Como em todas as outras noites, os pesadelos assombravam-na. Sem conseguir dormir, a garota contentou-se em passar o tempo afastando os insetos dos trapos que usava, embora não conseguisse enxergar nada, distraindo-se. Lui murmurava palavras soltas em seu sono, encolhido no chão frio, mas nada do que dizia fazia sentido.

Ela ouviu o som de passos aproximando-se, ainda do lado de fora do recinto, e uma grande luz se fez quando Giuseppe abriu a porta, acordando Lui, deixando a multidão entrar. A menina, como de costume, não resistiu ao impulso de se esconder e virou o rosto, para que o italiano não percebesse que ela estava com a máscara. Ela sempre tentava minimizar a dor e a humilhação tanto quanto lhe fosse possível, mas suas tentativas normalmente surtiam o efeito contrário, pois irritavam aos ciganos. Odiava sentir-se como um animal, como uma aberração a ser exposta para o divertimento alheio. Giuseppe costumava começar o espetáculo com Lui, deixando-a por último para que pudesse machucá-la ainda mais.

Ela desviou o olhar do amigo, que era duramente chicoteado, e observou pelo canto do olho todos os espectadores que pareciam divertir-se tanto com a situação. No entanto, não eram todos que riam, ela notou. Um casal, parado bem próximo à jaula, parecia penalizado. A dupla era um tanto peculiar, visto que a mulher parecia ser muitos anos – décadas – mais velha do que o rapaz. A menina não pode observar os dois por muito tempo, pois logo percebeu que Giuseppe direcionava-se à ela. Lui sangrava, estirado no chão, balbuciando algumas reclamações e interjeições quaisquer. Apesar de não apreciar a humilhação, já se acostumara à dor. Deixou-se domar por Giuseppe, que arrancou-lhe a máscara e empurrou-a com força para o chão. Depois de tantos anos de tortura, a menina tornara-se mais forte do que seu corpo raquítico aparentava. Não tinha mais lágrimas a derramar, todos os seus sentidos pareciam estar completamente anestesiados. Giuseppe, percebendo que a menina mal se debatia, não sentiu tanto prazer com a tortura quanto o de costume, e duplicou a força que aplicava para machucá-la tanto o quanto pudesse.

Finalmente, a sala começou a se esvaziar. Giuseppe abaixou-se para recolher e contar as moedas e cédulas que haviam sido arremessadas para dentro das grades quando a garota lembrou-se de um plano sombrio, que havia muito, abandonara devido à falta de oportunidade. Verificou, esperançosa, que a sala estava vazia e que a porta de sua pequena prisão estava destrancada e alcançou uma corda que escondera ali, meses antes, embaixo do monte de palha. Tentou fazer com que os pés descalços não fizessem demasiado som ao pisar a palha seca, caminhando lentamente, dolorida de suas feridas, em direção a Giuseppe. Ágil, embora machucada, atacou-o por trás, fazendo rapidamente um nó largo na corda e passando pelo rechonchudo pescoço do italiano. Apertou com todas as forças o nó, estrangulando-o até parar de se debater e, depois, até parar de respirar. Finalmente, seu carrasco caiu morto no chão e a garota ficou atônita. Nunca julgara ter coragem para colocar tal plano em prática. Lui olhava para ela apavorado. Uma dúvida tomou conta dela: para onde iriam? Apesar do breve momento de insegurança, decidiu que não havia tempo para gastar com sua indecisão. Por ora, bastava sair logo dali. Depois, dariam um jeito e encontrariam algum lugar para ficar. Recolheu a máscara do chão e passou pela porta da jaula apressada, finalmente libertando-se de seu cativeiro. Sinalizou para que Lui a seguisse, e ele, apesar de assustado, o fez. Na porta do recinto, no entanto, deparou-se com o casal que estivera observando antes. Olhou-os assustada. A mulher permanecia calma, mas o jovem, loiro e pálido, parecia horrorizado com a cena que acabara de presenciar.

—Sigam-me. – a senhora sussurrou, ouvindo que alguns ciganos se aproximavam do local. O primeiro impulso da garota foi não confiar na senhora. Não acreditava que houvesse pessoas boas ou bem-intencionadas no mundo – além de Lui, é claro -, mas não teve nenhuma escolha a não ser obedecê-la. Eles fugiram por uma passagem que parecia ser secreta – como aquela mulher conhecia o lugar em que os ciganos se instalaram? E por que ela não tinha medo dela e de Lui, com seus rostos terrivelmente deformados? -, correndo, a senhora guiando-os, na frente, seguida de perto pela garota, que já tinha a máscara de volta ao rosto. Os rapazes vinham logo atrás. Com pouca dificuldade conseguiram despistar alguns ciganos que os haviam perseguido. Correram por muitas quadras até chegarem a uma luxuosa construção, de tamanho monumental. No letreiro dourado lia-se o nome “Ópera Populaire”.

Entraram pela escadaria principal, fechando as enormes portas atrás de si com um estrondo que em nada se destacou em meio ao exagero ruído do teatro. A garota espantou-se em ver todas aquelas pessoas. Era tanta gente!, e em nada se assemelhavam aos malvados ciganos ou ao tenebroso Giuseppe. Mesmo assim, certamente não seriam pessoas boas, acreditava ela.

As quatro figuras estavam muito ofegantes e passavam, apressadas e invisíveis, pelos confusos corredores da construção. Ao chegarem numa ala mais reservada, o corredor totalmente deserto, a senhora se apresentou, ainda ofegante:

—Sou Madame Giry – e gesticulando para o jovem loiro que a acompanhara -, e este é o visconde Raoul de Chagny.

—Este é Lui. –a garota hesitou, gaguejou, mas achou coragem suficiente para apresentar o amigo mascarado aos dois novos conhecidos. Não sabia como se apresentar também, visto que não tinha nome.

—E você? – Madame Giry questionou, intrigada com a hesitação e mistério da menina franzina a sua frente.

—Não tenho nome. – sussurrou, por fim, a garota. De alguma forma, Madame Giry pareceu entender a situação, assentindo. Não fez mais perguntas.

—Venha comigo, criança. Temos que dar um jeito em você.

A garota, receosa, seguiu a mulher de longe, com distância suficiente para que pudesse fugir, caso fosse necessário. No entanto, agora que tinha cessado sua fuga, percebia o quanto estava debilitada dos anos de maus tratos que sofrera. Mancando, suas pernas pareciam fracas demais para lhe oferecer algum sustento. Lui, percebeu, deveria ter ido com o visconde, pois não a seguia mais. Madame Giry a conduziu até um quarto luxuosamente decorado, com lustres, candelabros e flores em demasia. Ela deu uma toalha e roupas novas para a garota, e mandou que ela tomasse banho – ordem que ela ficou feliz em obedecer. Dirigiu-se ao banheiro, estranha à todo aquele luxo, e despiu-se da máscara e de seus trapos rotos. Demorou um pouco para entender como funcionava a banheira, mas quando conseguiu mergulhar o corpo na água quente, teve certeza de que estava em algum tipo de paraíso. A temperatura agradável contra sua pele gelada, esquentando, proporcionava-lhe a melhor sensação que tivera em toda sua vida. Ela se sentia mais leve a cada esfregada da esponja contra a pele macia, embora a fricção tambpem machucasse um pouco suas feridas. Que pena que a água não pudesse levar aquelas feridas consigo!

Ela se secou com a toalha preta, e examinou o vestido que Madame Giry lhe dera. Era lindo. A parte de cima era como um corpete, enquanto a de baixo era apenas uma saia longa, de tecido leve. Tudo em azul-claro, com detalhes em renda. A garota evitou o espelho a todo o custo, recusando-se a encarar o horror da própria face, vestindo-se. Sem aviso prévio, Giry entrou no cômodo e ao olhar para a menina, espantou-se. Se passou um momento até que ela recobrasse a própria voz.

—O que houve com o seu rosto? – perguntou.

A menina a encarou, perplexa, sem entender a que a senhora se referia. Madame Giry empurrou-a até o espelho, contra a sua vontade. A menina estava fraca demais para resistir, no entanto.

Deu uma olhada rápida, com medo do seu reflexo, mas seu olhar acabou se prendendo no próprio rosto. A face direita, antes coberta pela máscara, era o reflexo perfeito da face esquerda. Lisa. Simétrica. Perfeita. A jovem não pode entender o que acontecera, e fitava a si mesma, admirada, no espelho.

Madame Giry deslizou os dedos brevemente pela face agora macia, ao que a menina saltou, desacostumada a qualquer toque que não fosse agressivo. Pelo pouco resíduo que ficara em seus dedos, a senhora concluiu:

—Era maquiagem!

A garota sinceramente não sabia o que dizer. Não sabia se devia ficar com raiva, por ter vivido uma mentira por tanto tempo, ou se ficava agradecida por ser normal, apesar de tudo. Era tudo maquiagem? Mas como? Ela se mirou no espelho novamente, sem acreditar no que seus olhos viam. Ela era bonita. Incrivelmente bonita. O vestido azul, que cobria a maior parte dos machucados, realçava a cor de ébano de seus olhos grandes e intensos, das sobrancelhas expressivas, dos cílios longos e do cabelo que caía sobre os ombros, formando cachos largos. O nariz era arrebitado e delicado, e os lábios, cheios. Ela estava impressionada, quase tanto quanto Madame Giry.