Ouço o bip incessante do meu celular, mas escolho ignorar as mensagens enviadas pelos meus amigos e minha irmã mais nova.

Não dá para esconder absolutamente nada da Naomi, quando ela me ouviu pedindo uma carona para o nosso pai até o endereço que Júlia tinha passado, ligou os pontos e gritou em alto e bom som:

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— Ai. Meu. Deus. O Eric tem um encontro!

Naquele momento eu quis esconder a minha cabeça em um buraco bem fundo, igual um avestruz.

— Não tenho não! – gritei em resposta com cada gota de maturidade que acumulei ao longo dos anos.

E como já dá para imaginar, ela usou a resposta contra mim. A discussão chamou a atenção da minha mãe e tive que aguentar seus choramingos de “Meu filho não me ama mais, não fala sobre as namoradinhas comigo”. Enquanto meu pai dava uma lição sobre relacionamentos e o uso de preservativo (que foi MUITO constrangedor).

Estava quase chamando um Uber quando, finalmente, minha família voltou ao normal e peguei minha carona para encontrar a Júlia.

— Oi, valeu por me esperar – a voz dela me desperta das lembranças de algumas horas atrás.

— Ah, nem esperei tanto assim – digo sem graça e dou uma boa olhada nela que está, bem, uau.

Me acostumei tanto com o estilo de camisetas e regatas com o avental da sorveteria que vê-la com um cropped vermelho, saia de cintura alta preta e um kimono da mesma cor por cima roubou minhas palavras. Não que ela precise de roupas diferentes para ficar mais bonita, mas nossa, eu sou um cara e acabei de falar que a aparência dela está ótima sendo que nem entendo de estilo.

Balanço a cabeça para me livrar dos pensamentos bagunçados e ofereço um dos potes de isopor com a colher plástica em minhas mãos. Ela olha confusa.

— Isso é o que eu acho que é?

— Sim, senhora – respondo satisfeito enquanto ela pega o potinho com sorvete de minhas mãos – Sua lição de casa de hoje é o sorvete de abacaxi com hortelã levemente derretido.

Júlia serve uma boa colherada e degusta o sorvete com pequenas caretas, tentando imitar um crítico gastronômico.

— Preciso confessar que agora eu estou me sentindo péssima por ter atrasado – ela suspira – Se levemente derretido isso já é bom, imagina quando está gelado.

Não consigo reprimir o sorriso satisfeito que o comentário dela causa.

— Fico feliz que tenha gostado. Então, agora pode me dizer para onde vamos?

— Mas é claro, meu nobre acompanhante – ela pisca um dos olhos e estende a mão para que eu segure – Hoje faremos um tour por lugares incríveis desta maravilhosa cidade.

— E aqui tem lugares incríveis?

— Claro que tem, Eric! – me sinto levemente repreendido pelo seu tom de voz, mas o sorriso mostra que é uma brincadeira – Toda cidade tem seu charme e aqui não é diferente. Quero dizer, olha só pra gente – com um gesto ela aponta para mim – Somos charmosos demais para viver em um lugar sem graça.

— É, você tem razão – passo a mão livre pelos meus cabelos escuros – Só de estarmos aqui, o charme desse lugar sobe uns duzentos por cento.

Ela morde o lábio inferior e diz:

— Uau, isso foi tão sexy. Você está solteiro, gato? – sinto minhas bochechas corando – Brincadeira, eu sei que seu coração já tem dona – e com uma piscada de olho ela consegue acalmar o sangue acumulado em meu rosto – Vamos para o estúdio da Michele primeiro, preciso deixar algumas coisas lá.

Ergo as sobrancelhas pela surpresa de nosso destino.

— A Michele é uma pintora? Ou ela toca um instrumento?

Júlia ri das minhas perguntas antes de encarar com tristeza seu pote vazio de sorvete. Entrego o meu, que estava pela metade, para ela que agradece com o olhar.

— Ela toca um pouco de harpa, mas é tatuadora.

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— Que demais! Tá’ aí uma profissão que nunca conseguiria seguir, não tenho confiança o suficiente para desenhar algo na pele de alguém que vai durar para sempre.

Júlia balança a cabeça e seguimos o trajeto com ela como guia.

— Eu concordo, mas a Michele é incrível tatuando – com um brilho nos olhos, ela ergue a manga do kimono para expor o braço tatuado – Foi ela quem fez as minhas magnólias e tem alguns trabalhos incríveis com outras flores também.

Magnólias. Então essas são as flores que cobrem cada centímetro de pele do braço dela.

— As magnólias têm algum significado especial?

Ela pausa como se pensasse na resposta certa para essa pergunta.

— Na verdade, não – então dá de ombros – As flores em si tem significado especial, porque elas só mostram sua verdadeira identidade quando desabrocham e isso é lindo. Quando eu me assumi e tive que lidar com todo o caos que isso trouxe pra minha vida, saber que eu finalmente levaria uma vida fiel a quem sou de verdade foi o que me deu forças. Senti como se eu estivesse desabrochando, entende?

Na verdade não entendia, eu sempre vivi uma vida que acreditava ser a mais fiel a quem sou e não precisei esconder um segredo como a minha orientação sexual. Mas, olhando aqueles grandes olhos amendoados, pude imaginar toda dor que Júlia vivenciou e os obstáculos que ela superou no caminho. Então, eu assenti.

Lembro de quando ela comentou que tinha namorado com a Michele e que o término aconteceu porque não conseguia assumir a relação. Acho que a escolha da tatuadora e da tatuagem escondem bem mais significados do que ela quer compartilhar agora.

Ao longo do caminho, muitas pessoas diferentes cumprimentam a Júlia e perguntam como ela está. Confesso que eu não esperava que ela fosse alguém tão popular assim e me sinto pior ainda por ter demorado tanto para prestar atenção nela.

— Andar com você é como caminhar com um político em época de eleição – estalo a língua e faço uma careta como se estivesse incomodado.

— A Michele diz a mesma coisa – ela revira os olhos – Mas a namorada dela, a Carla, adora. Ela diz que sente como se tivesse uma amiga celebridade ou algo do tipo.

— E você é uma celebridade? – ergo a sobrancelha.

— Estou mais para algo do tipo – ela ri – Antes de voltar a estudar, eu tive muitos empregos aqui na região e conheci bastante gente.

— Já consigo até ver as placas.

— Do que?

— Obviamente que da sua campanha eleitoral – limpo a garganta e engrosso a voz – “Vote Júlia para a mudança, essa é a vereadora da transformação”.

Nós começamos a gargalhar e é uma sensação incrível poder rir com ela.

— Ora, ora – a voz que reconheço como sendo da Michele chega até nós – Posso saber o motivo de tanta risada?

Michele apaga seu cigarro e vem até nós. O sol ilumina seus curtos cabelos vermelhos, a cor fica tão forte que quase machuca a vista.

— É só o Eric sendo, bem, o Eric – Júlia me olha com o sorriso ainda estampado em seu rosto.

Finjo estar ofendido e dou uma leve cotovelada em seu braço.

— Ei, isso pareceu uma ofensa!

Michele intervem antes que Júlia possa se defender.

— Sinceramente, vocês deveriam se beijar logo – tanto eu quanto Júlia ficamos petrificados com o comentário – Oh, eu disse em voz alta? Desculpe – a ruiva nos dá o sorriso envergonhado mais falso que já vi na vida – Mesmo assim, como vocês estão em um encontro, acho que deviam ouvir a minha sugestão – ela pisca um dos olhos castanhos para Júlia.

— Alguém já disse que você parece com uma tia velha que manda gif de “Bom Dia”? – Júlia mostra a língua.

— Só você, mas sei que adora meus gifs de gatinhos – então ela desvia a atenção para mim – Olá, Eric. Está cuidando bem da minha melhor amiga?

— Eu estou alimento-a com sorvete e isso melhorou o humor dela uns duzentos por cento, então diria que sim – dou de ombros.

— Finalmente a Júlia acertou na escolha de namorado, ó glória!

Júlia fulmina a amiga com o olhar e entrega um envelope de papel pardo.

— Aqui estão as artes, tia do Zap. Faça bom proveito!

— Opa, opa! Primeiro eu tenho que conferir o material – Michele caminha e entra por uma porta de vidro escuro.

— Preparado para conhecer o estúdio?

Júlia não espera por uma resposta e segue o mesmo caminho pela qual a amiga passou. Eu vou atrás.

Mentalmente ouço a voz de Marco dizendo: Se uma mulher bonita te convida para algum lugar, você segue sem questionar.

Nota mental: Falar com o Marco sobre essas frases.

O ambiente é bem como eu imaginava um estúdio de tatuagem, mas com um toque de charme e classe próprios. Assim que entro vejo o balcão preto com vários produtos para cuidar da tatuagem expostos e uma recepcionista sorridente falando ao telefone. Nos fundos, há um barzinho com três banquetas altas e uma parede que leva para o local das macas onde a magia realmente acontece.

As paredes são tomadas por quadros com desenhos prontos, os famosos flashes, com o nome de cada tatuador marcado em cima e um sofá de dois lugares preto com as almofadas roxas encostado embaixo.

Michele abre o envelope e tira de lá algumas folhas com nomes e frases escritas em fontes diferentes e bem decoradas. Todo o trabalho parece ter sido feito a mão.

— Júlia, você tem o melhor letterning da cidade e falo com propriedade no assunto – ela pisca para a melhor amiga que sorri timidamente – Os clientes também sabem disso, por isso temos tantas encomendas.

— Espera, o que é letterning?

— Ah Eric, seu bobinho – a ruiva balança a cabeça em desaprovação – Letterning é a arte desenhar letras. Olha aqui – ela aponta para um dos nomes nas folhas, percebo que ao redor do nome há vários elementos como foguetes, bolas de futebol e estrelas – Vê esse nome? É o do filho de um cliente, ele poderia tatuar com uma letra simples, mas aprovou a arte desse jeitinho único que a Júlia faz.

Olho para a minha amiga com a sobrancelha arqueada. Em resposta, ela dá de ombros para mim.

— Foi a maneira que encontrei de ajudar nas contas do apê enquanto não achava um emprego. Depois peguei jeito pela coisa e continuo até hoje.

Michele passa o braço ao redor dos ombros de Júlia, uma cena engraçada já que Michele é menor que Júlia e praticamente precisa ficar na ponta dos pés para alcançá-la.

— Para a minha sorte ela pegou gosto pela coisa porque as pessoas adoram tatuar frases com as letras lindas que a minha amiga faz.

Elas começam a falar sobre quanto Júlia receberá por arte e as próximas encomendas. Aproveito o momento para observar os flashes nos quadros.

— Bonitos, né? – me viro e encontro a recepcionista que estava ao telefone bem atrás de mim. É inevitável não encarar os olhos verdes que me olham com atenção e malícia – Aposto que qualquer um deles ficaria bem em você.

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Sinto meu rosto esquentar e sei que já perdi as contas de quantas vezes fiquei corado hoje.

— Obrigado – a palavra sai depressa e não tenho certeza se ela a entendeu – É uma pena que eu não esteja muito disposto a sentir dor – brinco.

— Bobagem, tem área que nem dói. Eu tenho um monte de tatuagem e a única que doeu foi a que fiz na…

— Opa, se afasta que esse tem dona! – Michele se coloca entre a recepcionista e eu – Você não percebeu que ele chegou com a Júlia? – diz em tom mais baixo, mas ainda sou capaz de ouvir.

— Poxa, mas eles não deram um beijinho desde que chegaram – a recepcionista lamenta – Como eu ia saber? E outra, ele é totalmente o meu tipo.

— Se segura, mulher! Tenta não estragar o lance da minha amiga, ela é meio lerda mas…

Júlia coloca a mão em meu ombro e não consigo ouvir o final da conversa.

— Vamos?

— Para onde?

— Para qualquer lugar onde possamos manter a sua inocência.

Confuso, sigo minha amiga para fora do estúdio rumo a nossa próxima parada.

— Você vai ficar irritada se eu perguntar como a minha inocência estava em risco?

Júlia suspira e me encara.

— Eric, a sua pureza é tanta que te deixa mais fofo ainda – sinto as bochechas esquentando e praguejo mentalmente por isso – Olha aí, corado!– outro suspiro – É por isso que você precisa de proteção contra o mundo, cê’ ainda não está preparado para lidar com toda perversão que existe sem ficar vermelho de vergonha.

— Não é isso – murmuro – Só não estou acostumado com elogios sobre a minha aparência.

Algumas garotas já disseram que eu sou fofo, bonito ou atraente, mas eu nunca dei bola. Os únicos elogios que faziam meu coração pular com um pouco mais de força eram os da Thalia e agora o “fofo” dito por Júlia.

Ela percebe o meu constrangimento e muda de assunto. Começamos a falar sobre o tempo, a grama, a fachada das casas por onde passamos e os piores penteados que já vimos.

Essa interação me lembra das conversas com Thalia quando saíamos andando sem rumo em uma tarde qualquer ou estávamos a caminho do cinema para ver um filme. Sinto o peso que a ausência dela causa em meu peito. Preciso encontrar uma brecha na agenda atual da minha melhor amiga.

Sempre achei que as pessoas estavam brincando quando diziam que é mais fácil manter contato com os amigos quando eles estão solteiros do que namorando, principalmente porque o Henri está de rolo com a Carol há meses e segue presente na minha vida, e a Thalia prometeu estar comigo para sempre mas parece que o pra sempre virou pó.

— Caramba, conversar e andar tanto me deu sede – Júlia anuncia – Você sabe onde podemos comprar uma água por aqui?

— Se você não se importar, podemos ir para a minha casa que é logo ali na frente.

Ela faz um movimento de concordância com a cabeça e seguimos em direção ao muro cinza e baixo que rodeia a construção. Assim que passamos pelo portão, percebo que os carros dos meus pais estão em casa e me preparo psicologicamente para a parte dois da sessão de constrangimento dessa manhã.

— Se a Naomi estiver aqui, esteja preparada para muitos comentários constrangedores.

— Sim, senhor!

Abro a porta e sou recepcionado pelo som de várias pessoas gritando a palavra que melhor descreve o que sinto: surpresa. Meus familiares e amigos mais próximos, com exceção da Thalia, estão reunidos na sala jogando confetes e segurando uma faixa de “Feliz aniversário, Eric!”.

Quero olhar para Júlia e perguntar se ela é cúmplice dessa festa surpresa de aniversário, mas logo sou sequestrado pelos tios e tias que querem me parabenizar pela maioridade.

Entre muitos abraços, beijos, envelopes e tapas nas costas, finalmente chega o momento de interagir com meus amigos.

Henri é o primeiro a me abraçar com força e sussurra em meu ouvido:

— Só não se aproveite dos dezoito para comprar bebida escondido, hein!

Dou uma risada com o comentário e reviro os olhos.

— Meh, vou pensar no seu caso.

Marco vem, me dá um abraço ainda mais apertado e sussurra em meu ouvido.

— É um alívio não ser mais o único maior de idade do grupo, agora a responsabilidade de comprar goró pro rolê não é só minha.

Senhoras e senhores, esses são os meus amigos.

Então Carolina, Natasha e Amanda se aproximam e me dão beijos no rosto seguindo de felicitações e desejos de tudo de bom que as pessoas falam em aniversários. Fico feliz que elas estejam presentes, mesmo que não sejam próximas de mim.

Quando todos terminam de cumprir seus papéis como amigos do aniversariante, olho esperançoso e pergunto:

— Onde está a Thalia?