Naquela madrugada algo parecia tirar o sono do herdeiro Petrescu, na cozinha sozinho, sentado à mesa e bem ao centro dela um castiçal com uma vela de chama mortiça que tremeluzia fazendo com que as sombras projetadas mudassem de tamanho e forma. Lá estava ele, apoiando a cabeça numa das mãos enquanto a outra segurava delicadamente contra a luz aquela pequena jóia rubicunda.

Sentia-se cativo pela beleza daquela pedra, de tempos em tempos fazia planos, pensava em como seria a fabricação da adaga encomendada pelo aparentemente rico senhor Grigore, a detalharia bem e no centro do cabo colocaria o rubi, mas que características colocaria na pequena arma branca? Não sabia o que era do agrado do estranho rapaz, temia falhar em alguma coisa.

Seus pensamentos começaram a voltar-se para o tal senhor Grigore, no momento em que aparecera em sua loja não conseguira observá-lo precisamente, porém agora a imagem dele vinha à tona com certa clareza, lembrou-se dos cabelos tão negros quanto uma noite sem luar, tão longos quanto os seus, uma pele alva tal qual a de um defunto, isto lhe chamara atenção, nunca vira ninguém tão pálido em todos os anos que residia naquela tranquila vila esquecida do mundo, nem mesmo o próprio rapaz era tão lívido.

Enquanto tentava se lembrar de cada importante detalhe, rolava a pequena jóia, sentia-a em contato com a ponta de seus dedos, era áspera e lisa ao mesmo tempo, sua superfície não era plana e sua cor parecia ainda mais intensa quando iluminada pela chama trêmula, o fogo líquido da vela com o fogo empedrado do rubi, ambos correndo em suas veias feito seu próprio sangue.

Recordou-se de que quando Benjamin colocara a pedra sobre o balcão, vira que suas unhas eram transparentes, longas e pontiagudas, incomuns por sinal, a carne debaixo delas tinha um tom azulado como se seus dedos estivessem congelados ou até sem vida, todavia, aparentavam ser muito bem cuidadas, eram estes mínimos toques que o faziam acreditar que aquele moço era mesmo um lorde.

Como suas roupas eram sublimes, como se fossem costuradas à mão por anjos, tecidos delicados notava-se as costuras de longe, como era apenas um adolescente não entendia muito destes trabalhos domésticos e, acima de tudo, femininos, porém quando era apenas uma criança em dias de chuva que não dava para sair para brincar com os outros garotos, lembrava-se de sua ama cozendo os trajes rasgados de seu pai, sempre com muito amor em cada ponto.

Tudo naquele desconhecido era minuciosamente chamativo, com extrema precisão nos detalhes, algumas coisas o jovem jurava que eram feitas de ouro ou de outro material muito valioso e somente usado por pessoas de títulos nobres, como duques, imperadores, viscondes entre outros. A maneira como o tratou, gestos tão corteses e delicados, uma voz grave e amena, até quando alterava-a dando-lhe breves gargalhadas fazia-a com classe, ao memorizar tudo isto, um fio de vergonha passou pelo garoto, estava sujo, suado e com roupas esfarrapadas diante de um homem tão educado e elegante.

O que mais lhe chamara a atenção foram os olhos, tão claros e azuis quanto os de Damian, olhos que ao fitá-lo pareciam penetrar dentro de sua alma podendo ver tudo que se passava ali, podendo desvendar seus maiores segredos, ver com nitidez os acontecimentos de seu passado, seu presente e até visualizar limpidamente como um reflexo num lago de água cristalina, o que estaria por vir.

Perdido entre suas memórias, Petrescu percebera que sentia algo estranho em relação ao lorde, algo que no momento não conseguia explicar para si próprio, mas quando trocaram poucas palavras alguma coisa lhe dizia que voltaria mais vezes e que gostara dele, pôde notar pelo olhar daquele rapaz que ele retornaria, não somente pela adaga.

Um ruído o assustou e fez o adolescente voltar à realidade olhando em direção à porta, viu que era Viorica, estava com uma camisola ebúrnea, tinha alguns números a mais e por isso a tornava ainda menor do que realmente era, estava segurando um castiçal entre seus finos dedos no qual sustentava uma pequena vela.

___ Îmi pare rău, Sr. Petrescu, não sabia que estava aqui.

___ Eu que peço desculpas, não deveria estar acordado a esta hora da madrugada. O que faz aqui?

___ Vim pegar um copo d’água para minha mãe, ela está tossindo muito.

___ Precisa de ajuda?

___ Não será preciso, senhor.

___ Bom, então acho que já vou me deitar.

___ Precisa de algo, Sr. Petrescu?

___ Nu, draga.

A garota sorrira ao mesmo tempo que abaixara os olhos encabulada.

___Noapte bună.

___ Noapte bună, senhor.

Damian não soube exatamente quanto tempo ficara revirando-se amarrotando os lençóis enquanto o sono não vinha, até que finalmente viera, contudo não fora tranquilo. Estranhas imagens eram projetadas em seu subconsciente, imagens que o atormentavam desde que era apenas um menino. Via claramente sangue escorrendo do gume de uma adaga de prata e cada gota que caía ao chão transformava-se em um valioso rubi, ouvia o som fino das pedras tocando o chão, infindas gotas, infindas jóias raras e um grito apavorante tornou tudo rubro até seus olhos se abrirem e perceber Viorica em seu quarto trazendo uma tigela de lúrida porcelana cheia até a boca com água morna.

___ Oh îmi pare rău , Sr. Petrescu, não foi minha intenção acordá-lo, eu só vim lhe trazer esta tigela com água limpa para se lavar.

___ Tudo bem, Viorica, não precisa se desculpar.

A menina percebera gotas de suor no rosto do rapaz e a respiração ofegante.

___ Teve um pesadelo, senhor?___ inquiriu ela.

___ Da... Um sonho ruim.

___ Quer que eu prepare o seu banho?

___ Da, quero.

A empregada fora em direção às cortinas, o garoto a deteve dizendo:

___ Nu! Por favor, não abra, a luz da manhã machuca meus olhos.

___ Entendo, senhor, então... Eu vou descer e esquentar a água para o seu banho.

___ Certo.

A garota saíra do quarto fechando a porta, o rapaz deitara novamente a cabeça no travesseiro, respirou fundo fechando os olhos.