“John! Sherlock!”

Ao ouvir a voz da senhoria, os moradores de 221B, Baker Street deixaram o apartamento, ainda com as xícaras. A sra. Hudson sorriu ao vê-los tão desengonçados. Anunciou que receberia o sobrinho e seu namorado para as festas e pediu que Sherlock não os assustasse com deduções.

“Tomarei conta dele”, John garantiu, recebendo uma cotovelada do Holmes.

“Comporte-se, Sherlock”, a senhora ralhou. “A propósito, podem buscá-los em King’s Cross? Preciso cozinhar.”

Pegaram um táxi até a estação. O lugar causou um estranho frio na barriga de Sherlock. Muitas memórias o invadiram, prontas para serem remoídas. John se adiantou para procurar o rapa descrito pela sra. Hudson. Alto, cabelos castanhos e cicatrizes peculiares no rosto.

Quando Sherlock voltou a si, fez deduções rápidas sobre ele. Vivia em um internato no exterior, cursava o último ano, o mais estudioso do grupo de amigos, grande apreciador de chocolate. Seu namorado preferia rock’n’roll, motocicletas e cigarros – embora estivesse tentando parar – e nem precisava ser um observador exímio para descobrir isso.

“Você é Remus, não é?”, John estendeu a mão. “John Watson, amigo da sua tia. Este é Sherlock Holmes, meu... hã..."

“É complicado”, Sherlock interrompeu.

“Entendemos de ‘complicado’”, o outro rapaz pareceu latir. “Sirius Black, adoro seu blog, doutor Watson.”

A trilha Sonora da volta foi a animada discussão de Sirius e John sobre o blog. Remus olhava distraído pela janela e Sherlock tentava imaginar a causa das cicatrizes. Oscilava entre cortes de faca e páginas mais afiadas que espadas, sobre as quais ele adormecera.

“Erro médico”, o menino revelou quando tiraram as malas do carro, “foi como as consegui, logo que nasci.”

“Como soube que era sobre isso?”

“Pode-se dizer que li seus pensamentos, mas não se assuste. As pessoas geralmente pensam sobre elas quando me conhecem”, deu de ombros. “Os mais diretos perguntam.”

“E quais prefere? Os que pensam ou os que falam?”

“Os que sabem”, seus olhos vacilaram para Sirius, “e tentam me deixar confortável comigo mesmo.”

O detetive assentiu. Sabia como era importante ter por perto alguém que olhasse além das cicatrizes e hábitos estranhos e visse a pessoa escondida atrás disso. A sra. Hudson recebeu-os com biscoitos e comentários sobre como cresceram desde a última vez que a viram.

Sherlock e John saíram para atender um pedido de Lestrade. Remus se viu livre para perguntar.

“Sherlock e John, eles...”

“Chegaram a esta casa e transformaram em um furacão. Fazem isso com tudo que tocam, inclusive si mesmos”, Martha sacudiu a cabeça. “O barulho de madrugada, os tiros... acabei me acostumando, porém não foi fácil.”

Remus sorriu. A maioria das pessoas responderia a pergunta com o status de relacionamento que achavam que eles tinham, mas não a tia Martha. Ela levava a sério demais a política de não se meter na vida alheia. Queria que essa prática fosse mais popular, o pouparia de muito constrangimento.

Sirius ainda tinha metade de seus biscoitos, ambos sabiam que ele não os comeria. Em silêncio, empurrou o prato e terminou o chá. Remus arrematou os biscoitos e seguiu o namorado até o quarto. Via que algo o incomodava, só precisava descobrir o quê. Era péssimo em jogos de adivinhação, era melhor com palavras.

“Está chateado.”

Confuso”, ele corrigiu. “Não costuma falar a verdade logo que conhece alguém.”

“Tem razão, mas neste caso, ele descobriria mais cedo ou mais tarde, sabe disso.”

Sirius meneou a cabeça. Sherlock Holmes era brilhante, de acordo com o blog de John e os jornais, não havia sigilo que se pudesse manter perto dele.

“Quer ir embora?”, os olhos azuis encontraram os castanhos. “Deve ter um hotel em que possamos ficar, ou voltar a Hogwarts.”

“Sirius, é Natal. Todos os hotéis estão lotados e não podemos voltar. Além do mais, partiria o coração da minha tia.”

“Mas ficar parte o seu.”

Remus negou. Conseguia lidar com a situação. Do contrário, não aceitaria o convite. Martha disse que os inquilinos eram como furacões. Anos antes, Lily descreveu os amigos como forças opostas da natureza. Sirius era um incêndio e Remus, um tsunami. Com opiniões fortes e muitas vezes, conflitantes. Mas em vez de brigar o tempo todo, conversavam e chegavam a um acordo – na maioria das vezes.

Estavam jogados na cama, a cabeça de Remus no peito do namorado, pensando. A inércia o faria permanecer no apartamento até o fim do feriado, mesmo que não estivesse muito à vontade.

Sirius fazia planos para animá-lo enquanto estivessem em Londres. Ele amava a cidade, não era justo que ficasse enfurnado no quarto porque o inquilino era desagradável. Aproveitou que se entretinha com um livro, e reservou ingressos para o Museu de História Natural.

“Ei”, cutucou-o de leve. “Vamos ao museu?”

***

Assim que desceram do táxi, os homens perceberam por que eram necessários. A entrada do Museu Madame Tussauds estava de pernas para o ar, com pessoas sentadas por todo lado, sendo amparadas por policiais.

“Bomba?”, John chutou.

“Antes fosse”, Lestrade deu um suspiro pesado. “Estátuas derreteram.”

“Lestrade, é um museu de cera”, Sherlock disse. “Isso poderia acontecer a qualquer momento.”

O inspetor os guiou para dentro, mostrando as peças danificadas.

“Alguém as derreteu, é claro. E fez um bom trabalho.”

Lestrade encarou o detetive, esperando o falatório de explicação. Químicos foram adicionados nas estátuas escolhidas, por alguém que entrou de madrugada. Em contato com a luz artificial, derreteram lentamente, na frente do público.

“Escolheu as com expressão maior de pânico. Quem não se assustaria ao ver uma mulher de cera berrando e com o rosto derretendo?”, John conjecturou. “Isso esvaziou o museu em segundos. Por quê?”

“Para deixar um recado”, Donovan se aproximou com uma planta baixa que trazia assinaladas as estátuas derretidas. “Elas têm coordenadas para organização, e veja, formam um código.”

“Cuide do garoto”, Sherlock leu, as sobrancelhas unidas. “Que garoto?”

“Talvez saber quem é o responsável ajude. Pelas imagens de vigilância, identificamos Barbara Scooter. Já a prendemos.”

“Posso falar com ela?”

“Pra quê?”, Anderson indagou com seu jeito preguiçoso. “Ela já foi presa.”

“Você é burro mesmo ou só parece? Alguém corre perigo. Temos de saber quem é”, John revirou os olhos.

“Está andando muito com ele, doutor Watson”, Lestrade comentou, abrindo a viatura. “Não costumava ser tão ácido.”

Nenhum deles se importou. Foram conduzidos à sala de interrogatório, onde Barbara assobiava como se estivesse em uma cafeteria, não na prisão.

“Olá”, disse. “Como posso ajudar?”

A criminosa é prestativa, John colocou em suas anotações mentais. Sherlock jogou a planta na mesa, a mão aberta batendo forte contra o tampo.

“A que garoto se refere?”

“Por que te daria uma informação importante tão fácil?”

Nem tão prestativa assim, o doutor reformulou. Sherlock negociava com a mulher, sem sucesso.

“Estamos perdendo tempo, Sherlock. Tem alguém precisando de ajuda”, John interpelou.

“Ouça seu amigo, senhor Holmes. Ele é sábio”, Barbara sibilou.

“De que...”

“Vamos!”

Watson puxou Holmes para fora da delegacia, bem a tempo. Policiais iam de um lado a outro para atender um chamado no museu de História Natural, o lugar fora incendiado.

“Alguém aí não gosta de museus”, comentou uma mulher de cabelos loiros com dois copos de café.

“Ela. Tem. Razão!”

“Sherlock, o que está pensando em fazer?”

“Ir até lá, é óbvio.”

John não queria ir, tinha um mau pressentimento. Achava que deveriam voltar para casa, talvez falar com Sirius e Remus, mas o Holmes estava decidido. Ele não parou de insistir que dessem meia-volta, ou que telefonassem para a sra. Hudson pelo menos.

“O que tanto te aflige, John?”

“Tem algo estranho nessa história.”

“Sei disso. Não estamos lidando com um criminoso normal.”

O médico revirou os olhos. Não acreditava que o segundo crime fosse obra de Barbara, portanto, não queria que Sherlock se expusesse a perigos desnecessários. A Scotland Yard podia cuidar de um incêndio, mas o detetive queria muito confirmar sua suspeita.

Ainda que Barbara não estivesse diretamente envolvida com o incêndio, estava ligada a ele. Afinal, não podia ser coincidência dois crimes similares acontecerem no mesmo dia.

Os bombeiros já tinham controlado a situação quando chegaram. O capitão se dispôs a conversar.

“Apanharam quem fez isso?”

“Ah, sim. Um camarada muito confuso. Quando chegamos, estava sentado, abraçando os joelhos e sorrindo, porque ‘o mestre’ se agradaria dele. Tentamos interrogá-lo, mas não deu certo.”

Assim como o interrogatório de Barbara, Sherlock deixou essas palavras em seu palácio mental. O homem fora um mero peão, usado para levar a culpa enquanto o mandante conseguia o que queria da confusão.

“Algo roubado ou danificado?”

O bombeiro negou, os danos foram estruturais. A Scotland Yard levou o incendiário para interrogatório e Sherlock só conseguiu rir ao imaginar Donovan e Anderson tentando fazê-lo falar a qualquer custo, e falhando. Agradeceu a ajuda, e assistiu enquanto bombeiros e paramédicos auxiliavam pessoas a sair do prédio, como faziam sempre que um prédio pegava fogo.

“Sherlock”, John puxou-lhe o casaco. “Olhe lá.”

Amparados por paramédicos, Sirius e Remus eram escoltados para o pátio externo.

“Acha que é um deles?”

“Ficaremos de olho.”

“Que tal deixar a polícia cuidar do caso e nós cuidamos deles?”

“E como propõe que os tiremos dos paramédicos?”

“Deixe isso comigo.”

John foi até lá e se apresentou como médico e tio de Sirius. Isso bastou para que os paramédicos – cheios de outras coisas para fazer – os deixassem partir.

“Nenhuma palavra à sra. Hudson”, disse Sherlock, sombrio, enquanto John os examinava.

Os únicos machucados eram queimaduras superficiais, na mão direita de cada um. John pediu explicações para ferimentos tão parecidos.

“Estava protegendo meu namorado, doutor. Teria feito o mesmo, não teria?”, o Black sussurrou.

“Claro que salvaria a vida de alguém que precisasse, é meu dever como médico.”

“Mas colocaria a mão no fogo para impedir que a dele se queimasse?”

“Não impediu a queimadura”, John observou, erguendo a sobrancelha.

“Mas tentei. É isso que importa. Ter sempre a melhor das intenções.”

John discordava. A melhor das intenções causou a morte de pessoas que ele amava. Depois da morte de Harry, ele se tornou um pouco como Sherlock, fechado em si mesmo, até voltar da guerra e conhecer alguém pior que ele. Alguém em quem podia depositar energias, que precisava de sua – ainda que pouca – habilidade social.

“Está apaixonado por ele”, Sirius exasperou. “Mas não disse ainda, e isso te faz sofrer.”

“Deveria parar de ler aquele blog. Fez igualzinho a ele.”

“Obrigado. Quer um conselho? Diga no Natal. Costuma funcionar.”

Agradeceu o conselho e encaminharam-se ao encontro dos outros. Sirius praticamente deitou no colo do namorado enquanto esperavam o táxi. Sherlock estranhou a naturalidade de seus toques. Estavam muito à vontade um com o outro, embora Remus tivesse dito que nunca estava confortável, por causa das cicatrizes.

O amor faz milagres, pensou, quase caindo em seu palácio mental. Foi impedido por um olhar atravessado de Remus, que dizia que queria falar-lhe assim que possível.

Chegaram em casa, e a preocupada sra. Hudson os recebeu com diversas perguntas.

“Conhece Lestrade e sua equipe de palermas. Não conseguem resolver coisas complicadas sozinhos. E os meninos só queriam se divertir, não há crime nisso.”

A velha senhora concordou, ainda nervosa, murmurando sobre ter de se explicar à irmã se algo acontecesse ao sobrinho. Sirius se ofereceu para fazer-lhe chá, e Remus subiu para o apartamento do detetive.

“A tia Martha dará uma festa de Natal. Algo pequeno, apenas nós e uns poucos amigos.”

“Ela faz isso todo ano.”

“Venha. Sirius e eu podemos ajudá-lo a se entender com o doutor Watson.”

Sherlock ponderou. As festas de Natal da sra. Hudson tinham boa comida e interações sociais toleráveis. Decidiu que iria, apesar de ter uma investigação inacabada em mãos. Cuidaria disso mais tarde.

***

Sherlock e John se preparavam para o jantar. Uma suave melodia natalina vinha do rádio do apartamento ao lado. O cheiro de biscoitos e outros assados era atraente. Sherlock estava ansioso para juntar-se aos demais.

Foram abraçados por Molly e Lestrade tão logo cruzaram a soleira. A sra. Hudson estava ao telefone e acenou para os recém-chegados. Sirius lhes ofereceu vinho, e Remus, pãezinhos com tomate.

“Qual o plano?”, Sherlock parou Sirius a caminho da cozinha.

“Não tem plano”, o rapaz sorriu.

Ele não se convenceu. Aqueles garotos eram espertos demais para não terem um plano. Molly ria, motivada pela bebida, Lestrade sussurrou em sua orelha e ela puxou a mão de Remus em direção ao centro da sala. Em menos de um segundo, ele e Sirius estavam aos amassos.

Sherlock percebeu qual era a estratégia. Muito simples, e genial por ser tão óbvia. Preferiu se fingir de tonto enquanto Lestrade trazia John. Olhou para cima distraído, como se não notasse o ramo de visco sobre suas cabeças.

“Parem de perder tempo, pelo amor de Deus!”, a sra. Hudson ordenou, cobrindo o bocal do telefone.

Trocaram olhares. Deram um passo. Molly pensou que explodiria. Lestrade gargalhou. Sirius e Remus torciam as mãos em tensão. A sra. Hudson tentava desligar, desesperada. John respirou fundo e agarrou o colarinho de Sherlock.

O contato foi intenso e demorado. As mãos de Sherlock foram para o rosto de John. Receberam uma pequena salva de palmas e assobios. Quando se soltaram, hesitantes, Lestrade estendeu uma folha.

“É um documento de casamento?”

“É o meu presente de Natal. O relatório sobre os casos dos museus. A corporação os resolveu e desvendou a mensagem de Barbara.”

“E então?”

“Barbara era cliente fiel de James Moriarty, e recebeu dele a tarefa de passar uma mensagem sobre John.”

“Ele te chamava de Johnny Boy, lembra-se?”

Watson arregalou os olhos. Quase esquecera o apelido que o consultor criminal lhe dera.

“E quanto ao ‘mestre’ do incendiário?”

“A própria Barbara. Ela é uma moça inteligente, sabia que seria pega, então mandou alguém fazer a outra parte do trabalho sujo. Achamos que outras coisas assim estavam planejadas.”

“Diga a Barbara que não se preocupe. Cuidarei muito bem dele.”

“Transmitirei seu recado. Feliz Natal, rapazes.”

“Feliz Natal, Greg”, John apertou sua mão.

“John, o nome dele é Gavin”, Sherlock corrigiu com banalidade.

O apartamento explodiu em risadas. Foi um bom jantar. Sirius recebeu incentivos para largar o cigarro de vez, Sherlock percebeu que Lestrade não era tão inútil quanto pensava, John recebeu amor, Molly fez novos amigos, a sra. Hudson realizou um sonho, Lestrade comeu mais rosquinhas do que nunca, e Remus estava perfeitamente confortável pela primeira vez.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.