Nascido Do Sangue

Ódio Incontrolável


Como o amigo lhe ordenara, Damian levantou-se lentamente e começou a caminhar em direção à porta da frente, Benjamin também levantou-se e passou alguns minutos encarando o corpo inerte da criada sem dizer uma palavra, como se não se arrependesse do que fizera e, poderia até fazê-lo novamente, quantas vezes fossem necessárias.

Damian parecia um andarilho bêbado, seus passos eram incertos e seu corpo não ficava ereto, sempre apoiando-se em árvores ou outra coisa que pudesse sustentá-lo em seu trajeto até o lago. Em sua mente, um incomum vazio, como se estivesse em estado de transe, apenas andava olhando para frente, porém parecia não perceber nada a sua volta, algo somente o puxava levando seu corpo amolecido para o bosque, enquanto sua mente flutuava.

Tudo estava tão claro em sua cabeça, e tinha certeza de que não se esqueceria tão cedo, mas quando tentava recordar algo de minutos atrás, parecia não temer ou odiar Benjamin por tal feito, como se ao olhar naqueles sedutores olhos tão semelhantes aos seus, alguma coisa o envolvesse e abrandasse seu medo e a raiva que poderia chegar a sentir em relação ao amigo, bem em seu âmago não tinha mais a cega certeza de que era um amigo... Entretanto, ainda o queria por perto.

Suas mãos estavam manchadas de sangue tal qual suas vestes, usava apenas uma camisa branca sem muitas pompas, um discreto calção até os joelhos, a meia de seda branca arrastando-se sobre a terra, não estava de sapatos, nem ao menos importara-se em calçar antes de sair, estava tão alheio que poderia pisar em um porco-espinho que não sentiria ou notaria.

Carregava a adaga em uma das mãos com os dedos quase abertos, os passos continuavam lentos, todavia pesados, parecia um morto-vivo vagando pela noite, procurando onde sua vida se escondera em meio àquela vasta escuridão, deixava que a lua o conduzisse sem se importar em qual direção ela o levaria.

Por sorte, o caminho era certo. As árvores logo iam se multiplicando e entre elas podia avistar ainda mais brilhante, o pálido luar banhando sua pele, sua face podia estar encanecida, porém suas mãos estavam escarlates. Os passos agora eram mais leves, quanto mais perto das margens do reluzente lago de águas calmas, mais o jovem parecia flutuar, como se ao chegar à fronteira onde o solo termina para começar a água, já estaria voando por todo o bosque e logo depois, em direção à lua.

Infelizmente não foi o que aconteceu, quando seus pés sentiram a terra úmida e amolecida, caíra de joelhos soltando a adaga. Abaixou a cabeça por um momento deixando que mechas negras de seu cabelo ocultassem seu rosto, porém não permaneceu assim por muito tempo, ergueu-se tendo novamente o semblante iluminado pela luz, sua respiração fora ficando cada vez mais acelerada como se um grito estivesse prestes a ser bradado, entretanto o silêncio prevaleceu enquanto enterrava as mãos sobre o solo. Inclinou o tronco para frente fazendo com que sua testa sentisse a frieza e a umidade do solo deixando com que caíssem gotas salgadas e quentes sobre ele.

E então ele chorou. Como se nada pudesse ter feito e como se fosse a única coisa a se fazer. Chorou. Envolveu bolos de terra fria e mole entre seus dedos ao fechá-los, não se levantou, continuou cabisbaixo lamentando-se. Não sentia tanta culpa ou remorso, mas chorava como uma criança assustada, talvez fosse isso o que realmente era, um garotinho tolo e amedrontado que não estava pronto para enfrentar a vida tal qual era.

Nada mais compreendia, pois nada mais fazia-lhe sentido, tudo estava mudando, até mesmo si próprio e era como se a cada mudança ocorrida um alguém teria de sofrer as consequências partindo da mais impiedosa maneira possível, deixando-o só, desfalecido num interno vazio incurável, um vazio interminável onde ao mesmo tempo em que machucava, também lhe proporcionava conforto, um doloroso e incompreensível conforto.

Havia uma gota de prazer em toda a dor que lhe afligia, nos últimos meses começou a acostumar-se e estava parecendo temer viver sem este doce pesar e quando este medo passou por seu corpo, Andreea o deixara. Bastou apenas uma semana de luto e o medo novamente voltara, o medo de que a dor fosse embora, pois ela não mais lhe era tão ruim, e então Mary se vai e outra vez a dor retornara como o adolescente tanto queria.

O silêncio lhe acolhia nos braços com o admirável desvelo de uma mãe, a escuridão o alimentava e o luar velava seus sonhos, toda a fungível beleza noturna estendida a seus pés, como se curvassem-se diante de sua majestade, parecia que fazia parte do cenário. Um formoso anjo negro perdido entre ilusões sombrias, vagando pela madrugada em busca de uma nova fantasia, onde o céu estrelado nunca terminaria e mais um devaneio vinha brilhar com a lua.

Arrastou-se alguns centímetros, mergulhou suas mãos sobre a água gélida e enegrecida retirando os vestígios de terra, lavou o rosto fazendo com que alguns fios de seu cabelo ficassem molhados e grudassem em seu pescoço, inspirou o ar puro da madrugada e o deixou por alguns segundos em seus pulmões na esperança de se livrar daquele suculento cheiro de sangue que vinha da arma branca ao seu lado.

Expirou. Olhou para seu lado direito, por que aquela adaga era tão sublime? Veja como o luar a ilumina com extrema precisão! Perceba como o solitário rubi lhe atrai a atenção, faltando apenas murmurar seu nome quebrando delicadamente o perfeito silêncio! Sinta o súbito prazer de ter sua carne beijada pelo gume e deixe com que este prazer empesteie cada milímetro de seu corpo! Faça com que este mero objeto de bolso seja a imagem do esplendor!

Pegou-a delicadamente em suas mãos e a mergulhou no lago, passou os dedos de forma cuidadosa sobre a lâmina devolvendo o prateado brilho que antes estava sendo ofuscado pelo fulgor carmesim de sangue quente e inocente. A lua parecia direcionar sua luz exatamente para aquela direção, podia ver a água tornando-se rubra, mas somente durante alguns míseros segundos, logo o viscoso líquido desfez-se até sumir por completo.

Retirou-a deixando com que algumas gotas cristalinas pingassem de seu cabo caindo de volta ao lago, finalmente estava limpa e brilhante. Ficou observando cada detalhe como se fosse a primeira vez que a visse em toda a sua vida, nem ao menos parecia se lembrar de que fora ele mesmo quem a fabricara, dedicando-se inteiramente a esta valiosa encomenda que retornara às suas mãos.

A dúvida começara incomodá-lo, não mais tinha a absoluta certeza de que a jogaria o mais longe possível ouvindo assim, o som da arma caindo e afundando para sempre nas profundezas daquele solene e esquecido lago. Não teve tanto tempo para pensar, ouviu alguns ruídos entre as árvores seguidos de uma voz conhecida que chamou seu nome:

___ Damian?

O ferreiro apenas virou levemente a cabeça sem poder enxergar quem era, nem precisaria, o timbre entoado da voz já lhe dera a resposta.

___ Sabia que era você!___ disse Tristan aproximando-se ___ Não posso crer que o rico viúvo Damian Petrescu ainda frequente esta poça grande de água que chamam de lago.

___ Não posso crer que o pacóvio Tristan Dumitrescu ainda abra sua boca para dizer tolices, não sei como alguém ainda não arrancara sua língua ___ revidara o garoto no mesmo tom de deboche, porém com um toque fúnebre que só ele saberia dar.

___ E como eu beijaria a linda boca de Rosalind?

Seu sangue fervilhara em suas veias num instantâneo efeito de ação e reação, Petrescu saltara e num só ato ficara em pé virando-se na direção do rival, engrossando a voz ao dizer:

___ Não refira-se à Rosalind de maneira tão baixa e grosseira diante de mim!

___ E o que poderia fazer? Meu caro, compreenda de uma vez por todas, sou eu quem a desposará muito em breve, nosso casamento já está marcado, por mim estaríamos agora em uma pomposa mansão em Bucareste bem ao lado do Conde, frequentando ricos e graciosos bailes, Rose já estaria esperando nosso primogênito... Ah, porém meu pai faz questão de reunir toda a família e, alguns de meus parentes moram na Turquia e Itália e demoram a chegar ___ gabava-se Tristan de forma impiedosa.

A audição de Damian ficara mais aguçada com o passar das noites e a voz de Tristan tornara-se insuportável ao tocar seus ouvidos, não conseguia controlar-se diante daquele rapaz prepotente e arrogante, seu movimento ao se levantar fora tão imediato que o inimigo nem ao menos notara que o ferreiro havia escondido a adaga no bolso de trás de seu calção.

Dumitrescu notara as manchas avermelhadas na roupa do moço, porém como estava uma forte penumbra cobrindo o ambiente onde estavam, não sabia ao certo o que poderia ser, então aproveitou para zombar mais uma vez do garoto:

___ Ora o que é isto? Embebedando-se de vinho?! Lamentando a morte daquela meretriz imunda ou vangloriando-se de que agora é dono de todos os seus bens?

___ É bom saber que nunca mudará esta tua postura cretina, Tristan.

___ Postura cretina? Vindo de um pobre ingênuo que aceitou tornar-se amante da viúva Voiculescu por sua fortuna? Isto para mim não seria nem mesmo uma ofensa, prietenul meu.

___ Não ouse repetir tais palavras! Você e todos daqui desta comuna desconhecem minhas razões, então não julgue minhas escolhas!

___ Ah, será que realmente desconheço?___ provocou Dumitrescu.

O olhar do robusto jovem era intimidador fazendo com que o pálido moço sofresse ao controlar sua ira, que a cada minuto somente aumentava.

___ Foi somente meu pai comunicar meu noivado com Rosalind e você fora logo correndo para os braços da fogosa e vulgar viúva. O que pretendia com isso?

___ Isso não lhe diz respeito!

___ É claro que diz! Ora essa, Damian, sempre fomos bons amigos, companheiros de batalha...

___ Batalha? Chama de batalha os combates simulados que ocorriam em todos os festivais?

___ Para inocentes garotos como nós podem ser chamados assim. Meu amigo, sempre fomos tão próximos, dois sujeitos sonhadores que dividiam tudo, por que agora guardar tanto rancor neste seu coração?

___ Você nunca gostou de mim, sempre exibindo-se, pisando sobre meus sentimentos para que sentisse-se superior, o fato era que eu não passava de uma criança, incapaz de enxergar a maldade por trás de seu pérfido sorriso e de sua traiçoeira palavra amiga, porém agora posso ver.

___ Não, não pode. Sempre será assim, meu caro, sempre haverá alguém para passá-lo para trás e sabe por quê? Porque você é um rapaz ingênuo, Damian, um garotinho que acredita na paz e pessoas boas, entretanto precisa enxergar... O mundo não é assim.

___ Está enganado, sempre existirá pessoas boas e não importa quantos desgraçados como você passem sobre elas na esperança de sufocá-las com seu orgulho e inveja, elas sempre se erguerão, pois são mais fortes.

___ Fortes? Ah, poupe-me deste diálogo espirituoso, prietenul meu, pois não é de seu feitio, ah perdoe-me, é sim ___ riu o moço.

___ São pessoas como você que merecem a morte, Tristan, e que ela venha da forma mais lenta e dolorosa possível.

___ Ora, ora, ora, estou vendo uma mudança sombria em seu caráter agora, meu caro!___ zombou Tristan ___ Estou gostando de ver! Está andando muito com aquele seu novo e tenebroso amigo, o lorde Grigore? Confesso que aquele sujeito é um tanto estranho, misterioso eu diria, mas... Tenho de admitir, tem muita classe para ter tais amizades.

___ Grigore odeia você, sabia disso? Ele o repugna pelo que me fez.

___ Excelente, arranjou um parvo que o defenda, estou orgulhoso!

Um breve silêncio, Petrescu estava a ponto de iniciar um confronto braçal com o adversário, porém na esperança de amenizar a raiva, decidiu prosseguir com a conversa:

___ Por que veio até aqui?

O outro soltou um suspiro respondendo ainda em tom sarcástico e provocativo:

___ Certamente não sei, creio que me equivoquei, mas... Estou gostando de respirar um pouco de ar puro, ainda mais quando tive a feliz coincidência de reencontrar meu velho amigo!

___ Vá embora.

Tristan riu diante do pedido do adolescente.

___ Isto é sério?

O jovem não respondera à sua pergunta, fazendo com que o burguês desaparecesse com o sorriso cretino em seus lábios.

___ E por que eu iria?

___ Estou lhe avisando, vá embora daqui antes que...

___ O que, Damian? Vai tentar me enforcar como da última vez? Me pegara desprevenido naquele dia, porém hoje se tentar algo, não vai escapar ileso, meu amigo.

___ Saia daqui, Tristan. Agora!___ berrou Petrescu enfurecido.

___ Você não passa de um fraco, Damian! Isto são apenas palavras jogadas ao vento, nunca teria coragem de fazer algo realmente impressionante por nada nem por ninguém!

O coração de Damian bateu mais acelerado, sua respiração tornara-se ofegante e apesar da brisa noturna ser gélida, um intenso calor o fazia transpirar, um calor colérico que vinha de dentro para fora.

___ Saiba de uma coisa... Se eu soubesse que você era assim tão fraco, teria pensado em me casar com Rose há muito tempo.

Isto fora o suficiente para Damian não mais manter o controle, antes que Tristan pudesse ver ou reagir, o rapaz estava sobre seu grande e hercúleo corpo sufocando-o com suas lúridas mãos. A expressão do adversário havia mudado ao notar que os olhos tão azuis agora estavam vermelhos e vibrantes como na tarde em que provara de apenas algumas gotas da raiva contida do garoto que passara para trás.

Dumitrescu tentava desprender-se dos braços do moço, porém a força que o jovem exercia sobre ele era sobrenatural. Por um instante, Damian pareceu entrar em um profundo transe onde apenas a fúria o conduzia, apenas via o rosto de Tristan e as lembranças incertas vinham-lhe à mente.

Os olhos do adversário encontrando os olhos azuis-avermelhados do ferreiro, Damian sentia seu sangue correndo quente e cada vez mais apertava seus pálidos dedos contra o pescoço do rival, sentia as veias do hercúleo garoto sendo pressionadas, a saliência do pomo de Adão sendo afundada com o auxílio de seu polegar, ouvia o ruído da respiração sufocante de Tristan, não sentia remorso, não conseguia parar, tudo que seu inimigo fazia naquele instante era motivo para continuar e ir até o fim.

Deixou que apenas uma de suas mãos ainda pressionasse a jugular do burguês, com a outra retirou a adaga do bolso de seu calção e a aproximou do pescoço do inimigo.

___ Não, Damian, por favor, prietenul meu, eu lhe imploro! Não faça isso... ___ a voz de Tristan era pausada e sufocada, pois os dedos finos e brancos de Petrescu iam enlaçando-se cada vez mais envolta de seu grosso pescoço.

A ira era convertida em prazer, ouvir o som entrecortado da respiração do adversário, sentir as veias pulsando um tanto leves sobre a superfície de seus dedos agora tão mais sensíveis ao toque, conseguia, bem no fundo de seu ser, sentir a agonia de Dumitrescu, o desespero de estar a um passo de cair nos braços da morte.

O ferreiro comprimia forçosamente sua mandíbula mordendo o lábio inferior, conseguiu retomar a consciência e tudo que via era Tristan olhando para seu rosto, havia pavor em seus olhos castanhos.

Por um segundo perguntou-se o que estaria fazendo, e se não tivesse recuperado a consciência, teria levado isto adiante.

Levantou-se rapidamente, entretanto, ainda segurava com força o cabo da adaga entre seus dedos, lançou um olhar para o rapaz caído diante de seus pés, porém não disse uma palavra, deu-lhe as costas e começou a dar passos lentos em direção ao arvoredo.

Tristan pôs-se de pé e ficou encarando o oponente quase sumir entre a escuridão, gritou perplexo e furioso:

___ Então é assim que termina? Dá-me as costas desta forma? Desistes? Tens compaixão de seu inimigo por apenas implorar? É assim que termina, Damian? Com você admitindo tua fraqueza?!

Percebeu que suas ofensas não obtinham retorno, o que fizera com que sentisse-se insatisfeito, Dumitrescu então começou a correr em direção ao adolescente no intuito de derrubá-lo ao chão e socá-lo até que implorasse para parar e mesmo assim, não pararia, era bravo e sedento demais para parar, todavia não foi o que acontecera.

Damian virou-se imediatamente ao sentir a presença do inimigo a menos de um palmo, cravando inesperadamente a adaga bem no centro do tronco do rapaz. Tristan caiu sobre seu magro e pálido corpo, o ferreiro livrou-se dele afastando até encostar-se em uma árvore.