Nascido Do Sangue

Entre os Espinhos das Roseiras


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Ao acordar, Damian percebeu que ainda havia sangue em sua boca, iria descer para pegar um pouco d’água para se limpar, porém a órfã adentrara seu quarto lhe trazendo o desjejum.



___ Bună ziua, senhor Petrescu.

___ Bună ziua, Viorica ___ cumprimentou-a em um tom nervoso e ao mesmo tempo virando seu rosto em direção à janela e ocultando-o com seus longos cabelos.

___ Sente-se melhor nesta manhã?

___ Da, sim, estou bem ___ respondeu apressadamente.

___ Que ótimo, senhor!

A menina percebe o comportamento estranho do adolescente e pergunta:

___ Aconteceu alguma coisa?

___ Nu, nada.

___ Vire-se, vă rog¹.

O ferreiro sentiu seu nervosismo aumentar, suas mãos tornaram-se gélidas e trêmulas.

___ Não.

___ Por que, senhor?

___ Saia daqui, Viorica, preciso de privacidade ___ falou ele de forma baixa e pouco convincente.

___ Senhor, se algo aconteceu pode me contar.

Ele a ouviu se aproximando.

___ Nada aconteceu! Quer, por favor, sair ___ seu tom de voz aumentara, assim como seu nervosismo e seu medo de que a menina pudesse ver seu rosto.

A empregada lhe tocou gentilmente dizendo:

___ Eu poderia ajudá-lo...

Como na vez em que arremessara o relógio pela janela, o rapaz a empurrou andando até um outro ponto do quarto ainda de costas para a jovem.

___ Já disse para sair do meu quarto!___ gritou ele distanciando-se.

A menina assustou-se e depressa saiu batendo a porta. Um amargo remorso tomou conta do moço, contudo, tentou convencer-se de que foi preciso.

O ferreiro lavou o rosto na tigela de lúrida porcelana que estava sobre seu criado-mudo ao lado de sua cama, verificou no espelho que as manchas avermelhadas haviam sumido sentindo-se agora mais aliviado, após isso, vestiu-se e desceu até a cozinha cumprimentando Ionel que estava tomando o café da manhã em silêncio.

___ Bună ziua, sente-se melhor?

___ Muito melhor, tata, estes chás são verdadeiramente milagrosos!___ respondeu o filho sentando-se à mesa de modo sorridente e descontraído como se nada lhe afligisse.

De fato, o adolescente estava melhor, a dor de cabeça, a fraqueza e a tontura se foram durante o sono e mais uma vez despertara absolutamente saudável.

O homem nada mais disse sobre o assunto, havia um certo ar misterioso atado à uma gota de suspeita em seu olhar, mas preferiu o silêncio.

___ Acha que pode ir me ajudar na ferraria, Damian?

___ Claro que sim, tata, quando o senhor quiser sairemos.

___ Certo.

Ionel estava lendo o modesto jornal local com a testa franzida e os olhos apertados, com o passar dos anos sua visão estava tornando-se cada vez mais embaçada e mal conseguia ler as letras miúdas, sua expressão mudou, ficou surpreso e boquiaberto ao ler uma nota num canto da folha cinzenta do papel:

___ O que aconteceu, tata?___ perguntou Damian notando a diferente expressão no rosto do homem.

___ Gravil Radulet morreu.

___ Quem?___ inquiriu o rapaz sem entender a resposta de Ionel.

___ O jardineiro da viúva Voiculescu ___ contou o pai ___, o corpo foi encontrado hoje de manhã.

___ Meu Deus! E como ele morreu?___ o jovem parecia curioso.

___ Ninguém sabe, encontraram o corpo entre as enormes roseiras da mansão Voiculescu com dois profundos cortes, um no pulso e outro no pescoço.

O filho, em silêncio, prestava atenção em cada palavra pronunciada pelo pai.

___ O enterro será esta tarde ___ informou o ferreiro mais velho ___, pobre homem... Era um grande amigo de longa data, que descanse em paz.

___ Acha que podemos ir?___ indagou o garoto.

O pai o encarara surpreso.

___ Por que quer ir ao funeral, Damian?

___ Ele era seu amigo e um bom homem, não deveríamos ir e orar pela alma dele?

___ Tudo bem, como quiser, vamos ao funeral de Gravil ___ assentiu o pai estranhando a atitude do garoto.

Damian estava terminando de abotoar os punhos de sua camisa e ao olhar para o espelho ficara surpreso, admirou-se da cabeça aos pés e pôde perceber que o luto o deixava ainda mais belo do que de costume, as vestes negras acentuavam mais a palidez excessiva de sua tez e o brilho celeste e sedutor de seus olhos, sem mencionar que seus lábios ganhavam um certo destaque, um vermelho tão vivo e cintilante quanto pequeninas pedras de rubi...

Ouviu o som metálico da maçaneta e pelo espelho conseguiu ver que era Viorica trazendo seu fraque da mesma cor do resto de suas roupas, ao fitá-la através do objeto, a moça desviara o olhar e disse em voz baixa:

___ Aqui está seu fraque, senhor.

Ela o colocou sobre a cama e rapidamente tentou sair do quarto, mas o jovem a pegara pelo braço dizendo:

___ Espere!

A menina ainda cabisbaixa indagou:

___ Há mais alguma coisa que possa fazer pelo senhor?

___ Pode me desculpar por hoje de manhã?

___ Não é preciso pedir desculpas, senhor, eu estava errada e...

___ Não, quem estava errado era eu, não devia ter gritado com você.

___ Senhor, eu que peço perdão, eu...

Tocando suavemente o queixo da órfã, ele levantou sua cabeça até que os inocentes olhos negros fitassem os envolventes olhos azuis.

___ Viorica, îmi pare rău, prometo que nunca mais irei gritar com você.

___ Se isso o satisfará...

___ Da, muito!

___ Então eu o perdoo.

___ Mulțumesc, dragul meu.

O sorriso do rapaz a convidou a sorrir também.

___ Me sinto mal por deixá-la aqui sozinha ___ dizia ele com voz tão aveludada quanto seu fraque sobre os lençóis.

___ Aqui é o meu lugar, senhor, e mesmo que me convidasse não aceitaria, não gosto de funerais.

___ Entendo.

___ Agora preciso ir, tenho de ajudar seu pai a se vestir.

___ Tudo bem.

Após a saída da criada, Petrescu vestira o fraque e logo em seguida um par de luvas de veludo e uma cartola, ambos os acessórios da mesma cor do traje, notou que estava quase idêntico ao dia da comemoração da primavera, porém hoje estava lúgubre, entretanto não importava como estivesse se vestindo, sua aparência era sempre formosa.

A carruagem aguardava em frente aos grandes portões de ferro da casa da família, Ionel e o filho estavam na sala de estar e assim como na Festa da Primavera, o moço fora o último a sair, olhou em direção à cozinha antes de cruzar a porta e viu a pobre menina esfregando o chão, foi até o cômodo em silêncio, a empregada somente o percebeu alguns segundos depois, rapidamente levantou-se enxugando as mãos ensaboadas em seu encardido avental.

___ Precisa de algo antes de ir, senhor Petrescu?

___ Preciso saber se vai ficar bem aqui sozinha.

___ É claro que sim, senhor.

___ Tem certeza?

___ Tenho.

Chegando perto, o ferreiro deu-lhe um carinhoso beijo tocando a testa da adolescente.

___ Tentaremos voltar em breve ___ disse ele com sua branda voz.

___ Tudo bem.

Ao sair pela porta da frente, Viorica apertou o avental entre seus dedos sentindo seu coração bater mais rápido, soltou um suspiro olhando para o nada durante algum tempo, não demorou muito, lembrou-se de que tinha tarefas a fazer, ajoelhou-se novamente e continuou a esfregar fortemente o chão de madeira.

A carruagem andava lentamente sobre uma estreita estrada de terra cercada por grama, ao longe via-se algumas árvores amontoadas e ainda mais longe podia se ver altas montanhas que pareciam tocar o céu, um céu nublado e sem sol, o que era estranho, pois estavam bem no meio da primavera.

Ambos estavam muito calados, Ionel vivia ajeitando as abotoaduras de seu fraque de tempos em tempos olhando pelas janelas do veículo. Damian estava com a cabeça reclinada para trás quase fechando os olhos, era uma ótima oportunidade para deixar sua mente viajar cruzando o infinito, porém não sabia em que pensar a não ser nos momentos confusos que não sabia ao certo se eram lembranças ou puros devaneios.

O que mais lhe perturbava foi o que fizera na noite que se passou, não parava de se perguntar como tivera coragem de devorar um rato morto como se fosse uma coxa suculenta de frango, entretanto naquele instante foi o que pareceu, sentira um sabor diferente, um tanto apetitoso e o gosto do sangue quente do animal descendo por sua garganta.

Ficou incomodado com tais pensamentos, olhou para seu pai com um certo medo de que poderia ler sua mente e saber o que fizera, seu coração bateu mais forte, ficou nervoso e um pouco enojado ao se lembrar, seus sentimentos estavam confusos, pois enquanto sentia repulsa por tal ato irracional, ao mesmo tempo havia gostado e por um segundo daquela noite, queria mais.

Novamente uma dúvida viera lhe afligir, assim como quando comera a carne crua ainda banhada em sangue, ao devorar aquele cadáver asqueroso e ainda quente, suas dores haviam se acabado como num passe de mágica, não entendia como isto era possível. Num minuto enfermo e agonizando por conta da enxaqueca, no outro calmo e sadio como se nada o afligisse há décadas, curioso...

Quando a carruagem parou, Damian fora o primeiro a descer, olhou à sua volta, estavam a alguns metros da pequena igreja daquele pacato lugarejo, as pessoas iam se aproximando aos poucos, entretanto não muitas, Gravil não era uma pessoa muito conhecida na vila, soube por seu pai, era um recluso homem vivendo uma vida tranquila e aceitando tudo que Deus colocava em seu caminho não importando-se se fossem coisas boas ou ruins.

O clima estava fúnebre, ao entrarem na igreja deparam com apenas algumas pessoas, o número não passava de dez ou quinze, estavam todas trajando luto e com uma expressão fechada, diante do altar estava o caixão aberto onde estava o pobre jardineiro, um homem simples e de bom coração que tivera uma misteriosa e cruel morte.

Sentaram-se na segunda fileira de bancos de madeira, a primeira seria ocupada por familiares e amigos próximos, os assentos estavam quase todos vazios, havia os pais do homem, um casal de idosos aparentemente gentis e simpáticos, porém naquele momento estavam melancólicos e quietos, havia também uma mulher de aparentemente quarenta anos que o ferreiro presumiu que fosse a viúva Radulet, apesar de já estar na meia idade era sem dúvidas uma mulher muito bonita e sem sinais do tempo em seu rosto muito menos em seu corpo, ao lado dela duas crianças e um jovem, seriam os filhos do bom senhor, a mãe agora estava sem marido e os filhos não tinham mais um pai.

O garoto não perdia um só detalhe, discretamente encarava cada semblante esmaecido e sombrio, sem contar que observava cada pequeno detalhe do lugar sagrado, não era de seu feitio frequentar muito a igreja, quando criança Ionel e Irina lhe arrastavam para as missas de domingo, mas há alguns anos não mais entrava e orava, sentia-se até um pouco incomodado por estar ali.

Olhou para trás e viu que um homem fechara as portas do local e procurou um lugar para se sentar, todos começaram a ajeitar-se nos bancos e quando Padre Cosmin ficou diante de todos e ao lado do caixão, cumprimentou os que estavam presentes e começou a falar, palavras que para muitos pareciam reconfortantes, para Petrescu nada significavam a não ser tolices, por um minuto se arrependera de ter convencido seu pai a estar ali.

Durante o discurso do padre, o rapaz estava ficando entediado, todavia não queria transparecer isto com medo de que alguém pudesse estar observando-o e estava certo, ao virar a cabeça e olhar para o lado, percebeu que a viúva Radulet o encarava discretamente e bem perto dela estava a viúva Voiculescu que também não lhe tirava os olhos. O ferreiro sentiu-se encabulado com tais olhares sobre ele então abaixou novamente a cabeça e procurou esquecer.

Após todas as palavras, as orações e tudo mais, todos ali presentes fizeram uma fila para dar as condolências e dizer palavras reconfortantes à mulher que parecia desconsolada, quando Damian aproximou-se da viúva tentou ser afável e encontrar as melhores palavras para dizer a ela, ao abraçá-la começou a falar:

___ Senhora Radulet, eu sinto muito, creio que Gravil era um bom homem e fará muita falta a todos nós, porém também acredito que esteja em um lugar bem melhor e certamente estará abençoando a senhora e a seus filhos.

___ Muito obrigada pelas palavras, meu rapaz, é muito reconfortante ouvir isto de um jovem como você ___ falou a mulher choramingando.

___ Ora, eu apenas estou sendo sincero, meu pai o conhecia e...

___ Andreea disse que você era um bom garoto, muito educado e atencioso.

O moço fitou à voluptuosa mulher conversando com o filho mais velho da senhora Radulet e ficou imaginando o que foi que ela dissera à recente viúva, somente em pensar sentiu-se envergonhado, pois passaram apenas uma noite juntos e nem ao menos conversaram.

___ Ah, ela disse?___ indagou ele.

___ Disse sim, agora estou vendo que é verdade.

O adolescente pôde perceber o modo como a senhora Radulet o olhava, não era um olhar comum, estava admirando-o, os olhos marejados e inquietos o fitavam da cabeça aos pés, entretanto principalmente buscavam o fundo daqueles sedutores olhos azuis, sentiu que ela apertara ainda mais forte sua mão, Damian então se afastou e com um educado sorriso despediu-se.

Enquanto estavam todos reunidos diante do caixão, o jovem foi até o lado de fora da igreja e quando pôde ver o céu cinzento respirou fundo fechando os olhos para sentir o límpido e gelado ar entrar por seus pulmões na esperança de retirar o aroma da morte de dentro do seu peito. Encarou o horizonte como se houvesse algo deslumbrante implorando para ser admirado, ouviu então uma voz feminina ao seu lado:

___ Funerais são tão deprimentes.

O rapaz olhou para o lado e viu Andreea bebendo um gole de whisky contido num pequeno cantil de ouro cravejado de alguns diamantes, ela estendeu a mão perguntando:

___ Quer um gole?

___ Oh não, obrigado.

___ Ora o que é isso, băiat?! Se você não contar também não contarei.

O jovem franzira a testa lembrando-se da noite em que estavam somente Benjamin e ele no bosque, o lorde lhe dissera a mesma coisa quase que no mesmo tom de voz, porém não importou-se muito com isso, olhou à sua volta verificando se ninguém estava vendo e pegou o cantil das mãos da mulher.

Bebera apenas um gole que, como da outra vez, desceu queimando em sua garganta, entretanto o sabor era diferente, este whisky estava bem mais amargo do que o que Grigore oferecera a ele naquela noite, mas isto era algo irrelevante, até porque seu paladar ainda não estava acostumado ao gosto de um fino whisky.

Percebeu que a viúva não parava de encará-lo com um enorme sorriso no rosto, sentiu-se envergonhado novamente e procurou desviar seu olhar à outra direção, até que sentiu as mãos dela segurando seu rosto, forçando a fitá-la.

___ Eu adorei aquela noite, sabia?

Um certo nervosismo brotou e começou a percorrer todo o seu corpo tornando-o enrijecido.

___ Ah... Eu... Fico muito feliz ___ a voz do menino saía trêmula e incerta.

___ Sinto saudades ___ falou a dama com os lábios colados ao ouvido do garoto ______, sinto falta de você me tocando, me acariciando, me beijando.

Enquanto sussurrava sensualmente, suas mãos passeavam pelo corpo do jovem proporcionando uma deliciosa sensação para o rapaz, mas eis que ele a afasta dizendo:

___ Ah, senhora Voiculescu...

___ Senhorita, querido, esqueceu-se de que não sou mais casada.

___ Senhorita Voiculescu, eu acho que...

Antes que pudesse concluir a frase, a sedutora donzela o beijou, o ferreiro tinha de admitir que os lábios daquela mulher eram quentes e suculentos, adoraria arrancá-los e devorá-los e era quase uma tortura desprender-se deles.

___ Senhorita Voiculescu, não devemos.

___ E por que não? Já fizemos uma vez.

___ Sim, mas aquela vez...

___ Não há nenhum problema em fazermos novamente.

___ Ah, mas...

___ Mas o que, draga mea? Estão todos ocupados com aquele defunto, ninguém sentirá nossa falta.

Delicadamente a mulher deixou sua língua passear pelo pescoço do adolescente, estava sendo difícil para ele resistir, estava até soltando longos suspiros de olhos fechados.