Nascido Do Sangue

Tudo Acaba Onde Começa


Quinze de novembro de 1857. Era uma noite fria, o outono estava praticamente no fim, logo chegaria o temido e rigoroso inverno, as folhas secas eram levadas para longe com o sopro gélido da brisa. Enquanto partiam para o desconhecido, elas dançavam como se o universo fosse um glamoroso palco no qual estava sendo realizado um estupendo recital. O choro da brisa era a melancólica sinfonia que ao longe soava, as árvores nuas despediam-se com tristeza das folhas que partiam, outras poderiam vir com os primeiros raios de primavera, porém não seriam as mesmas.

O céu estava repleto de estrelas que também pareciam dançar, a lua desfilava por uma passarela recoberta por um manto negro cravejado de brilhantes, encabulada, de tempos em tempos escondia-se dos amantes, todavia logo voltava a encantá-los com seu lívido luar cheio de pureza e paixão, ela era mais que sublime, era a dama da noite eterna.

Era sem dúvidas uma linda visão, um lindo relevo montanhoso pelo qual corriam pequenos rios em diversas direções formando vales estreitos e planícies pouco extensas, um esplêndido cenário tal qual o de um cândido conto de fadas, uma terrinha distante que desconhecia a dor e o sofrimento, dominada por uma paz acolhedora que arrancava os corações dos viajantes deixando uma agonizante saudade.

O sono dominava aquela pequena comuna com suas garras mortais e silenciosas, crianças, jovens, adultos e idosos sendo embalados por desejos inconscientes que saem sem medo e vagam escuridão a dentro produzindo estranhas figuras, felizes ou tristes? Boas ou más? Não importava, eram apenas sonhos, doces e pérfidos sonhos que mais cedo ou mais tarde morreriam quando olhos, humanos ou não, abrir-se-iam para uma frígida e recém-nascida manhã.

Nem tudo era um completo deleite, procurando mais a fundo, por entre as ruas escuras e quietas, encontrava-se uma singela moradia construída com madeira forte e resistente, uma casa não muito diferente das outras aparentemente, apenas uma morada em meio a um vilarejo pacato e remoto.

O lugarzinho em questão estava lá em meio a outros, pelas janelas corria o negrume que embalava e afogava o interior daquela casa. Dois vultos lutaram no escuro, choraram no escuro e agora se encaravam através de um silencioso esplendor embebido em um fio de luz tão tênue, suavemente concedido pelo formoso luar.

Qualquer um podia perceber que havia uma disputa entre seus olhares acontecendo, seus corpos afastados a uma pequena distância, contudo, o frio e o calor que emanavam, flutuavam e penetravam nos poros um do outro. Havia tensão, havia sentimento, suspense e dor soltos no ar.

A luz trêmula da lua projetava estranhas figuras que vagueavam e se fixavam nas paredes pintadas de vermelho daquela casa. As gotas de suor e até algumas lágrimas que escapavam ao apertar os olhos, brilhavam no pálido semblante de Damian ao encarar com surpresa o modo como Benjamin se fazia forte e firme diante dele, a esta altura já deveria estar caído ao chão, mas ainda mantinha-se erguido, ereto, altivo, como um perfeito lorde.

Grigore lutava para suportar os últimos minutos de sua amaldiçoada semivida, queria manter-se erguido, olhando nos olhos de seu amado menino, queria que Damian visse o quanto ele era forte, o quão sempre foi forte, mas estava fraquejando.

A dor crescia cada segundo mais em seu interior, acordando-o, dizendo que ainda podia sentir. Ben não acreditava que aquilo fosse possível, mas era. Ele sentia, ele não era um monstro. Seu coração podia estar morto, todavia ao menos tinha um e, às vezes, quando tão inocentes e luminosos olhos azuis repousavam sobre seu corpo ou quando a melodia de um frouxo riso jovial lhe afagava os ouvidos, ele voltava a bater.

O vampiro caiu então, de joelhos como uma fortaleza se desfazendo, suas ebúrneas mãos tocaram o chão aquecido por seu próprio sangue. Ainda vivia, mas não por muito tempo.

Seus negros e volumosos cabelos caídos na altura dos ombros, despenteados e opacos, algumas mechas proibiam ver claramente sua face com fortes traços de agonia. Contraía os dedos a ponto de quase enterrar suas afiadas unhas sob o piso de madeira, mordia os lábios carnudos e sem cor, fechava seus olhos comprimindo-os, franzia o cenho como se tentasse descobrir a solução para um enigma quase que indecifrável.

Damian observava cada precioso segundo que ainda restava a Benjamin, logo toda a areia de sua ampulheta iria cair não restando mais nenhum grão, logo...

Um último olhar lançado na direção do menino, um perdão, uma súplica, um sentimento qualquer, será que ao menos teria algo antes de partir? Ao menos um suspiro para contemplar O Anjo da Morte que viria aconchegá-lo em seus braços livrando-o dos tristes e solitários dezoito anos que passou tendo tantas questões em sua mente e um amor cruel e incompreendido em seu interior morto.

___ Noapte bună, meu de tineri ___ falou Grigore com um fio de voz perfeitamente compreensível pelo garoto.

Damian não lhe respondera de imediato, ficou observando com precisa atenção o esplêndido momento no qual o sangue parara de correr, os lábios arroxeados e de linhas tão suaves não mais tremiam, os roucos plangores cessaram e a luz em seu azulado olhar se apagara como quando a brisa fria sopra na direção da chama mortiça de uma vela, só assim, após reconhecer a figura serena e até um tanto sarcástica que lhe fora protagonista de seus sonhos nos últimos meses estirada à sua frente, foi que pôde dizer:

___ Noapte bună, Benjamin.

Desviou do corpo do lorde, passando também pelo cadáver de Ionel, apesar de não fazer nem uma hora, não sentia mais nada por aquele pobre homem, sabia que durante todos esses anos sempre foi assim... Algo sem sentimentos, apenas vida e morte unidas em um frenesi absurdo e inexplicável.