa que a fazia sentir alguma culpa, como se tivesse sido injusta com ele.

Voltou para casa e sentou-se em sua escrivaninha, na tentativa de escrever sua próxima coluna. Mas não ajudava em nada ouvir as batidas do martelo do outro lado da rua. Suspirou, percebendo que não ficaria em paz consigo mesma enquanto não se desculpasse. E odiava se desculpar.