Nascido Do Sangue

Você Não Vai Se Livrar de Mim!


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Seus olhos começaram a se abrir enquanto seu corpo tremia, ouvia o som de cascos tocando violentamente o chão de pedra, antes que pudesse ver perfeitamente, sentira dedos quentes e delicados acariciando-lhe a face esmorecida, sua visão estava embaçada, mas logo voltara ao normal quando esfregou os olhos e pôde vislumbrar o terno semblante de Andreea velando seu corpo desfalecido por indeterminados minutos.

Percebeu que estavam na carruagem, mal podia ver as coisas ao seu redor, estava escuro e silencioso, exceto pelos ruídos das ferraduras dos cavalos tocando o solo, franziu a testa, pois ainda sentia uma forte enxaqueca, notou o olhar de preocupação que a viúva lhe lançava, mas tentou ficar com os olhos fechados por causa da dor em sua cabeça.

Seus movimentos eram lentos e incertos, como se não soubesse o que estava fazendo e até pensou que realmente não sabia, a dor atingia até a parte mais íntima de seu ser deixando-o tão alheio e atormentado, sentia que a mulher o encarava sem dizer nada e se perguntava por que ainda não lhe interrogara. Suspirou profundamente algumas vezes seguidas, deitou a cabeça para trás, mas era em vão, a dor era forte e incômoda demais, nada adiantava até que ouviu a voz da amante:

___ Você está bem, Damian?

___ Pareço estar bem?___ inquiriu o rapaz ouvindo o eco atordoante de sua voz soando como uma canção repetida numa vitrola quebrada.

___ Acalme-se, logo chegaremos em casa e poderá deitar-se, draga mea.

O garoto não disse mais nada, o som da voz dela parecia mil adagas perfurando seus tímpanos até atingir seu cérebro, picando-o em inúmeros pedaços, sentia o gume afiado de cada uma delas a cada sílaba que a dama pronunciava, seu timbre podia ser baixo, mas ainda sim era agonizante.

Ela tentava acarinhá-lo, mas o ferreiro estava mais arisco do que um pássaro silvestre, afastando-se de seu corpo, apenas queria ficar sozinho no escuro, mergulhado no silêncio profundo tendo apenas a imagem dos olhos sem luz de Mihaela em sua mente e o gosto do sangue dela em seus lábios.

O sacolejar da carruagem estava enfurecendo-o, pois sua cabeça latejava ainda mais forte e como da vez em que pensou ver o falecido senhor Voiculescu rindo de sua face, ouviu nitidamente as batidas de um coração, o barulho estava bem dentro de sua mente, como um tambor alto e inquietante... Tum-Tum... Tum-Tum...Tum-Tum... Um ruído abafado, que a cada minuto aumentava a frequência.

Batidas mais rápidas fizeram com que o jovem aumentasse sua respiração, estava fraco e nervoso pela dor, olhou para a mulher, a cabeça virada em direção à janela de vidro, do lado de fora apenas árvores que pareciam correr como se estivessem fugindo de algo, soube que somente ele estava ouvindo, somente ele estava sentindo e estava doendo por dentro, apertou a cabeça entre suas mãos fortemente.

O som era mais alto à medida que as batidas tornavam-se mais velozes, espremia os olhos a ponto de quase saltarem das órbitas, mordia o lábio inferior, a dor lancinava e parecia gritar Ei, estou aqui e você não vai se livrar de mim, ouvia as batidas e o barulho de sua ofegante respiração, soava frio, tremia e sentia o peso de uma tonelada sobre seu pescoço.

Quando a dor atingiu seu ponto mais alto e alucinante, ela finalmente o deixara, veio a fraqueza, sua cabeça parecia flutuar como uma alma penada, buscou abrir um pouco seus olhos para observar o ambiente ao seu redor, mas quando sua visão tornou-se clara como o dia, o que vira em sua frente não era Andreea.

Segurou firme apertando o veludo do banco da carruagem sobre seus dedos pálidos, afastou-se até onde conseguia, seu rosto tornara-se ainda mais lívido, seus lábios mais encanecidos do que o céu numa manhã de inverno, algo cortara violentamente suas cordas vocais, mesmo que quisesse gritar não poderia, emudecera ao mesmo tempo em que seu corpo esfriara.

Conhecia aquele triste semblante de olhos azuis-acinzentados que agora estavam enegrecidos por uma espessa nuvem de uma madrugada de tempestade, vermelhos e inchados como quando os fitou pela primeira vez naquela mesma noite, ebórea como o luar melancólico, sangue tão escarlate quanto às rosas de seu jardim escorria dos lábios arroxeados, sua expressão era de espanto, assim como sempre iria se lembrar dela.

Mihaela apenas o fitava em silêncio, como se sentisse prazer em vê-lo amedrontado e confuso, sentindo as batidas de seu coração a ponto de saltar de seu peito atravessando os ossos e rasgando a pele, ela estava ali, o sangue não parava de escorrer manchando todo o vestido sujo de terra, seu pescoço estava torto e inchado, pintado em leves tons de roxo que combinavam com a lividez de sua cútis tão jovem, sua cabeça tombava para o lado.

Assim como quando a convidara para dançar, ela agora o admirava, quem viria roubar-lhe a atenção? Quem viria agora tirá-la para uma valsa romântica? Quem ouviria o som de seu silêncio sufocante? Ninguém. Tudo naquele corpo feminino estava sombriamente apagado e aparentemente fungível, exceto o sangue, tão rubro e viscoso quanto o vinho, porém o cheiro que exalava era repulsivo, assemelhava-se a restos pútridos, mas ainda assim era quente como as cinzas de uma fogueira morta.

___ O que é que você quer?___ indagou o moço sentindo o pavor no tom de sua voz.

O olhar continuava fixo em Petrescu, porém sem dizer uma só palavra, a jovem apenas o observava, como se absorvesse todo o seu medo, se alimentasse de seu terror e se divertisse com sua dúvida de que a filha do Conde diante de si era mesmo algo real, assim como fizera há uma hora aproximadamente, absorveu o medo dela, se alimentou de seu sangue e ainda presenciou a luz abandonar seus lindos olhos iludidos.

Sua cabeça voltou a latejar, seus lábios estavam secos e pálidos, tinham sede e por dentro tinha fome, a cada segundo que passava encarando-a era como se se sentisse atraído, queria tocá-la, abraçá-la e novamente provar de seu corpo, de seu sangue, e principalmente de seu medo, mas ao mesmo tempo estava amedrontado, tentou fechar os olhos e abri-los novamente, mas era inútil, ela ainda estava ali quieta e sangrando diante dele.

___ O que está fazendo aqui? O que quer de mim?

Ei, estou aqui, você não vai se livrar de mim...

Sua voz era como uma brisa anunciando tempestade, tocando gelidamente seu rosto, o tom tão vazio e baixo o fez ter ainda mais medo.

___ Vá embora, você não é real!

Você não vai se livrar de mim... Você não vai se livrar de mim... Você não vai se livrar de mim...

Como as batidas, o eco da voz dela ficou em sua mente, latejando como a dor, mas não havia mais dor física, sentia que absorvera a alma daquela garota, seus sonhos, suas ilusões, suas tristezas, seus medos, estava tudo dentro de si borbulhando como a água dentro de uma chaleira, o grito dela misturado à doçura de seu sangue enquanto o eco de sua voz flutuava por seus pensamentos.

___ Você não é real, você não é real, você não é real...

Repetia Damian incansáveis vezes em tom baixo, os timbres de suas vozes num momento se uniram tornando um só, ela era ele e ele era ela, ambos eram somente um, uma alma morta e amargurada, cheia de sonhos perdidos e ilusões cada vez mais reais, e sentiu ainda mais forte do que nunca, o gosto do sangue dela descendo por sua garganta, tão quente e adocicado quanto o orvalho de uma manhã de verão e como uma hora atrás, a escuridão tomou seus olhos, tendo como última visão, o olhar sem esperança daquela menina.