Netflix Guy

A vida não é um episódio de Law & Order


Merida é louca.

Não louca, insana. Pirada, completamente maluca.

E eu descobri que também sou, por ter concordado com a ideia dela.

Basicamente o que ela disse foi :

–Meu pai é advogado ! Que tal processarmos esse imbecil do seu chefe ?

– Espera... o QUÊ ?! – perguntei, arregalando os olhos.

– Vamos, Jack ! – agora ela estava animada – Se explicarmos a um juiz que seu chefe te demitiu porque uma bêbada ligou para ele, e sem nenhuma explicação plausível, por que não ?!

– Bom... – respondi,nervoso – Vamos começar pelo fato que eu não tenho grana pra pagar um advogado.

– Não tem problema, papai adora os casos pro bono.

– Ah, eu não sei, Merida... Pode dar muita merda isso.

– E se não der ?

Não disse nada.

Tempo. Vamos pensar em tudo o que poderia dar errado se eu concordasse com aquela ideia :

Poderíamos perder o processo.

Meu chefe jamais me deixaria esquecer que “todos aqueles que tentam desafiar o grande Sr. Pitch nunca conseguem”.

Meu pai ficaria tão puto que iria me deserdar.

Pioraria minha relação com Merida.

O pai dela nunca iria concordar ! Hello ! Eu sou o cara do Netflix que conheceu a filhinha dele por telefone, catei o endereço deles que nem um sequestrador profissional e tudo o que eu mais desejava era dar uns pegas nela !!

– Jack ! – Merida continuou - Quando você me fez pensar que pisou na bola comigo, você não pensou duas vezes, pensou ? Catou meu endereço e se despencou até aqui ! Me dá uma chance de me redimir pela burrada que fiz com você, Jack !

Ok, agora vamos pensar em tudo que poderia dar certo se eu topasse:

Teria a vingança mais deliciosa contra todas as vezes que aquele velho escroto implicou comigo sem motivo.

Ganharia meu emprego de volta.

Ganharia uma grana de indenização.

Não precisaria nem mencionar ao meu pai que tinha perdido o emprego, pra início de conversa.

Merida e eu ficaríamos mais próximos do que nunca.

E bem, depois de avaliar cuidadosamente cada um daqueles itens enquanto recebia lambidas babadas de Ursa, acabei concordando.

E agora lá estava eu, no dia seguinte, sentado à mesa ao lado de Merida e em frente a um ruivo de 2 metros de altura e 1,5 de largura, bigodudo, cabeludo e me encarando de um jeito que me deixava extremamente desconfortável. Já estava me arrependendo de concordar com a ideia de Merida, porque aquele cara era exatamente o oposto do que eu tinha imaginado que era o pai dela ! Esperava um executivo sério, classudo, não um cara que parecia a porra de um viking que ia arrancar minhas tripas fora !

– Então... – ouvi pela primeira vez a voz grossa do sr. DunBroch. – Jack Frost...

Engoli em seco, tentando ao máximo esconder meu nervosismo.

– S-sim, senhor.

– Merida me falou de você hoje mais cedo. – ele estava completamente sério, o que me deixava ainda mais nervoso.

– F-falou, é ? – cocei a cabeça

– Falou. – ele pegou uma faca de prata que estava ao lado do prato do almoço e ficou analisando-a, não olhando para mim. Cacete. – Disse tudinho.

– Tudinho...? – afrouxei a gola do meu casaco, tentando não olhar para a faca deslizando nos dedos gigantes dele.

– Tudinho. – ele assentiu com a cabeça. – Sobre como se conheceram, sobre seu emprego, sua visita aqui ontem à noite, e seu problema com o chefe.

Tentei fazer com que os olhos de Merida se encontrassem com os meus para que ela me ajudasse com algo a dizer ao pai, mas a maldita nem olhou para mim.

– Ah.. – não sabia o que responder. Parecia que ele ia me atacar a qualquer momento.

– E garoto... Só tenho uma coisa a dizer sobre seu caso.

– O.. o quê ? – rezei brevemente, se ele me esfaqueasse ali pelo menos ia pro céu de consciência limpa.

– VAMOS DESTRUIR ESSE CARA !! – e para minha surpresa, o sr. DunBroch enfiou a faca na mesa madeira, se levantou rapidamente e me encarou com um grande sorriso – Já tive várias ideias de argumentos que podemos usar ! Vamos chamar seus colegas de trabalho como testemunhas, óbvio ! – ele começou a andar em círculos em volta da mesa – Quero saber de todos os podres desse homem ao longo dos anos... Cadê meu bloco de notas ?! – ele olhou em volta da sala de jantar – Vamos discutir isso durante o almoço, a Elinor faz um peru assado que é dos deuses ! Vou ver se já está pronto, um momento ! – e correu para a cozinha.

E assim que ouvimos a porta da cozinha fechando, Merida começou a rir tanto que lágrimas escorreram de seu rosto. Fiquei alguns segundos parado, mais pálido do que eu já era, para processar aquela informação.

– Ele... topou mesmo ? – perguntei, ainda encarando a porta da cozinha, não acreditando no que acabara de ouvir.

– Tinha que ter visto sua cara ! – ela cobriu o rosto com os braços, tentando sem sucesso conter as gargalhadas – Meu pai é maneiro ! Ele adorou o que eu falei sobre como nos conhecemos, disse que sempre sonhou em todas aquelas vezes que ligava para Apple pra fazer seu telefone funcionar, que uma gostosona atendesse e o ajudasse.

Agora mais calmo, consegui rir de leve.

– Merida... Eu sei que já concordei, e seu pai é legal demais por aceitar me ajudar desse jeito, mas... – olhei para a mesa – E se não der certo ?

– Se não der certo a vida continua, Jack. – ela sorriu. – Eu sei que vai ser difícil conseguir derrubar seu chefe, mas não custa tentar, né ? Olha, isso vai parecer meio piegas, mas é sempre melhor tentar e não conseguir do que nunca ao menos tentar e passar o resto de vida pensando sobre como poderia ter funcionado.

Sorri também. Ela tinha razão.

– E além do mais, meu pai é um ótimo advogado, mas não significa que ele nunca perdeu um processo. Se por acaso você não ganhar, isso não vai manchar o nome dele. – ela deu um risinho.

Merida era maravilhosa. Ela estava mesmo tentando consertar as coisas. Ela mesma reconheceu que errou e se desculpou, e agora me descolou um advogado foda, que além disso é muito maneiro.

Como eu queria beijá-la naquele momento.

– Você é o máximo. – envolvi sua mão com a minha, e ela sorriu timidamente para mim.

E rapidamente soltamos as mãos porque um sr. DunBroch muito faminto e barulhento escancarou a porta da cozinha trazendo um peru gigantesco e cheiroso para a mesa.

(...)

Quando saí de casa no dia do tribunal, disse ao meu pai que iria resolver uns problemas na faculdade e depois iria direto para o trabalho. O trabalho que ele ainda achava que eu tinha, mas que eu poderia recuperar, dependendo de como as coisas ocorreriam.

Fergus – ele me pediu para que não o chamasse de sr. DunBroch pois o fazia se sentir velho – me contou da reunião que tivera no dia anterior com o advogado do sr. Pitch, e que o babaca estava todo seguro de si, dizendo que não aceitava os termos que ele ofereceu, e que basicamente disse que iria nos dar uma surra no tribunal. Estava rezando para que não precisássemos chegar ao ponto de levar o problema ao juiz, mas o puto não quis cooperar.

Estava usando o único terno que tinha, que minha mãe comprou pra mim quando me formei no colégio, e suando em bicas. Nunca na minha vida tinha participado de um tribunal, o mais próximo que tive disso foi assistindo Law & Order quando não tinha nada melhor para fazer.

Por sorte, o lugar era pequeno, não era daquele tipo com trezentas mil cadeiras que vinha uma plateia assistir, estávamos só nós, nossos advogados, a juíza, Merida e algumas testemunhas no canto da sala. Se naquele lugarzinho eu já estava quase morrendo de nervoso, imagine se fosse naquelas salonas com júri e tudo.

Fergus começou apresentando os dados que coletou sobre meu histórico no Netflix, como sempre fui um empregado exemplar – hã, mais ou menos... – sobre meus bons resultados no suporte técnico e sobre como os clientes estavam satisfeitos com minha simpatia e bom-humor – pff, como eu fingia bem – no telefone.

Bastou esse último dado pro velho babaca começar a chiar. Disse que o que importava não eram esses aspectos, mas sim os resultados. Mostrou a quantidade de vezes que eu não consegui resolver os problemas – pouquíssimas. Velho escroto. – Começou a reclamar feito uma mulher na TPM sobre como eu sempre chegava às 18h05 e não 18h, e como eu poderia ter perdido um cliente durante aqueles cinco minutos, etc.

Depois de um bom bate-boca dos advogados, Fergus chamou uma testemunha. Uma velhinha pequena com um rosto familiar depôs que foi uma das minhas clientes, e disse que nunca viu um serviço tão eficiente quando o meu, que não tinha nenhuma reclamação e quanto era um desperdício me dispensar. Depois, quem subiu foi Mavis, minha colega de trabalho. Disse que eu alegrava aquele ambiente – uau, não sabia que era tão querido... me senti bem depois de ouvir aquilo – que não tinha sido funcionário do mês no mês anterior sem motivo, e que um erro como o que eu cometi não era razão para demissão. Além disso, disse que já chegara atrasada mais vezes que eu, e o chefe nunca havia reclamado com ela.

– Ah, pelo amor de Deus ! – o sr. Pitch realmente socou a mesa onde estava – O que é isso, um anuário de colégio ? Não quero saber de pessoas bajulando esse moleque !

– QUIETO, SR. PITCH ! – a juíza o fuzilou com os olhos – Essa é a última vez que deixo passar suas intervenções. Se tem algo a dizer, ESPERE.

Tudo o que eu sempre quis ver, alguém dando uma dura no velho. Aquilo me deixou até mais calmo.

– Caham. – pigarreou o advogado de Pitch, olhando-o para ter certeza de que não iria interferir outra vez. – Gostaríamos de chamar como testemunha... – ele encarou Fergus – sua filha, Merida DunBroch.

Arregalei os olhos. Desde quando Merida ia depor ?! Ela não tinha avisado ! Ela sabia daquilo.. ?

– Vossa Excelência... – Fergus disse à juíza – Minha filha não foi avisada previamente sobre...

– Não, tudo bem, pai. – ouvi a voz da ruivinha lá de trás. – Eu posso falar.

E andou convicta até ficar de frente para nós. Os cabelos pareciam estar mais cor de fogo do que o usual.

Depois de fazer o juramento, as perguntas começaram :

– Poderia nos descrever a noite do dia 18, durante a festa que estava dando?

– Claro. – e ela descreveu tudo. As pessoas, a música, as bebidas, até de Astrid ela falou.

– E a senhorita se lembra do que disse quando ligou para nossa central de atendimento ?

– Sim. – ela olhou para o chão, um pouco envergonhada, depois ergueu a cabeça e falou – Disse que Jack me fez chorar. Que estava insatisfeita, queria seu endereço para “chutar sua bunda”. E disse que... – ela suspirou – Jack era um babacão e que me fez me sentir uma bosta.

– Como podem ver... – Fergus disse – Minha filha claramente não estava em condições de consciência para julgar o trabalho de Jack.

O advogado assentiu com a cabeça, como se estivesse processando os fatos na mente.

– Vossa Excelência, peço permissão para tocar a gravação da ligação que Merida DunBroch fez na noite da festa, para comparar com o que ela disse.

– O quê ? – falei, indignado para Fergus – Eles podem fazer isso ?! Não tem aquele papo de prejudicar a imagem sem avisar ?!

– Acho que nesse caso não, Jack. – ele respondeu, franzindo a testa – Quando aceitamos os termos de condição, é como se estivéssemos aceitando que eles podem gravar nossas ligações.

Termos de condição malditos. Pra que eles existiam ?! Ninguém lia, e eles só serviam pra foder a gente.

Sabe um tal de Jack Frost ?! Então ! Ele é um babacão, sabia ?! Você liga pro Netflix, acha que vão resolver seu problema e o que eles fazem ?! Eles te fazem se sentir uma bosta ! Uma bostona ! Uma bostaça !

Que merda. Velho filho da puta. As bochechas de Merida estavam queimando. Como assim era permitido mostrar a garota bêbada falando bobagens na frente do próprio pai ?! Golpe baixo. Babaca.

Sabe o que ele me fez fazer ?! Chorar ! E muito ! E não sou dessas coisas, sabe ? Ele merece ser punido ! Me passa o endereço dele que eu vou até lá dar um chute na bunda dele !

Meu Deus, que inferno. Tudo o que eu queria era levantar e dar um soco na cara daquele miserável por fazer Merida passar por aquele constrangimento. A vontade foi tanta que eu não consegui me controlar.

– Excelência ! – gritei, me levantando – Não se pode constranger uma testemunha assim !

– QUIETO, SR. FROST ! – a juíza gritou – O mesmo vale para o senhor.

– Jack, se acalme. – Fergus tocou a manga do meu paletó e me sentei novamente.

– Srta. DunBroch. – o advogado voltou a falar – No relatório do processo uma das razões da injustiça da demissão do sr. Frost foi que seu depoimento deveria ser descartado por razões de embriaguez. Mas pelo que ouvimos do que acabou de nos dizer, os fatos condizem bastante com o que a srta se lembra. Seu nível de consciência foi grande, então não vejo motivo para que ele não seja considerado.

O queixo de Merida e o meu caíram no chão. Merda !

– E temos também a gravação do sr. Frost e da srta. DunBroch na noite anterior e como ela prejudicou o sistema... Mas não acho que seja necessário mostra-la. – e deu um sorriso vitorioso.

– Tenho que concordar com isso. – a juíza disse – Sr. DunBroch, o que tem mais a dizer a respeito do sr. Frost ? Porque acho que já podemos encerrar o caso.

– Não, Vossa Excelência ! – Fergus suplicou – Peço um breve recesso. Podemos continuar amanhã de manhã ?

A juíza pensou um pouco, mas graças a Deus se compadeceu com o olhar de Fergus.

– Voltamos com o caso amanhã de manhã, sem atrasos. – e bateu seu martelo.

Estávamos fodidos. Fodidos mesmo. Estávamos em grande risco de perder aquele caso, ainda mais quando eles usaram nossa ferramenta de ataque – o fato de Merida ter ficado bêbada – contra nós. Mesmo Fergus garantindo para nós que iria pensar em outra coisa e que não iria deixar aquele maldito fazer Merida passar vergonha novamente, ainda não estava nem um pouco seguro de que iríamos ganhar.

E eu achava que aquilo não poderia piorar, quando liguei meu celular e vi seis chamadas perdidas do meu pai. Ótimo, tudo o que eu precisava.

– Oi, pai... – falei, tremendo, quando ele atendeu o telefone.

– JACK FROST !! – ele berrou do outro lado da linha – ONDE DIABOS VOCÊ ESTÁ ?!

– Hã... – olhei para o relógio – No..trabalho, pai.

– Não minta pra mim, moleque ! – havia ódio em sua voz – Eu não só soube que você não foi à faculdade hoje, mas faltou o trabalho também ?! Aliás, quando perguntei para a central onde você estava eles disseram que você não trabalha mais lá ?! Me explique essa merda agora !!

Agora estava perto de ter um infarto. Puta merda. Estava ultra fodido.

– Pai, calma, eu posso explicar.

– Ah, pode... Se não puder você vai ver a surra que vai levar quando chegar em casa !

– Pai ! – ele realmente conseguia me assustar às vezes. – Eu posso explicar quando chegar em casa ! Agora estou tentando recuperar o meu emprego ! Posso conseguir !

– E como está fazendo isso ?!

Merida percebeu a tensão no meu rosto e perguntou, sem fazer som com a boca “Está tudo bem ?”. Fiz sinal que daqui a pouco iria responde-la, e fui andando pelo corredor para me afastar.

– Ok, por favor, não pire, mas...Estou processando o cara.

– O QUÊ ?! – e nesse momento, fiquei parcialmente surdo – QUE PORRA DE IDEIA FOI ESSA, MOLEQUE ?! Acha que nosso dinheiro cresce em árvores ?!
– É pro bono, pai ! Não precisamos pagar !

Ouvi alguns resmungos do outro lado da linha, depois ele voltou a dizer :

– Escute aqui, Jack. Você vai voltar para casa AGORA. Não ligo se está no meio da porra da audiência. Vai voltar AGORA, desistir disso e se preparar para o pior castigo da sua vida.

Estava quase chorando de raiva. Um nó surgiu na minha garganta. Como deixei aquilo chegar ao ponto que chegou ? Há alguns dias eu era só um cara comum que trabalhava no Netflix, com um chefe pé-no-saco. Agora estava lá, envergonhando a garota que gostava, perdendo um processo, mentindo pro meu pai, e sofrendo as consequências por aquilo.

Nem acreditava que tinha ido tão longe.

E estava na hora de voltar à realidade. Não é só porque nas séries os processos mais idiotas são ganhos que eu iria ganhar aquele. Achava que não era possível um zé-ninguém feito eu decepcionar tanta gente. Mas era.

Quando voltei para onde os dois estavam, Merida foi logo me perguntar o que tinha acontecido. Peguei minhas coisas e disse, com a voz fraca :

– Acabou o processo. Eu estou fora.

E dei meia-volta sem nem deixar nenhum dos dois responder. Meus pensamentos já estavam altos o bastante para eu me odiar naquele momento.